30 de janeiro de 2005

QUANDO A COMÉDIA CEDE AO DRAMA



Nei Duclós

Ensaio publicado neste domingo, 30/01/2005, no caderno Donna DC, do Diário Catarinense. Duas revelações inéditas na mídia impressa: a influência de John Reed em Chaplin (tese já conhecida pelos leitores do DF, do meu site e do La Insignia) e a identificação de Buddy Love (foto acima), personagem de Jerry Lewis, com Dean Martin.

PASTELÃO - O que era para ser uma celebração, uma festa de aniversário ou casamento, vira guerra de bolos e tortas, graças à intervenção de um desastrado, de um outsiderComédia é uma situação em que o excluído tenta fazer parte dela e, como não consegue, acaba destruindo o cenário. No fundo é drama: quem está por fora sofre para ser visto como um membro do clube, mas sempre será o estranho, o freak, o bobo. É drama também porque a reação do personagem, então encarado como comediante, demole o que o exclui e com isso perde a chance de fazer parte daquilo que sonhou. O que mata as pessoas de rir é o esforço malsucedido de alguém num ambiente onde só é permitido fazer tudo de maneira correta.

O exemplo clássico é o pastelão. O que era para ser uma celebração, uma festa de aniversário ou casamento, vira guerra de bolos e tortas, graças à intervenção de um desastrado, de um outsider. É assim que o palhaço denuncia a violência que o joga no lixo, virando contra os convidados o enxovalho da própria condição. Chaplin conseguiu revelar o drama como a verdadeira face da comédia, já que atrai pelo riso a atenção que desemboca na lágrima.

Chaplin inspirou-se num conto do revolucionário escritor americano John Reed, O Capitalista, para criar seu vagabundo imortal. Reed denunciava a necessidade das aparências de um excluído, que tentava vestir-se como a elite mas que se revelava, comicamente, ao enfrentar qualquer situação de conflito. Esse achado brilhante levou Chaplin a navegar nas mesmas águas do autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo, a grande reportagem sobre a revolução russa de 1917. A fonte da comédia era a consciência de classe, o que colocou Chaplin o tempo todo contra o conservadorismo americano, crise que o levou para o exílio na Suíça. A exclusão, em Chaplin é social, mas em Jerry Lewis, é comportamental.

PROFESSOR - Jerry Lewis seguiu um caminho mais complicado, mas conseguiu, a seu modo, desvelar a tensão que é bater ponto no relógio da graça e trabalhar na fábrica da dor. Sua obra máxima, The Nuty Professor, é o filme que desnuda suas verdadeiras intenções. É mais do que uma vingança, é a reposição de papéis fundamentais, pois ele tinha nascido para o espetáculo fazendo dupla com Dean Martin e por um bom tempo arrostou sozinho o papel desumano do perdedor num país de vitoriosos. Sua fragilidade empurrou-o para a emasculação, pois é comum vê-lo de avental tentando agradar seu companheiro ou exagerando o trejeito para deixar claro que não estava identificado com a virilidade clássica. Quando Jerry amadureceu, a ruptura com Dean precisava ser levada dos bastidores para o centro do drama. Escolheu O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, para resgatar a dupla que jamais poderia ter sido desfeita, se fossem seguidos os critérios dos resultados financeiros, já que faturavam milhões.

SEMELHANÇA - O professor sem nenhum atrativo sexual, para melhorar sua imagem com as mulheres e sair da sua miserável condição de palhaço, toma um elixir mágico e transforma-se em Buddy Love, o galã que nada mais é do que a caricatura de Dean Martin. É impressionante a semelhança entre Buddy e Dean e mais ainda o fato de ninguém ter comentado isso (assim como passou despercebida a fonte literária do vagabundo chapliniano).

Jerry resolve encarnar o misterioso conquistador para dizer o quanto é irrelevante esse tipo de personalidade, tão cara a algumas mulheres (que costumam confundir o cafajeste com o homem de verdade). Seu escracho é fazer a desconstrução de Buddy Love, que no meio de uma apresentação (tinha a voz de Dean) começa a desafinar. Incluir o professor tratado como louco no universo das pessoas que tem direito a uma vida completa é o grande feito desse filme antológico, que mudou a comédia para sempre ao revelar o drama do palhaço que vicia na gargalhada e esconde o verdadeiro rosto para não perder o público.

Jerry foi fundo e chegou também a interpretar dramas de verdade, não mais ocultos nas trapalhadas em que seu personagem se metia. Mas sua arte serviu para repor a dignidade da inocência, como prova a magistral cena de O Rei do Circo, em que, vestido de palhaço, tenta levar para o riso uma criança mergulhada na tragédia. Ele só consegue seu objetivo depois de chorar. Quando a criança (o olhar sem nenhum disfarce) vê a lágrima, rebenta no riso. Era o que ela precisava: entender que a alegria não é o oposto da dor, já que para rir não podemos abrir mão de nossa situação de criaturas datadas, mergulhadas no conflito.

AMOR - A verdade, que é o drama, precisa estar na base da comédia, para que saltemos da cadeira quando Jerry Lewis coloca todo o conteúdo de uma loja no saco de um aspirador de pó e, não contente, explode tudo na cara de uma cliente afetada e chata. A comédia é o amor ao semelhante, assim como o drama é a nossa contingência.

28 de janeiro de 2005

BUÑUEL, A CULPA SOB TORTURA




Buñuel é o presídio da culpa, onde o prisioneiro cumpre pena perpétua. Como não há esperança de libertação, o encarcerado decide virar torturador. Quem sabe ocupando o lugar do algoz haverá uma chance de escapar? O truque é fazer com que a culpa sob tortura enfim revele sua insignificância, e negue sua justificativa de existir. Aprofundando o crime no corpo da vítima (a Bela da Tarde e seus amantes asquerosos) a culpa poderia deixar enfim de existir, já que ao atingir o limite terá a oportunidade de se esfumar. Não sabemos se isso realmente acontece. O que fica é o relato desse processo, em que as pessoas se cercam de impossibilidades porque sabem o quanto lhes é vedada uma saída. O anjo exterminador é esse nó do destino, que faz os grupos humanos se condenarem à cela. Morrem um a um enquanto cumprem rituais aparentemente libertários, pela transgressão, que no fundo apenas consolidam o material de que são feitos, que se transforma em concreto e reflete a brutalidade de um tempo de inacessível salvação.

CRIME - Na mais importante cena do melhor dos Godfather, o de número três, Raf Valone é o futuro papa que conversa com Pacino/Corleone. Para convencer seu interlocutor a confessar seus pecados para obter a absolvição, ele explica que o cristianismo jamais vingou na Europa, terra avessa à caridade e a outros princípios do Salvador. Corleone faz parte dessa igreja fundada na impossibilidade, que consegue vomitar para o cardeal seu maior crime ? o assassinato do próprio irmão ? mas ele sabe que está condenado. Buñuel trabalha essa condenação. Seu pesadelo é o catolicismo fundamentalista ibérico e o surrealismo foi apenas um dos seus esforços para escapar dessa rede. Mas tudo o que fez está impregnado pelo avesso, a carne viva do cristianismo sem tréguas, a culpa batizada pelo sangue da inocência perdida. Antes de ser o grande cineasta em que se transformou, ele foi até ator, encarnando num dos filmes o papel de um padre. E como foi convincente! Vemos nessa interpretação o Mal vestindo a batina, naquela época em que a Igreja Católica a tudo dominava, principalmente o imaginário do povo e da arte. Mergulhar fundo no horror sugerido pela repressão toma a forma, em Buñuel, do mais intragável cinema, o que é visto para expiar a culpa de estar preso às correntes da falsidade do Bem. Há maldição o tempo todo e esse cinema escolhe a iconografia da harmonia e da beleza para cuspir nela. É revoltante ver Catherine Deneuve entregar-se daquela forma para um japonês gordo ou um Pierre Clementi sádico. Não existe ar na mesa onde as pessoas compartilham a mesma impossibilidade. Não há olhar suportável diante do corte feito na retina em O Cão Andaluz. Não gosto de Buñuel, mas o espectador crismado no gosto pelo Belo precisa levar essa surra para não criar mais uma armadilha quando é convidado a ver. Esse anti-cinema é necessário como o amargor numa overdose de açúcar. Ele inaugura múltiplas soluções para quem precisa soltar os próprios terrores. Mas, influenciados por Buñuel, e ao mesmo tempo liberto dele, seus seguidores se limitam a assumir a casca dos seus filmes, jamais o magma fundo que o gerou.

ONÍVORO - Naquela cidade distante, comparecíamos domingo ao cinema como a uma obrigação. Não íamos ver os filmes, e sim cumprir o programa proposto. Víamos assim faroestes fabricados em massa em preto e branco com nossos heróis favoritos pela manhã, antecedidos por algum festival de desenhos animados. Na sessão da uma da tarde, era programa duplo: um filme de pirata e uma comédia da Atlântida. Na sessão das quatro, que era considerada nobre, grandes espectáculos, como Os Dez Mandamentos, Spartacus, Os Vikings. À noite não íamos. Era o reduto dos adultos e dos execráveis filmes de amor. Às vezes nos traíam e colocavam alguma comédia romântica nas nossas sessões exclusivas. Havia uma decepção geral: ah, é de amooor, dizíamos, furiosos. Então anarquizávamos o recinto até os lanterninhas surtarem de ódio. Nas sessões mais exclusivas ainda, a matinal e a matinée da uma da tarde, batíamos os pés e assobiávamos como loucos. Antes de entrar no cinema, trocas ou compras de revistas em quadrinhos: Bolinha, capitão Marvel, Rocky Lane, Superhomem. No cine Teatro Carlos Gomes tínhamos os seriados, os mesmos que influenciaram George Lucas e Spielberg, que são da minha idade. Lentes que concentravam raios e destruíam montanhas, pessoas que voavam, mocinhos que se salvavam dos saltos no abismo, bandidos atrás de máscaras metálicas. Só quando me mudei para Porto Alegre, a cidade da cultura, soube o que era escolher o filme a ser visto. Assim mesmo, continuei onívoro. Tínhamos salas maravilhosas, como o Cacique, o Guarani, o Atlas. Por toda a cidade existiam salas de primeiro time. Vi todos os filmes de vanguarda e todas as superproduções. Via até Fernandel, filmes mexicanos, argentinos, ingleses. Morava dentro do cinema, antes que fosse destruído. Naquele tempo, não sabíamos que estavam aguardando o momento para acabar com nossa alegria. Eles tinham outros planos para o mundo que mudava de rumo e o cinema influía com sua cascata de idéias e imagens inesquecíveis.

GARRAS - Hoje, passo em frente a uma locadora de dvds e vídeos e vejo apenas porcarias em destaque. Quando eu dispunha dessa brincadeira (as despesas enormes que impuseram para isso não permitem mais esse luxo) costumava ser abordado pelos atendentes: qual o tipo de filme que o senhor gosta? Não divido os filmes em tipos, respondia, e gosto de tudo. Mas tirava um filme atrás do outro e não gostava de nenhum. A não ser que, por distração, esquecessem alguma obra-prima na estante e eu, escondido, conseguia então ver Limite, de Mario Peixoto, Aurora, de Murnau, entre outras preciosidades. Quando eu for rico novamente, voltarei a esse acervo. Por enquanto, sofro diante da TV aberta, que é a verdadeira TV fechada. Cinema? É difícil ir. Só tem sala em shopping. Uma sala do centro aqui de Floripa virou igreja evangélica. Era isso que eles queriam! Destruir a cultura para colocar no lugar o fundamentalismo contra o qual Buñuel lutou com todas as garras e dentes.

RETORNO - La Insignia está publicando todos os meus artigos sobre cinema (ou melhor, sobre o que o cinema faz comigo). Recebo carta generosa do editor deste site iberoamericano, que vive em Madrid, Jésus Gómez: "Esta va a ser una carta muy breve, pero no me resisto a decirlo: tus artículos son una verdadera maravilla. Procuramos no publicarlos seguidos -como ya habrás observado- para que cada uno tenga el tiempo suficiente en portada, sí; pero también por simple temor al viejo refrán de «pan para hoy, hambre para mañana». Ahora bien, si fueras capaz de escribir un artículo todos los días, todos los días lo publicaríamos. Eso no se puede decir de casi nadie. Un abrazo, y muchos aplausos Jesús O editor". Obrigado, Jesus. Quem dera todos os editores fossem iguais a você. E iguais a Urariano Mota, que me incentivou a aprofundar este trabalho e que se restabelece de cirurgia na sua Recife. Saúde, Urariano. E volte para nossa rede, que precisamos de ti, como o deserto precisa de água.

27 de janeiro de 2005

VER É SABER, EM KUBRICK

Nei Duclós

Stanley Kubrick nos ensina que ver sem apoiar-se em parâmetro algum, ver pela primeira e única vez, ver como se o espectador estivesse nu diante do cosmo, é saber. Rever é arquivar, é perder esse tesouro do primeiro olhar, é desdobrá-lo, tentar entender o que foi visto. No filme De olhos vendados, o médico interpretado por Tom Cruise não pode ter acesso ao que a elite vê. E o que a elite vê? A própria elite, que não pode ser desmascarada. Ele descobre isso por meio do seu amigo pianista, que é contratado para uma festa em vasta mansão, desde que toque com um lenço tapando os olhos. Estão proibidos de ver, portanto, de saber. O protagonista então engana a segurança e vê o que jamais poderia ver, sabe o que nunca deveria ter sabido. Ver, portanto, é uma questão de classe social. Para o resto, é preciso cobrir o olhar com todo o tipo de repetição, para que se turve a percepção, para que nunca vejam e, portanto, saibam. Quem vê, tem poder.

TITAN - Os anos 60 pegou a elite desprevenida. Via-se pela primeira vez um monte de coisas. A saída foi enquadrar a criação que emitia a luz para o primeiro olhar. Entrou em cena o repeteco de massa, do qual a TV aberta brasileira é o mais sinistro exemplo. Só é permitido mostrar o já visto e se for algo inédito, é preciso vestir a novidade de todas as formas, para que tome uma forma reconhecível. Não nos deixam ver as imagens de Titan. Dizem antes que o satélite de Saturno é laranja, que tem mar de metano, ventos de tungstênio e outras bobagens. Deixem-nos ver, como Kubrick fez. Fui a um cinema da Cidade Baixa em Porto Alegre, a cidade da cultura, e vi então 2001 pela primeira vez. Nunca mais me refiz daquele susto. Pensei que aqueles homens-macacos do início do filme eram reais, e não atores. Vai ver, eram mesmo de verdade. Aquele travelling longuíssimo da nave em direção a Júpiter, que não acabava mais, marcou para sempre o cinema. Star Wars usou outro plano, um contra-plongée (como me ensinaram num curso de cinema que fiz ainda no ginásio, obra de um irmão marista que nos revelou pela primeira vez que os filmes não eram obra de atores, mas de diretores, o que é uma meia verdade). Mas no fundo é a mesma coisa. Vai fazer filme sobre o espaço? São aquelas roupas, aquela estética, aquele visual. Até o horrível Cowboys do espaço (o tropeço de Clint Eastwood) usa essas soluções. É porque todos precisam repetir o que Kubrick fez, pois aprenderam com ele, mas não se dão conta que o perdem, pois o que realmente importa é aquela primeira percepção.

LUZ - Em O Iluminado, Jack e o filho vêem os fantasmas, só eles sabem o que está acontecendo. O terror da mulher é que ela não vê, apenas enxerga no que o marido se transformou, mas não sabe o que está por trás dessa mutação. Jack vê, e essa é a sua maldição. Vê não porque não tenha diversão, vê o horror insepulto no hotel vazio porque perdeu a capacidade de enxergar com a criação. Como não imagina, acaba se deparando com a brutal revelação dos assassinos fantasmas, que o orientam sobre o que deve fazer. Jack refugiou-se no hotel para não ver mais nada a não ser o que criaria no seu romance. Mas como ele vedou toda a capacidade de enxergar, ficou confinado no lugar que nada tinha a mostrar. Por isso ele consegue ver o que está por trás das paredes, o que se esconde embaixo do piso, o que desce do teto, o que escorrega pelos corredores. Somos transportados para essa maldição em Kubrick, o de ver o que nunca tínhamos visto, portanto o que jamais imaginávamos ver. No fundo não queríamos ver o que não sabemos, mas somos obrigados a isso pela câmara de Kubrick. Seu desafio foi o maior de todos, pois precisava impactar um público viciado em ver, cansado de tanto ver. A indústria audiovisual tinha chegado a sua saturação. Godard partiu para a ruptura, desistindo da intensificação do ver e levou todo mundo para a reflexão, fruto de sua formação literária. Godard disse: vejam, vocês estão vendo, aprendam a ver. Kubrick não é didático. Kubrick diz: veja só, um retângulo escuro e alto que emite um ruído e aparece no meio dos macacos e depois enterrado na Lua. Veja, um mar de sangue inunda o corredor. Vejam essas gêmeas fantasmas, esse rosto retorcido de Jack se anunciando depois de quebrar a porta com o machado. Godard explica: você está vendo. Kubrick te joga numa praia distante num mar de metano, sob fortes ventos de tungstênio. Tente respirar e terás ácido sulfúrico.

REVOLTA - Em Spartacus, a revolta começa quando o grande escravo negro vê a elite gargalhando e pedindo a morte do adversário vencido. O escravo ousou levantar o olhar até o camarote onde estavam os poderosos e viu lá, pela primeira vez, a quem servia e o que ele, escravo, representava de verdade. Essa revelação desencadeou a revolta. Os escravos então optam pelo que sabem ver: querem ter a vida de senhores e fazem destes os novos servos. Spartacus orienta o olhar para outra direção: vamos formar um exército, diz ele e com essa estratégia quase derruba o império. O poder não vê Spartacus no final, mas tenta. Pergunta quem é o líder da guerra. Todos então se levantam e se anunciam, numa cena que arranca lágrima de rocha. Os escravos vencidos ludibriam o olhar do poder, não revelam o que a elite quer ver para que a vitória seja completa. Spartacus então se transforma em todo o povo submetido à escravidão. O poder vê a massa como um só líder e tem medo. Manda crucificar todo mundo. Até hoje agonizamos junto com Kirk Douglas, na cena final de mais esse filme de Kubrick, o cineasta da libertação do olhar.

RETORNO - A versão de que a primeira descida do homem à Lua em 1969 é obra de Kubrick serve para múltiplas interpretações. A fraude revela a força do poder: ele submete o libertador do olhar, que se transforma num algoz, pois impõe a imagem de outro mundo por meio de truques. Ao mesmo tempo, essa versão pode ser vista como um reforço do que dizemos aqui: vimos a Lua pela primeira vez pela mão de Kubrick, se for correta a história que rola na Internet. Em vez de ser uma fraude, é a glória: Kubrick teria levado o olhar para o Outro Lado por meio da imaginação e da ciência. No fundo, é o que deveria ser sempre. Prefiro Kubrick ao noticiário da tevê (me vê? ou me obriga a ver daquele modo?). Kubrick mente menos.

26 de janeiro de 2005

2001, O FILME FEITO NO FUTURO




Nei Duclós

Todos os futuros são datados (os dos anos 40 e 50 são de rolar de rir), menos o de 2001, Uma odisséia no espaço, a obra-prima de Stanley Kubrick. Assim como não faz parte daqueles futuros imaginários que ficam obsoletos e revelam mais a época em que foram feitos do que qualquer outra coisa, 2001 é um filme que pertence ao futuro real, ao qual chegaremos um dia de fato, mas que ainda está longe de acontecer.

Visto assim de maneira tão radical, posso afirmar que 2001, por estar fixo à nossa espera, não deve ter sido feito em 1968, como contam. Ele ainda está por acontecer como obra. Trata-se da única prova viva de que o Tempo existe como percepção e jamais como barreira. Kubrick vislumbrou sua saga no momento em que evadiu-se da sua época e decidiu visitar o Mistério. É por isso que o filme encerra tantos enigmas, porque eles se apresentam primeiro para o diretor que não consegue decifrar a todos, para só depois assombrarem os espectadores, que podem enlouquecer de tanto ver.

RESPIRAÇÃO - Na varanda, agora mais refrescante depois de alguns ventos e chuvinhas esparsas, converso com daniduc, o dude, que nos deu a honra de uma visita para matar as saudades. Ele relembra os minutos iniciais do filme, de tela escura; e, depois, da explosão na cabine da nave, uma cena completamente sem som. Relembro a longa seqüência que tem como acompanhamento sonoro apenas a respiração do astronauta. Nunca o superespetáculo será tão radical.

Kubrick antecipou-se, criando o paradigma da estética da humanidade integrada ao espaço: lentidão, vestes brancas, objetos flutuantes em infinitos espaços vazios. Ele chegou a contratar alguém para fazer a trilha sonora antes de colocar o Danúbio Azul na memorável cena da chegada do especialista na estação orbital. A assepsia visual, a imposição inexorável de imagens definitivas no imaginário humano, além do grande impacto do lendário teodolito como um mensageiro de inteligências superiores, fazem parte do acervo desse futuro que nos aguarda. Quando enfim decolarmos da Terra, viveremos em Kubrick, que descobriu nesse corte umbilical o nascimento de uma nova humanidade, voltada para as estrelas.

Para realizar seu feito, resgatou o salto dado desde o osso empunhado como arma até o vôo interplanetário, o corte mais profundo da história de todo o cinema. Aquele osso na mão do hominídio transforma o gesto em ação criadora sem limites. Como poderia Kubrick ter chegado a tanto se estivesse preso naquela época limitada, que virou cult por comparação com o que veio depois (o apocalipse cultural)?

VIAGEM - Se o teodolito foi uma imposição difícil de engolir nas primeiras sessões em que nos dedicamos ao filme, imaginem aquele final lisérgico, em que ultrapassamos Júpiter e entramos na grandeza real do universo.

Aquela viagem de ácido até os confins até hoje nos atinge como uma insuportável bad trip. Tudo acaba numa cena tradicional, que dói de tão branca, em que o astronauta, transformado num matusalém, tenta ver onde se encontra e vê apenas a si mesmo (destaque no cenário branco) viajando pelo corpo em decadência até o impossível, até o renascimento. Para chegar até esse supremo desamparo, ele precisou lutar contra a máquina inteligente (pesadelo dos atuais filmes hollywoodianos), desmontá-la, emudecê-la, subjugá-la, vencê-la. Não é o delírio da robótica como o de Spielgerg em Inteligência Artificial, ou o do também conservador Ridley Scott em Blade Runner, em que o não-humano vence.

Essa é a maldição de 2001: por saber exatamente a força e a dimensão do que se opõe ao humano, é nele que se deposita todo o filme. O grande vazio que cercam objetos, pessoas e ações não significa apenas a ausência de matéria. É para destacar que o humano é o centro dessa trama. É a pessoa que preenche todos os espaços e tudo mais é supérfluo, o resto são os instrumentos da ação poderosa da humanidade consciente.

VER - Para saber, é preciso ver o que não foi ainda codificado. Codificar não é saber, essa já é uma fase posterior ao saber. O conhecimento é esse impacto inicial em que não há nenhuma referência, em que você está nu diante do cosmo. Nesse instante, você sabe. Depois, arquiva, você já está sabendo. Em Kubrick, saber não é compreender, é enxergar.

O que você vê é o que você conhece. E o que você vê realmente (ou deve ver) é o que está à parte do que te cerca. Por isso você cruza o sistema solar em busca de uma resposta. E quando parece encontrar alguma coisa, ela não faz sentido. Você estende a mão e o segredo se revela na sua gigantesca indecifração. Porque você é a chave, é em você que o mundo se desfaz para recomeçar no instante seguinte, que é agora. Nada existe fora de você. Por isso Kubrick acerta, por não trair esse passo fundamental que é o humano, seja em que tempo for.

Ele apostou certo e sua obra então desprendeu-se dos seus dedos como um osso ancestral que vira uma nave sem governo. Kubrick descobriu a dobra do tempo, e do futuro nos observa, com seu olhar vazado por todas as rotas errantes da poeira estelar.

O DESPREZO PELA NAÇÃO



O número de prisioneiros brasileiros nos EUA aumentou mais de 1.500% em um ano, informa-nos a Folha. A maioria vem da mesma região de Governador Valadares, o que significa que existe crime organizado crescente de expatriação, por conivência (no mínimo, por omissão) de todos os governos. Numa cidade pequena, todo mundo sabe quem faz o serviço. Até repórter de TV foi lá entrevistar os caras que faturam alto enviando gente para fora. Essa fuga em massa não é busca de oportunidades, é desprezo pela nacionalidade, da qual as maiores manifestações, de um lado, é o trabalho sistemático de catequese anti-Brasil feita pela televisão e, na outra ponta, a maneira cretina como os argentinos nos tratam, tanto oficialmente quanto nas gargalhadas do Maradona.

MAD MARIA - Não foi por acaso que Mad Maria, o projeto baseada no romance de Marcio Souza, ficou engavetado mais de 20 anos e só agora foi ressuscitado. Porque toca num tema de sobrevivência nacional, a formação do território. Era de interesse da pregação do Brasil Grande que a criação do Acre ficasse sob o manto dos segredos oficiais, pois era a época de usar o nacionalismo para abrir as pernas para os estrangeiros (um paradoxo que se opunha à política pública nacionalista da era Vargas). Hoje, quando o objetivo de entregar o país para a política de anexação de territórios do império americano está praticamente consolidado, o projeto foi desengavetado (é sempre importante reiterar a falsidade para torná-la real). A nova série da Globo (de apurada carpintaria e magníficos atores) prega a falta de legitimidade do estado do Acre, que pertenceria à Bolívia e que teria sido tomado pela esperteza da nossa diplomacia e nossas ligações com potentados estrangeiros como Percival Farquar, dono da estrada de ferro Madeira-Mamoré, tema que esqueleta a trama. Para isso, desveste de grandeza uma figura da mitologia militar, o marechal Hermes da Fonseca, na época presidente eleito da República pelo voto direto (e não, portanto, autor de golpe de estado); e outra da mitologia civil, Ruy Barbosa. O objetivo é convencer o país que não merece ter o território que tem, pois conseguiu tão vasta porção do planeta graças aos expedientes mais perversos e ilegítimos. Na mentalidade colonizada que nos domina, o importante é logo entregar tudo para os americanos, já que aqui existe uma coisa execrável, o chamado povinho brasileiro, alvo de tanto deboche (como acontece sempre e como pôde ser visto no último Hebe, em que uma anciã pobre que fumava palheiro era comentada pela galinhagem explícita desse programa horrível). Souza escreveu seu romance-denúncia em plena ditadura civil/militar, no tempo em que ela se segurava pelos atos institucionais, pela fraudulenta fachada de democracia de cartas marcadas (o que se sofisticou nesta era da urna eletrônica) e de entrega da soberania via aumento da dívida externa. O autor queria colocar a Amazônia no mapa da literatura brasileira e deu conta do recado de maneira brilhante, mas seu texto agora serve, não para revelar o Brasil, mas para ajudar a entregá-lo.

ATORES - Por contrato, o ator Antonio Fagundes obriga a Globo a colocar na sua mão sucessivas gerações de beldades mal saídas das fraldas, para exercer seu poder senil de galã canastrão. Foi assim com Adriana Esteves, Malu Mader e agora com nova starlet que se desmancha diante do seu sorriso alvar e sua cara coberta de grossa camada de pancake. Fagundes é sempre ruim na televisão (no cinema, pela mão de Cacá Diegues, convence, mas torra o saco quando fica com sua cara de sonso metido a comedor, coisa que fez em inúmeras produções). Em compensação, a mini-série tem Juca de Oliveira, avassalador como o engenheiro responsável pela ferrovia, a caracterização perfeita de Rui Barbosa feita por esse grande ator que é Renato Borghi, o gênio de Othon Bastos encarnando Hermes da Fonseca e a graça de Ana Paula Arósio, de rosto tão luminoso que parece ter sido feito sob encomenda pela mão de um Criador inspirado. Como tudo na Globo, há uma soma de plágios, que jamais funcionam como citações, pois a rede maior é devoradora de tudo e não é por nada que seu slogan é não tem para ninguém. Há plágio do filme ganhador do Oscar O Piano na cena de apresentação de Arósio, há um clima de David Lean no uso do trem e na reprodução do inferno da selva e há a lembrança de Visconti nas seqüências palacianas (assim, os diretores da Globo tornam-se os cineastas que invejam). Nas amplas escadarias e saguões, os personagens globais entregam-se ao seu ofício mais importante, que é passar seus objetos de poder (no caso, bengalas, luvas, chapéus) para serviçais, o que eles fazem com um prazer explícito. Os primeiros capítulos das produções da Globo sempre são caprichadas, depois tudo vira um roça-roça dos velhos poderosos como Fagundes com as estrelinhas emergentes. Como se o público fosse obrigado a agüentar os desmandos da testosterona vencida, entronizada nessa rede que representa o poder sem limites dos negociantes, empenhados em vender a maior nação do mundo para os bandidos que, antigamente, foram escorraçados daqui a bala, como diria o Marechal Floriano Peixoto.

RETORNO - Envio mensagem para o doutorando da PUC-SP Lauro Marques, mas o e-mail volta. Escrevo para Carlos Alberto Souza enviando meu texto sobre Edward Said, mas o e-mail volta. Não consigo me sintonizar com algumas pessoas, algo há.

25 de janeiro de 2005

GLAUBER, A PROFECIA NO DESERTO




Nei Duclós

Glauber Rocha é o tempo presente amaldiçoado pela História. Sua pregação é feita no deserto (rural em Deus e o Diabo, urbano em Terra em transe) porque o deserto, pela ausência, destaca o humano entregue ao horror das contradições. Nele, a palavra incorpora o futuro quando é murmurada pela fúria, e elimina a esperança para repor a verdade. Não há, no cinema mundial, nada que se compare ao maremoto dessa criação sem limites, que nos abate em ondas toda vez que vemos a imagens que produziu, como se o delírio fosse nossa única realidade e a guerra nosso destino. Glauber assume o que há de pior na cordialidade brasileira, esse comportamento ciclotímico ditado pelo coração. Ele colocou a vontade no cérebro cozinhado pelo fogo e nos encara com o gênio do seu carisma.

MALDIÇÃO - Lembro a primeira das inúmeras vezes que vi Deus e o Diabo. Foi no cine-teatro Carlos Gomes, em Uruguaiana, espaço que deveria ser tombado e que foi destruído. As pessoas levantavam fazendo gestos indignados e saíam aos berros. Não havia concessões naquele filme maldito. Mas não havia como escapar de Corisco abrindo os braços e gritando num zoom demolidor: está vendo, padinho Ciço, pobre não morre mais de fome; estou matando todos eles, com meu fuzil e minha adaga de São Jorge; está aqui ela! Foi quando Othon Bastos tornou-se o maior entre seus pares e nos cuspiu fora como se fôssemos as vítimas nordestinas daquele cangaço cultural. Glauber nos transforma em formigas predadoras que precisam ser eliminadas. Ele nos tortura com o longo assassinato de uma criança nas mãos do beato negro e nos coloca sob a capa horripilante de Antonio das Mortes, aquele personagem que, quando atirava, fazia Luis Buñuel saltar da cadeira. Qual a profecia desse cinema? A de que estamos condenados pelo que somos e morreremos na guerra que nosso ódio e nossa vergonha produziu. Quando leio Ferreira Gullar na Folha confessando, candidamente, que estamos reféns dos políticos que só pensam em nos tungar, não agüento sua fé na falsa democracia em que estamos mergulhados. Ainda vai haver uma guerra grande nesse sertão, predisse Antonio das Mortes. Estamos nela. Sua irresponsabilidade política, sua irresponsabilidade política, seu anarquismo, diziam Othon e Paulo César Pereio em Terra em Transe. Glauber eliminou as ilusões no messianismo revolucionário encarnado por Jardel Filho e colocou Glauce Rocha como a percepção torturada da consciência impotente. Sabemos onde estamos metidos, mas não queremos assumir esse horror.

ESCÁRNIO - Glauber nos desperta pelo susto e corta nossas cabeças. Seu inferno é o Brasil, país que tenta decifrar filmando seu avesso. Estávamos ainda embalados pelas alegres comédias da Atlântida quando o sol tomou conta da tela e havia sangue nela. Os tiros fajutos do faroeste americano sumiram quando Glauber engatilhou o rifle de sua saga. Jamais haveria Sam Peckinpah com seus massacres em câmara lenta se antes Glauber não tivesse destruído as soluções bem comportadas da violência. Glauber bebeu em fontes diversas para compor sua trama. Reproduziu os planos das procissões de A fonte da donzela, de Ingmar Bergman, e do La Strada, de Fellini. Bebeu em A árvore dos enforcados (The hanging three, 1959), de Delmer Daves. Nesse filme, Glauber retirou o visual do seu Antonio das Mortes (a capa até o chão, o chapéu, a arma), inspirado no mendigo encarnado por George C. Scott (visual que foi chupado até o osso, não de Daves, mas de Glauber, por Sergio Leone). Glauber tinha bebido em Terra Trema, de Visconti para filmar seu Barravento. Ele não é, portanto, um cineasta de geração espontânea. Mas quando decidiu fazer um filme com a câmara que comprou por ter vendido o fusca doado pela família, resolveu ir fundo, queimou seus navios para não mais voltar. Pagou por isso e morreu de infecção generalizada no Portugal gelado de Sintra. Foi morto pela indiferença dos contemporâneos, pois tudo Glauber poderia agüentar, menos a espera ansiosa dos outros pela sua morte prematura. Então foi-se, carregado pela sua mensagem. Ainda não merecemos Glauber Rocha, a profecia que cumpriu-se no seu corpo torturado e que se cumpre agora, na guerra total do país que desistiu de ser uma nação e que empresta sua bandeira para o escárnio internacional.

24 de janeiro de 2005

CAPRA, AS REVELAÇÕES DO REMORSO





Nei Duclós

Texto ruim é quando o redator tem má vontade com o tema que aborda. As resenhas sobre cinema cometem esse pecado a toda hora. O chamado crítico cinematográfico sofre de megalomania. Como tem acesso gratuito a todos os filmes e precisa se manifestar diariamente sobre o que vê, procura dosar sua opinião para torná-la variada (ou pretensamente isenta) diante do leitor. Pura bobagem. O cinema só funciona como assombro e revelação. As asneiras publicadas neste domingo, 23, na Folha de S. Paulo, num pequeno texto cheio de equívocos sobre Frank Capra e seu filme magnífico, A felicidade não se compra, me colocou em questão o sentido dessa obra que encanta o mundo desde quando foi lançado em 1946. Gostamos do filme porque somos babacas, ou como disse a Folha, infantis? Ao contrário. Porque o filme é uma descida aos infernos e lá o entendimento acontece porque a percepção humana muda, ou melhor, amadurece.

AMÉRICA - Para enxergar Capra, não devemos fugir do que ele representa na sociedade americana. Sua obra-prima funciona como mensagem de adaptação à dura realidade da depressão e da guerra. Foi feita logo depois do fim da guerra, quando os americanos precisam reforçar a auto-estima (agora virou virose mortal, mas na época ela estava impregnada de algo que parecia melhor). Reforça a importância da família, da vida do cidadão comum que não teve maiores chances. Poderia ser um hino ao conformismo, não fosse o crescente ódio que toma conta do coração do personagem principal, interpretado por James Stewart. A fonte desse ódio são os bons sentimentos e a ética. Ele queria ser recompensado por ter sido correto com o irmão, ao qual cedeu a vez para que se formasse na faculdade, enquanto ele substituía o pai eliminado pelo poder econômico da especulação financeira. Mas foi excluído (o irmão pagou-lhe com ingratidão), teve que ficar, casou e caiu na armadilha, a mesma que tinha acabado com seu pai. Seu ódio então vem à tona (onde ficaram os bons sentimentos?), com tudo. É uma obsessão perversa auto-destrutiva que o leva, numa noite de Natal gelada, diante de um abismo, pronto para o suicídio. A aparição de um anjo tão perdedor quanto o herói do filme é um dos maiores achado do humor capriano. Os dois precisavam de uma segunda chance. O anjo, que seria recompensado com um par de asas se fosse bem sucedido na sua missão (ascensão social no céu americano, tão comum no cinema deles, que é pura representação da nação imperial-corporativa). O anjo usa a argumentação sedutora e depois a revelação dos resultados do ódio ao qual o outro sucumbiu.

CRUELDADE - Não há, no cinema americano, seqüência mais sinistra do que a visita que Stewart faz à sua não-vida, às conseqüências da sua vontade de jamais ter nascido. É muito semelhante à história de Dickens, em que o velho avarento é levado por um espírito para visitar momentos importantes da sua vida, em que ele vê o Mal que encarnou em sucessivas manifestações de egoísmo e crueldade (roteiro filmado mil vezes). No caso do filme de Capra, o terror tem a mesma intensidade, que leva o espectador a um sentimento de perda e de remorso. Antes do arrependimento, que é uma apoteose, a Queda no poço do remorso é uma descida aos infernos digna da melhor literatura. Essa seqüência foi inteiramente chupada no filme De volta para o futuro II, em que o jovem que volta para casa vê sua família e sua cidade destruídas por um ato que ele próprio cometeu no passado. A visão aterradora da cidade entregue à sanha assassina é de um tremendo impacto, mas Capra é o original e seu trabalho é infinitamente melhor. Por isso fica difícil acreditar que existam críticos que acham A Felicidade não se compra um filme que sofre de infantilismo. É uma obra-prima que enfoca a vida comunitária e suas resistências contra o Mal. É o fim da ingenuidade e o início do amadurecimento de uma nação que precisava conviver com o ódio na origem de uma paz precária, como a que foi estabelecida no fim da II Guerra. É uma representação política da destruição social provocada pela pirataria financeira, o que lhe dá uma atualidade incômoda.

OPINIÃO - O final feliz é apenas o regresso ao lar de um ex-condenado, alguém que esteve no front e viu a Morte de frente e que agradece por ainda estar vivo e possuir o pouco que tem. Nada mais humano, e do jeito que Capra fez, absolutamente genial. Não se deve ter vergonha de se emocionar diante de um filme como este. Se pedirem sua opinião, diga que gostou, sem restrições, e que você está ao lado da Criação e contra seus sanguessugas.

RETORNO - Parte da Argentina adiou seu encontro com a grandeza. O deboche de Maradona e dos jornalistas que o cercavam às gargalhadas, retransmitido ontem pelo Fantástico, em que confessa o crime de ter dopado Branco na Copa de 90, é típico da molecagem irresponsável, de quem quer ser o maior e não passa de um imbecil. Pobre Maradona. Desfaz com o comportamento execrável o que construiu na sua carreira (que está, pelo que se viu na TV, cheia de falcatruas e sacanagens; achávamos que era apenas a manita, mas há também las boletas).

21 de janeiro de 2005

GODARD, QUANDO O CINEMA PERDE A FORMA




Nei Duclós

Godard é quando a crítica cinematográfica, transformada pelas ciências da linguagem, vira cinema. Seu instrumento mais importante e fecundo é a técnica de distanciamento, inventada por Bertold Brecht para desalienar os espectadores de teatro e denunciar as ilusões da dramaturgia. O marxismo brechtiano que desaguou nessa desdramatização fez com que os protagonistas, dentro e fora de cena, catequizassem o público sobre as armadilhas a que estavam condenados pela fábrica de ilusões de massa, engendrada pela indústria do espetáculo. Desde sua estréia, em Acossado (crônica policial que denuncia a narrativa como criminosa) até a brilhante e genial Histoires du Cinema, longo ensaio sobre os cem anos da invenção dos irmãos Lumière, Godard mudou o cinema para sempre e levou-o ao patamar da radicalização revolucionária, fonte de um futuro cultural que ainda está no berço.

AVALANCHE - Lembro Gilbert Gick, o mais brilhante e debochado espécime da minha geração, saindo dos filmes de Godard, aos quais eu o levava meio contra a sua vontade, puxando elegantemente o casaco com as duas mãos, olhando para todos os lados e murmurando alto: hãgh (ou hum, hum, sim, sim), entendi tudo. Nada tínhamos entendido porque o cinema tinha perdido a forma. Não que virasse uma coisa deformada, mas era a prova de que num filme pode caber muito mais do que o corte, o close, o desfecho, o gesto. Godard incluiu na tela todos os elementos possíveis, a começar pela avalanche de citações tiradas de todos os livros importantes, tornando cada estréia uma compacta soma pré-big-bang, que aos poucos íamos desenrolando pela memória e pela repetição das sessões. O narrador, em Godard, é uma costura interminável de tudo o que é possível pensar e criar sobre cenários, personagens, tramas. Ele confessou recentemente que sempre foi mais um produtor do que um diretor, pois armava o circo para que os atores pudessem fazer nele o que quisessem. Godard está sempre remando contra a corrente do pensamento coletivo, uma forma de demonstrar que um indivíduo é o que conta, e que sua individualidade é de um espírito livre, que serve de insumo para a liberdade interior de cada um. A secura, a extravagância, a câmara que não sai do lugar ou gira vagarosamente em 360 graus, a sinceridade, a fala direta para a platéia, tudo em Godard é a constatação de que a liberdade não tem limites e que não podemos nos entregar para o pensamento pronto, para a análise óbvia, para a conclusão apressada.

LAMA - O mundo ainda levará muito tempo para digerir o que ele produziu nestes 40 anos (e continua produzindo). O importante é que Godard emociona pela razão, raciocina pela imagem, distancia-se pela palavra, foca o imprevisto, nos surpreende, nos incomoda e nos tira do sério. Nenhum artista contemporâneo tem essa capacidade e os outros cineastas radicais, como Wim Wenders, devem a ele o que há de mais precioso: o cinema como reinvenção permanente, a necessidade de habitarmos o espírito com o que há de mais alto e profundo, a agilidade e a complexidade da mente humana e a soma de todas as culturas num só plano, como se fosse possível nos encolher até o limite para então, pela mão de Godard, podermos explodir num infinito de universos. Godard não perde tempo na sua vida terrena. Não veio a passeio e jamais concordará com qualquer palavra que tu ou eu disser. Ele é o humano na sua maior verdade: a de que não sabemos quem somos e jamais saberemos, mas enquanto isso poderemos provar o gosto das estrelas, mesmo que tenhamos apenas dois pés enterrados na lama.

IMPACIÊNCIA - Devemos a Godard a liberdade que nem sonhávamos ter. Ele nos pegou meninos, desprevenidos, cheios de fumaças na cabeça e nos empurrou para o abismo. Enquanto caíamos, ele nos fez ver o longo travelling do engarrafamento brutal em Week-end, o louco explodindo-se em dinamite em Pierrot Le Fou, a graça de Jean Seberg vendendo jornal em Acossado, a estranha e bela e doce Ana Karina em inúmeros filmes, e a monumental Histórias do cinema que nenhum Scorcese, este metido inominável, jamais poderá almejar. O cinema já tinha alcançado o esplendor no começo do século 20 com Aurora, de Murnau, o mais impressionante filme mudo de todos os tempos, inacreditável que tenha sido feito quando aquela arte ainda estava engatinhando. Já tinha passado pelos expressionistas alemães, com Fritz Lang na frente, já tinha deslumbrado o mundo com Jonh Ford, quando Godard entrou em cena com seu olhar impiedoso. Estávamos sós em nossa pretensão anti-dialética quando Godard também nos ensinou a pensar, o que nenhum escritor jamais conseguiu fazer. Ele usou até o osso a capacidade dessa invenção audiovisual e nos marginalizou com sua extrema genialidade. Por isso Godard é um impaciente, porque foi longe demais para os seus contemporâneos. Vi o pobre do Michel Piccoli tentando replicar a carga de cavalaria verbal com que Godard o premiou em Histoires du cinema. Não havia trégua naquela luta. Godard exigia que Piccoli, que estava no topo das comemorações do centenário do cinema, assumisse a radicalidade que representa a sétima arte. Mas Piccoli é um ator limitado, apesar de eficiente e boa-praça, jamais será um criador como Godard.

LUZES - Ninguém pode com Godard, o monstro que nos tirou da sessão das quatro, que inundou a sessão das oito, que destruiu todas as sessões e tirou o enquadramento do lugar, desligou as luzes que se apagavam vagarosamente para criar um ambiente de ilusões. Jamais o perdoaremos por termos perdido com ele a inocência. Tornamo-nos adultos, para desgraça dos nossos corações despedaçados. Mas era a única forma de encararmos o Tempo. Por isso temos em Godard nosso Mestre, aquele que maltrata os admiradores, aquele que acende a luz e diz: você navega num espaço desconhecido, acorde. Venha ver o universo pegando fogo. Saiba qual a chama em que te transformaste, sucumba à palavra que te espera com garras afiadas, como um tigre aparentemente manso, mas que no fundo é uma pantera encarnada no terror de estarmos presentes nesta época de ruínas, neste vendaval de sobras, neste clarão de poesia bandida, neste rasgo fundo de um vulcão que está chegando para nos desafiar. Godard, Godard, o que fizeste com as pessoas que estavam acomodadas naquele cinema? Salvaste a todos nós, Godard. Você nos salvou enquanto esperávamos o inevitável Apocalipse. Se ainda estamos vivos, é porque você permitiu.

20 de janeiro de 2005

PRIMEIRAS LETRAS, PRIMEIROS FILMES


Implicam com a expressão primeiras letras, já que todas elas são as primeiras, e as únicas. Mas letra aí é tudo: beabá, leitura, escrita. Tomei contato com a literatura por meio de um livro escrito por uma inglesa, O Pequeno Lord (Little Lord Fauntleroy, de Frances Hodgson Burnett, como informa o Google), todo ilustrado, colorido, papel lustroso, brilhante, capa dura. Desse livro não lembro de nada, apenas de que foi devorado por mim várias vezes. Leio agora a versão online e descubro que se trata da história de um órfão de pai. Livro infantil que, no primeiro capítulo, trata da morte: eis como era a literatura para crianças antes que a imbecilidade tomasse conta em forma de livrecos ridículos. Mas se o primeiro livro foi um encanto, o primeiro filme foi uma experiência assustadora. Me avisaram que eu iria me assustar com as grandes imagens do Cine Carlos Gomes e eu cumpri a escrita. Saí aos prantos do cinema, antes do filme acabar. Nem sei do que se tratava.

!INFÂNCIA - Levei daniduc um dia para ver Guerra nas Estrelas, de George Lucas, e ele foi colhido pela paixão dessa saga para sempre. Hoje, 20 de janeiro, daniduc completa 31 anos e eu fui o primeiro a vê-lo, com o rosto contraído e reclamando da luz forte do hospital, dando algumas demonstrações de suas queixas com sua voz emergente. De cenho muito carregado, nasceu sério, às duas manhã, no momento em que a chuva despencava na capital capixaba. Estávamos, como sempre, tentando morar perto do mar. Descobri o humor de daniduc quando ele ainda estava no berço. Qualquer boagem que eu fazia ele despencava de tanto rir. De lá saímos depois de um ano, deixando no primogênito a marca do gosto pela praia. É um mistério o que nos arrebata na infância, mas é o que fica para sempre. Fico imaginando o que as crianças devem pensar do mundo quando freqüentam um colégio caindo aos pedaços, com salas detonadas e professores mal pagos. O que pensam ou sentem quando ligam a TV e só vêem porcaria. O que acham das cidades horripilantes cheias de barulho, sujeira e violência. Há uma extrema irresponsabilidade dos adultos no Brasil, país que tem horror à infância, tanto é que dela tiram órgãos, prostituem, matam. O máximo que conseguem produzir é o mercado dos bons sentimentos: melhor fazer capoeira do que ficar na rua roubando, dizem essas gracinhas caridosas que aparecem na TV dando lição de moral. Agora vem o presidente Lula e aterrisa 170 milhões de dólares no meio do ermo para reinaugurar o projeto Rondon, mais um sinal de que o governo dele é continuísmo não apenas de FHC, mas da ditadura instaurada em 1964, pois o Rondon é uma idéia do auge ditatorial. No lugar de levar garotos e garotas de classe média para explicar como a coisa funciona para o pobrerio da periferia do Brasil, precisa trazer as crianças do meio do mato para conhecer o mar. Isso sim seria um projeto de integração. A meninada da selva ou do cerrado viria ensinar boas maneiras para os folgados de classe média e teriam a chance de entrar em contato com a grandeza da divindade salgada.

MEDO - O que fizeram com a obra infantil de Monteiro Lobato (que deslumbrou sucessivas gerações; para mim, Reinações de Narizinho é um dos maiores livros da literatura brasileira de todos os tempos) é mais um ato criminoso da televisão. A Emília é uma patroazinha. O nariz arrebitado serviu de álibi para o destrato com pessoas mais simples. A Dona Benta da Nicete Bruno é um desastre. Nicete e seu marido Goulart são muito precários. A gente sabe que eles estão fingindo o tempo todo. Atuar é fingir, disse um dia Tonia Carrero, mostrando assim explicitamente que nada entende do seu ofício. Atuar é ser de fato. Atuamos o tempo todo. Nos colocaram um nome e encaramos esse batismo seriamente. No fundo, somos criaturas anônimas, saídas do ventre da terra. Nada nos garante que somos o nome que nos deram. Mas já que esse é o jogo, a arte da atuação serve-se dele fartamente. Criar um andar, inventar um pensamento à parte que inspira a fala, assumir o papel integralmente, nada disso tem a ver com fingimento. Sabemos quando o ator é ruim quando ele dá aquelas respiradinhas rápidas antes da fala . Nisso se especializam pessoas como Tony Ramos. Elas fungam o ar para emitir o texto. Quem viu Renato Borghi em ação no Oficina (que agora, parece, entrará em nova e fulgurante fase) ou Stenio Garcia em Cemitério de Automóveis, ou Othon Bastos no filme São Bernardo, de Leon Hirzmann, sabe do que se trata. Atuar é virar a criatura que aparece em cena para nos assustar. Tenho medo até do Buster Keaton.

19 de janeiro de 2005

VER E OUVIR EM CLODOVIL HERNANDES


Nei Duclós

Alta moda é para os olhos, janelas que se abrem para a admiração (até os anos 60) ou para o desejo (hoje). Clodovil faz parte do primeiro time, o da roupa que é criada com exclusividade para ser vista pelos pares (pessoas do mesmo nível social) de quem usa e serve de objeto de consumo comparável às jóias. Como esse tipo de roupa só pode ser usada uma vez, a reprodução em massa pela mídia veio atender a necessidade de exposição não apenas da arte criada pelo estilista (e que precisa ser vista por um número maior de pessoas), mas dos papéis sociais que ela reitera. É um nicho difícil de lidar, por implicar moeda virtual raríssima, o talento, e depender da palavra contaminada pela sugestão e o conhecimento. É preciso saber para convencer, mas ser convincente significa também ter a frase maleável, ao ponto, para dobrar cada cliente. A palavra final sobre o desenho criado é uma situação que soma as duas forças principais em Clodovil: ver (que é enxergar antes dos outros, pois a criação será consumida pelos olhos e, portanto, depende do crivo do artista visionário); e ouvir o que ele tem a dizer com sua segurança que nada mais é do que uma técnica altamente desenvolvida de inventar ilusões.

EXCLUSÃO - Sua costura verbal, que extrapolou o círculo da alta moda e inundou a televisão a partir da TV Mulher, da Globo, usa o visual como suporte nos sucessivos programas dos quais participa. Na longa entrevista que deu ontem, dia 18, para o Programa do Tom, na Record (e que continua hoje), Clodovil apresentou-se com a elegância do seu estilo (duas coisas que nem sempre andam juntas) e desandou, como de costume, seu verbo cevado nessa profissão que impõe pelo que se sabe, mas também pelo que se sabe dizer. Não há limite para um estilista decidido a marcar época, assim como não pode haver fronteira entre o que é dito com sinceridade e o que é apenas colocado para fazer parte da conversa. Como não há responsabilidade alguma entre as pessoas esclarecidas do país, que deixaram a moral a cargo dos meliantes, Clodovil entra nesse vácuo com suas armas: a aparente sinceridade (que de tão convincente torna-se profunda, numa paródia imperfeita do célebre poema de Pessoa, em que ele finge ser o que realmente é); a obviedade de seus insights (como sua insurgência contra a imagem da mulher vadia, tão badalada pela mídia) e o improviso inspirado no nicho social que o desenvolveu, a aristocracia brasileira, fruto da má distribuição de renda. Como o sonho de toda a população é fazer parte desse Olimpo, para escapar do terror da sobrevivência a qualquer custo, Clodovil deita e rola com suas tiradas afiadas na exclusão social.

NOBREZA - Ao conviver décadas com as pessoas que usufruem o que o país oferece de melhor, ele adquiriu a plena consciência do sucesso que faz quando esnoba com seu talento, seu estilo, suas roupas, suas jóias e sua biografia. Sua grande sacada é colocar-se como parte dessa aristocracia (a porção nobilitada pela arte bem sucedida) sem transparecer que dá importância para isso, especialmente quando diz desprezar o dinheiro, o que é um tapa de luva no novo-riquismo. O aristocrata pode estar em queda financeira (como o Barão, interpretado por Raul Cortez, e que anda sumido de Senhora do Destino), mas não perde o aplomb. Colocando-se como parte legítima da nobreza, quando foi ungido pelo talento, Clodovil consegue jogar com sua carta mais contundente, a frase que precisa excluir a tudo e a todos, pois é assim que ela foi acostumada a ser, por dever de ofício.

VINGANÇA - Clodovil funciona como contrabando na atual baixaria da televisão. Como foi erradicada a qualidade, o alto nível artístico, a criação verdadeira, e a população ficou à mercê da mediocridade e da imoralidade, Clodovil surge sempre como um tornado vingativo, que por fora é peça dessa falta de escrúpulos da TV, mas que no fundo vem de mais longe e denuncia, sem querer, o quanto o Brasil deve aos seus talentos, já que um deles, dos mais notórios, confessa que abre a caixa de ferramentas verbais e comportamentais para não ser eliminado. Eles já teriam me matado, disse ontem para Tom Cavalcante. Alguns desses objetos que ele lança a esmo atingiu Cacá Rosset, que tentou peitá-lo no programa e acabou indo embora. O espírito de vingança que domina seu espírito, e que ele precisou usar ao longo de 68 anos de vida, cobre Clodovil do que ele menos precisa: a apelação, que sempre pode ser justificada por sua argumentação afiada. Mas que deveria ser deixada de lado, junto com sua capacidade de fazer inimigos, que o deixou ainda mais só. Sua solidão representa o isolamento da classe social que escolheu viver, e que ao ser vista pelo que Clodovil apresenta ao vivo, ainda não foi esquecida. Mas que ao ser ouvida deixa um travo amargo no coração dos telespectadores.

RETORNO - Tratar Clodovil pelo que representa e não pelo que sugere com sua auto-desconstrução permanente (e que é refeita no minuto seguinte) é um desafio para o texto. E para o autor que precisa relevar o dilúvio de mal estar que o estilista provoca ao desancar as pessoas.

18 de janeiro de 2005

OS DONOS DA TV NO INFERNO




Estavam todos lá, em volta da mesa preparada pelo Mal. Esfregavam as mãos de tanta ansiedade, pois eles queriam comentar o que aprontaram no Brasil Indefeso, uma invenção que não é só deles, mas da qual fazem parte como pilares sólidos. Grande Irmão, Moralista Universal, Palhaço Gargalhada e John Barrinhos tiraram de repente suas máscaras e se revelaram: atrás do bigodinho mofino de um, da careca respeitável de outro, da vozinha do catequista impoluto, da risada sinistra, estavam as caratonhas vermelhas do Inominável. Quem toma a palavra? O critério é o Ibope, claro.

TRAÇO - Vou abordar nossa maior invenção, diz Grande Irmão, que fala sempre no plural majestático, já que se acostumou a fazer parte de um clã, todos com o mesmo nome, para que confundam e não identifiquem um centro do Poder Absoluto. Nossa maior invenção não é sempre fazer a mesma novela durante quarenta anos e impingir ao povo o dia inteiro, isso nem é maldade, é pura alegria. Também não é mentir o tempo todo no noticiário, para que a política fique na nossa mão e a gente possa extorquir bilhões de dinheiro público, já que os bonequinhos que colocamos lá nas cadeiras dos governos fazem parte da nossa coleção de marionetes. Também não é selecionar gostosonas para animar programa infantil, só para subornar a criançada masculina e ensinar a meninada feminina a ser vaca desde a mais tenra idade, coisa que é reforçada pelas empregadas das novelas, que estão sempre levando descompostura de patroas de todas as idades. Também não é comprar todos os espaços da transmissão esportiva e só devolver ao público um monte de abobrinhas, ditas por apresentadores babacas que sacodem os ombros de tanta patetice, deixando o esporte escondido na gaveta. Ou ainda comprar todos os filmes do mundo e não transmitir nenhum, apenas as asneiras americanas e aterrorizantes, para que a população possa sentir muito medo e se imbecilizar ao máximo. Nossa maior invenção, além da interrupção comercial a cada dois segundos, ou o merchandising do café da manhã ao horário nobre, é o Programador do Traço. Ao dizer isso, Grande Irmão olhou para as ferozes caratonhas ao redor, que se espremiam para não rebentar em riso convulso. O Programador do Traço é aquele ente que colocamos na madrugada, que fica olhando fixamente para o Ibope online. Na hora que firmar bem o traço, ou seja, quando houver zero audiência, quando todos forem dormir exaustos de esperar para ver algo que preste, ele então coloca Shane, de George Stevens, A Ostra e o Vento, de Walter Lima Jr., algo inesquecível. Essa é a nossa maior maldade. E se por acaso as pessoas levantarem para tomar água e sem querer ligarem a TV e o Ibope começar a subir, a gente improvisa e coloca uns trinta minutos de Big Brother. Aí então é uma maravilha. Volta à estaca zero.

BOLUDOS - O Big Brother é uma grande invenção, continuou Grande Irmão. As pessoas agrupadas compulsoriamente num espaço fechado, pessoas desconhecidas que estão ali apenas pela ambição de serem famosos e ganharem um milhão de reais, pessoas que não formam uma família, é a representação perfeita do público que queremos formar e ter sempre para nós. Um público fechado em si mesmo, no individualismo doentio, pessoas vazias de tudo, numa casa que não possui um livro sequer, se agredindo mutuamente e consumindo coisas. Isso é um espetáculo para o público real: ver vagabundas coçando a bunda no banheiro, idiotas abrindo as pernas peludas para a câmara focar a zona castral, onde se destacam volumes de boludos insuportáves. Ah, isso é a pura delícia. E ainda mais colocamos um poeta, digo um pateta apresentando a porcaria. Mas o Big Brother é só para preencher aqueles claros da programação em que as pessoas teriam alguma esperança de ver algo que preste. Serve para aumentar o desespero e assim deixá-los todos na nossa mão. Não é o plano perfeito?

GALINHONA - Depois dessa explanação, pouco tenho a dizer, falou Barrinhos. Minha maior invenção é o Gilberto Barros. Colocar dois quilos de pancake na cara fofa dele e obrigá-lo a fazer cara séria para perguntar à Rita Cadillac se ela tinha feito o teste do sofá, e ela responder que sim, é realmente o ponto alto da espiritualidade do Mal, que encarnamos. O Show da Fé, aquela coisa execrável em pleno horário nobre, é outra invenção supimpa, mas nada se compara ao Gilbertão, que está batendo recordes: vamos conseguir que ele fique 24 horas por dia no ar, de segunda a segunda. Mas não posso deixar de citar os filmes de porrada, que adoro transmitir. Parabéns, interrompeu a vozinha do Moralista Universal. Isso até ganha dos meus programas de exorcismo. Meu plano é fazer a televisão que o meu povo pediu para que eu possa implantar minha igreja em todas as mentes do País. Acho que vou conseguir. Sou apoiado pela isenção do Imposto de Renda para religiões. Arrecado zilhões dos trouxas nos cultos e invisto na minha rede. Palhaço Gargalhada falou por último. Como decano do Mal, teria muito a dizer, mas viu que seus discípulos aprenderam bem a lição. Ei, Moralista, vamos trocar novamente: te devolvo a Galinhona e tu me traz de volta o Pedófilo do Fim-de-Semana, que achas? Rá rá raiii.

RETORNO - Claro que isso jamais seria dito na mesa do Mal, pois seria uma falta de gentileza, mas outra grande invenção do Grande Irmão é dispensar profissionais de todos os calibres e níveis para tentar imitar a líder nos outros canais. Isso mantém firme a posição no ranking. Ninguém tem o cacife de reproduzir o espectro global. Gastam-se milhões em nomes famosos para que façam uma clonagem estúpida do que conseguiram aprontar na rede maior. Sempre dão com os burros nágua e a coisa se mantém intacta. É preciso citar também a sacanagem com a TV a cabo: criaram um monte de canais que são simplesmente reprodução das barbaridades da TV aberta. E o que é melhor: cobram caro e colocam um monte de propaganda. O Mal não tem fim na televisão brasileira.

17 de janeiro de 2005

HATARI, O FILME PERFEITO


Implico com a crítica de cinema que tenta devorar a obra de arte como se fosse um chocolate no armário, um bibelô de açúcar na estante, um objeto de consumo pessoal. Não é. Costuma ser tratada como tal. Chega-se até a enfeitá-la para adquirir mais valor, especialmente o intelectual, a pose de sabedoria em relação ao que foi feito com maestria. O que conta não é a posse sobre qualquer objeto que contenha a obra, a exibição de conhecimentos eruditos ou rasteiros, mas o resgate feito pela memória e a criação. Um filme nos acompanha como um anjo da guarda, e se transforma em algo completamente diverso do que vemos escrito sobre ele. Sorte que vivemos na época do Google, em que tudo pode ser pesquisado. É fácil saber o que disseram François Truffaut ou Rogério Sganzerla sobre Hatari!, de Howard Hawks. Eu prefiro vê-lo como o filme perfeito. Sua estrutura narrativa pode ser comparada a um cristal dividido em gomos luminosos, que confluem para o mesmo ponto. Cada gomo é um capítulo da aventura narrada e o ponto comum (e final) é o amor que se concretiza entre seres desenraizados.

CAPTURA - As palavras não trazem o filme de volta, nem fazem justiça ao que ele é (a obra como foi concebida e realizada). Podemos apenas lembrá-lo com nosso verbo escasso, depois de vê-lo, sem cansar, mais de um milhão de vezes. A captura de animais selvagens na África é uma frase que nada diz sobre Hatari! É algo diverso. É a composição musical de uma saga, em que o alvo (o animal que precisa ser agarrado para o zoológico) impõe o ritmo e o perfil da narração. Assim, o filme torna-se veloz quando os caçadores tentam pegar o felino, perigoso quando o jipe provoca o rinoceronte, cômico quando se trata de enredar dezenas de macacos com a ajuda de um especialista em fogos de artifício (Red Buttons, como Pockets, antológico). Cada captura (o gomo do cristal) é um primor de estratégia. E as relações humanas (um grupo de homens que vê-se surpreendido pela fotógrafa vinda de longe) rolam num acúmulo permanente de algo que não tem lugar naquele safári, os sentimentos (há apenas camaradagem, inevitável quando qualquer grupo enfrenta o perigo) . O amor se manifesta sem ser convocado e usa a chantagem para se consumar. A seqüência final, em que todos os animais se soltam, pode ser vista como a representação dessa manada de emoções guardadas dentro dos personagens, que diante da perda desandam como avalanche. Mas o mestre não deixa que esses fios soltos temporariamente arruínem a perfeição da narrativa ao longo de 160 minutos. É preciso que tudo fique amarrado e isso se faz contra a vontade do personagem encarnado por John Wayne. Ele precisa assumir o amor, apesar de querer continuar com a mulher (a atriz Elsa Martinelli)sem dar bandeira dos sentimentos. O filme então define o papel de cada um: o casal, que ocupa o centro, e os coadjuvantes, os que ajudaram a buscar na savana a emoção selvagem que era para ser guardada como relíquia. O amor não cabe numa jaula e é preciso ceder para que ele ocupe seu espaço. Homens turrões como Hawks sempre foram sentimentais. Mas nunca deram bandeira. São espécimes extintos, como o primoroso cinema que inventaram.

FUTEBOL - O futebol recomeça pela voz de Luciano do Vale no campeonato das seleções sub-20, na Colômbia, transmitido pela Record. A técnica narrativa do número 1 é como asa delta que pega carona na onda do vento: ele descreve o que a bola sugere no movimento que faz em direção ao gol. Por isso flutua e envolve. Mas precisa repetir 500 vezes o slogan da rede para dar espaço a comerciais como o da Skol, que tem um muito pior: ser redondo é ser do bem. É uma frase horrorosa pela falsidade e mau gosto; quer dizer que ser quadrado é ser do mal? É o que tenho dito: o Falso Bem está na moda, faz parte do mercado dos bons sentimentos. Outra chatice é o seu companheiro de narração que diz: carimba, Luciano, carimba. Repete isso toda vez que tem gol. Como teve cinco no jogo de estréia contra o Equador, ele ficou nesse carimba até estourar a paciência. Mais grave é o que está ocorrendo com o futebol brasileiro: a máfia emergente (a partir dos anos 90) que surgiu à sombra da pirataria financeira internacional, toma conta de clubes para lavar dinheiro. Chegam pagando dívidas, daqui a pouco começam a mandar matar. Com a conivência da imprensa, dos torcedores, dos clubes. Todos acham uma gracinha. Mas que aquele argentino não vale 50 mijones de dôláres, isso não vale. Não me venham com essa. Falei o quê? Não disse nada...

RETORNO - No editorial da edição número 18 da revista Sagarana, o escritor e professor de narrativa Julio Cesar Monteiro Martins toca na ferida: o perigo que corremos em formatar mentes com a publicidade e o discurso político, enquanto a literatura ocupa a marginalidade do espaço social. Vale a pena ler Julio Cesar, que adverte sobre a importância de reagirmos a tempo para evitar o pior. É bom sempre lembrar que o cinema atingiu o esplendor graças à cultura formatada pela literatura, tanto entre os roteiristas quanto entre os cineastas. Fazer um filme era como escrever um romance. Filmar um roteiro, com aqueles talentos reunidos, era beber nas mais altas fontes do espírito humano.

16 de janeiro de 2005

OS RASTREADORES, DE JOHN FORD




Não escrevo sobre cinema, escrevo sobre o que cinema faz comigo. No centro do colar de obras-primas, alguns filmes compõem uma espécie de Capela Sistina. Os Rastreadores (The Searchers, ou Rastros de Ódio), de John Ford, é um deles. O plano mais copiado de toda a história é a de Ethan (John Wayne) saindo pelo deserto afora, trôpego, com os pés para dentro, com aquele caminhar que ele construiu, mas em ruínas, afastando-se da câmara, que o filma de costas, emoldurado por duas tarjas pretas laterais. Essa dupla escuridão funciona como guardas para a luminosidade dolorosa que se descortina ao fundo. A câmara está dentro da casa destruída. Nela, o anti-herói perdeu tudo: a família que não era dele, mas do irmão, e que servia como bálsamo para sua vida errante, parentes que foram massacrados pelo inimigo. Sua missão agora é a vingança. Precisa recuperar a sobrinha raptada. A queda e a humanização de Ethan é a saga mais impressionante dessa arte que nos colheu meninos e nos implantou a noção da brutal complexidade humana.

GUERREIROS - Vi aos 14 anos essa obra absolutamente obrigatória (não vê-la é como cometer suicídio cultural). Era, para mim, o típico filme para a sessão das quatro: um faroeste colorido com o grande ator (mais importante do que Brando, segundo Tabajara Ruas, que elenca as obras-primas das quais Wayne participou: além desta, Hatari, de Howard Hawks, No Tempo das Diligências, Rio Vermelho e The Quiet Man, também de Ford, entre outras). Mas era muito mais do que isso. Cada fotograma colou-se à minha memória por muito tempo e só mais tarde, em Porto Alegre, cidade da cultura, descobri a origem e a importância do que tinha visto. Trata-se de um anti-faroeste, pela revelação de um mocinho do mal. Ethan quer matar a sobrinha, que tinha virado índia. Essa era a sua vingança: não deixar que o inimigo lhe roubasse a alma. Não permitiria que alguém do seu sangue passasse para o outro lado. Por isso atira sem parar nos búfalos para impedir que seus algozes se alimentem, numa seqüência de sangue no meio do cenário gelado, em que seu coadjuvante, Jeffrey Hunter (nós, os garotos daquele tempo) tentava impedir o transe do homem maduro, enlouquecido de dor. Era o tipo de coisa complicada demais para quem via apenas dois lados em eterno conflito. Só depois vi a importância de Scar (Cicratiz), o chefe índio que fez o rapto. Ford coloca os índios no mesmo nível dos brancos: são guerreiros que se opõem no ódio total, numa época em que os americanos estavam ganhando a parada e empurrando os nativos para o final infeliz. Há nessa busca interminável da garota desaparecida uma saga que desafia a esperança do espectador. Queremos logo o desfecho, mas Ford não dá trégua. Quer que a gente desista, para que o anti-herói fique só. Ele então se defrontará com a solução do impasse. É quando surge, correndo, desesperada, essa atriz magnífica, ainda muito menina, que é Natalie Wood.

ÉTICA - Ethan encontra a sobrinha finalmente e vai matá-la. Mas não consegue. Essa impossibilidade inventa a fresta onde se manifesta o milagre. Ele a levanta no colo e nós a levantamos junto. Nós somos aquele movimento, nós carregamos aquele corpo assustado e subimos com a câmara que se ergue com a pincelada definitiva. Vamos para casa (let?s go home), diz Ethan, a fase mais esperada do cinema. É uma decisão pessoal do pistoleiro que foi à caça de quem queria resgatar. Não foi porque seu companheiro muito moço implorou para que não cometesse o crime. Era porque diante de um penhasco, que é a ética, o mar em fúria (a vingança) nada consegue. A onda bate, e volta. O monumento permanece. A ética é a herança maior de John Ford, não a falsa ética de hoje, do Falso Bem, do mercado dos bons sentimentos. Mas a ética sofrida, conquistada em meio à coragem de assumir totalmente o que é humano. A volta dos três para a casa, onde a sobrinha irá ficar, é puro vento e majestade. O velho mensageiro louco que descansa na cadeira de balanço, a mulher de avental que olha para o horizonte junto com o marido, a chegada densa, vagarosa, dos retirantes, o desfecho dessa obra genial (da qual comento o fim porque ela tem mais de 40 anos) que fez a nossa cabeça e nos arrebatou para a grandeza da arte que foi destruída.

GARUPA - Sim, acabaram com o cinema. Mataram de várias formas. Um delas foi a morte mal explicada de Natalie Wood. Brigou com o songa monga do marido, o ator Roberto Wagner (o queridinho do Casal 20), e, bêbada, na madrugada, saiu do barco onde o casal estava, para se afogar. Não foste atrás dela, Wagner, não a levantaste até a altura maior da nossa emoção, não a carregaste nos braços para salvá-la. Deixaste aquela jóia morrer perto de ti, que deveria resguardá-la. Aquela mulher que nos deslumbrou em Rebeldes sem causa (ou Juventude Transviada, de Nicholas Ray), e que ao pular para desencadear a corrida suicida de automóveis tornou-se o símbolo de uma época. Aquela mulher que conformou-se com a perda do amor por Warren Beatty em Splendor in the Grass, (de Elia Kazan) e que foi-se para sempre, sumindo no horizonte conformada com a vida medíocre que levaria. Aquele olhão bonito, aquele rosto de princesa, aquele sofrimento por ser tão bela e talentosa. Por isso chegou a nossa vez. Nós colhemos Natalie do chão (ela treme o corpo todo) e a suspendemos em nossos braços e dizemos para ela: vamos voltar para casa, para a morada da sétima arte, hoje assassinada, mas que de vez em quando ressuscita, quando os donos do mercado cochilam, quando permitem, sem querer, que haja acertos. Nós a colocamos na garupa e a levamos para a segurança, para o lugar onde ficará com os seus. Aprendemos isso na sessão das quatro, quando havia cinema e quando tínhamos idade suficiente para cultivar a esperança.

RETORNO - Urariano Mota me incentiva a escrever mais sobre essa arte que um dia foi a mais importante. Atendo a seu pedido. Todos esses textos serão enfeixados um dia (quando houver disposição das editoras) num volume. O título é Todo filme é sobre cinema. Nele, fatalmente haverá um texto sobre Hatari, o esplendor da estrutura narrativa.

14 de janeiro de 2005

OS ATORES EM DAVID LEAN


A arte maior do grande cineasta pode ser resumida apenas num plano. Jivago cruza a Rússia para salvar a família, mas queria mesmo era encontrar Lara, refugiada no interior. A demora do encontro, representada pela interminável viagem de trem que corta o deserto nevado, deixa o espectador quase sem esperanças de que eles voltem a se ver. Mas isso acontece, e de forma magistral: surge a imagem esplendorosa, um girassol que explode em todos os tons do amarelo, de Julie Christie, que olha para nós com seus olhos azuis-violeta, como se estivesse vendo, sem acreditar, o amor que enfim chega de longe. Ficamos diante de Julie como um abismo em frente à majestade da montanha: ela está incrédula, parece contrariada na sua fulgurante aparição cheia de promessas, de um amor que não se cumpre e que, ao redescobrir uma nova chance, cai em desespero de felicidade contida. O mais impactante é que esses poucos segundos antológicos fazem parte do cinema mudo. A música (inesquecível dessa obra-prima) se cala e só existe aquele olhar, da atriz que tornou-se eterna com esse papel sem igual.

CICATRIZ - Lembro a idiotia com que foi recebido Doutor Jivago. Melodrama barato, diziam, torcendo o nariz. Reacionário, urravam os que hoje devem estar adorando o governo revolucionário do sr. Lula. Não viram, de verdade, o filme. Começa pela narrativa. O protagonista é Alec Guiness, que faz o papel do irmão comunista do doutor apolítico. Ele busca uma pista da família desaparecida, a filha que foi perdida no redemoinho da história. Encontra o que procura na figura esquálida, assustada, de Rita Tushingan, que herdou do pai médico o talento para a música. O terremoto russo é descrito por Guiness de forma clássica. A partir de sua narração, entramos numa história pautada pelo desencontro, o amor, a crueldade, o remorso. Quando Rod Steiger (o Mal) rouba Lara do refúgio dos amantes, Jivago corre desesperado escada acima para ver pela última vez o que lhe foi tirado. Mas a janela coberta de neve não deixa. Ele então destrói o vidro para olhar o trenó sumindo no horizonte. Falando assim, parece besteira. Mas aquele filme, que tens cortes tremendos, como o da aparição de Strelnikov (Tom Courtenay) e sua cicatriz no rosto ao lado da bandeira vermelha, não pode ser tratado como uma bobagem qualquer. A multidão que pega o trem parece ser movida pelos grandes cartazes mostrando os líderes da revolução russa. Isso é David Lean, o cineasta que faz falta nesta época de atores alimentados por maizena (Brad Pitt, George Clooney, Denis Quaid), de cineastas broncos (Scorcese e Tarantino) de raras atrizes (só se salvam algumas, como Juliane Moore e Merryl Streep). Para onde foi a sétima arte? O cinema dito comercial, pela sua excelência na época de ouro, gerou seu oponente, o cinema dito de arte. Depois disso, Independence Day e outras merdas absolutas. Levem para o Missouri, disse John Wayne para seus cow-boys, no clássico Rio Vermelho, de John Ford. Só a seqüência de rostos saudando a convocação para inaugurar mais uma aventura nos campos de gados e tiroteios vale dez mil porcarias produzidas hoje.

PETER O´TOOLE - Ontem, num ato falho, ao citar os atores de Lawrence da Arábia, deixei de mencionar Peter O´Toole. Sua criatura, o tenente inglês magro, obsessivo, louco e efeminado, é, junto com o Godfather de Brando, a mais impressionante invenção que um ator já conseguiu produzir no cinema. O´Toole é também muito injustiçado, mas é de primeiríssima ordem. Levantei com aquele cara todas as manhãs por dois anos e não sei como suportei, confessou ele depois que as filmagens acabaram. Ninguém poderá superá-lo na seqüência que mencionei ontem, quando ele tentou desmistificar a fatalidade. Seus olhos fuzilavam Omar Sharif quando chegou com o companheiro moribundo, salvo por ele. Tirou então levemente a máscara de pano que encobria seu rosto totalmente queimado e disse a frase definitiva: Nothing is written. Outra: Não quero fazer parte do seu big push, disse para o general sem escrúpulos (Jack Hawkins) o tenente louco de raiva, que imediatamente deu um salto com as mãos nas costas em carne viva. No prisioners, gritou, ensandecido, quando se vingou dos turcos massacrando um pelotão que se retirava. Limonade, with ice! falou, duro, para o garçom da sala dos oficiais que tentavam expulsar o garoto sobrevivente da travessia do Sinai. Sou do tempo em que o cinema provocava emoção. Hoje, estou afastado. Cansei de tantas personagens pararem em algum lugar, tirarem as pitchongas e urinarem em cena. Deu para mim. Um filme que quero ver e o verão ainda não deixou é Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado, aquele que sabe filmar.

13 de janeiro de 2005

A SAGA DA SITUAÇÃO LIMITE

Meu tipo de filme favorito é aquele que mostra alguém enfrentando uma situação limite. Não é o caso dos que procuram forçar a barra e se metem em encrenca para provar alguma coisa. Mas de pessoas (passageiros de navios ou aviões, por exemplo) que são colhidos por tempestades, avalanches, acidentes em geral. Saber como vão se virar naquele momento e como a história vai se desdobrar é o que me prende a atenção. A origem está em Robison Crusoé, que é ficção em cima de uma história real. Alguns filmes de segunda, como O vôo da Fênix e o Destino do Poseidon, marcaram época. O exemplo mais recente foi divulgado pela televisão: o garoto colhido pelo maremoto que agarrou-se a um pedaço de pau e encontrou uma balsa vazia cheia de côcos. Essa é a saga que me interessa, quando a paisagem hostil acaba cedendo e dá uma chance para haver sobreviventes.

LAWRENCE - Nunca mais vi O vôo da Fênix. Foi dirigido por Robert Aldrich e lançado em 1966. É com James Stewart que, muito velho, faz o papel do piloto turrão que duvida do especialista em aeromodelos. Este sugere que transforme o Boeing num avião menor, para que escapassem da armadilha do deserto. A tensão entre os dois costura a narrativa. O Destino do Poseidon é mais complicado e inverossímel: um grupo de pessoas tentar sair de um grande navio emborcado. O cenário de ponta cabeça, a performance de Gene Hackman, o terror das pessoas que vão sucumbindo, tudo transforma esse filme em algo inesquecível. Algumas seqüências antológicas de Lawrence da Arábia fazem dele o maior filme de todos os tempos. A começar pela travessia do deserto do Nefu, rumo a Akaba, a cidade tomada pelos turcos que deveria ser invadida por um punhado decidido de guerreiros. Toda a seqüência em que um dos acompanhantes da caravana dorme e cai do camelo e é resgatado abaixo do solaço pelo teimoso tenente inglês, que queria provar a inexistência da fatalidade, é um dos mais emocionantes momentos do cinema. Há ainda toda a seqüencia antológica de Lawrence da Arábia cruzando o deserto do Sinai na companhia de dois garotos, que culmina com a visão impressionante de um navio trafegando pelo deserto. Lawrence adorava o deserto e jamais desprezou sua força. Era franzino e obsessivo. Foi colhido pelo destino e enlouqueceu na guerra. Li seu livro quase póstumo, de memórias da fase posterior a essa, em que alistou-se com nome falso no exército inglês e lá sofreu horrores. Os historiadores adoram desconstruir o mito, mas fico com a versão de David Lean, o gênio absoluto. Nenhum filme se compara a esse, pela intensidade da ação, pelas imagens poderosas, pela atuação de atores fundamentais como Anthony Quinn, Omar Sharif, Alec Guiness, Anthony Quayle, Jack Hawkins. É impossível deixar de lembrar a majestosa aparição de Sharif, todo de preto, apenas como um silueta no horizonte do deserto, cena sem som e absolutamente louca porque, quem vê pela primeira vez, não sabe o que está acontecendo. Funciona no cinemascope. Sou do tempo em que cinema era outra coisa. Um detalhe era absolutamente maravilhoso: ninguém mijava em cena, como acontece hoje, em TODOS os filmes. Que alívio!

TUBARÕES - O menino que se salvou com a jangada vazia já é um filme na imaginação de todos nós. Podemos ver a cena em que ele é colhido pelo mar em fúria, em que perde toda a família, e é jogado para o meio do nada, agarrado a um tronco de árvore. O desespero de quem se vê diante da morte, a esperança quando se aproximava jangada, o terror de descobri-la vazia, a abnegação pela vida no consumo dos côcos e finalmente a salvação. Soube há tempos da história de três pescadores que, depois da tempestade, perderam tudo, até os remos. Tinham apenas uma corda e um pedaço de pau. Com isso eles laçavam pequenos tubarões pelo rabo, davam uma paulada no bicho, depois retaliavam e chupavam o sangue. Tiveram a sorte de pescar com as mãos um capacete desses de operário de construção, no qual recolhiam água da chuva. Foram descobertos sete meses depois. Trata-se da mais longa permanência de náufragos perdidos no mar. Esse heroísmo me agrada. Essa situação limite me interessa. Sobrevive quem foi escolhido pelos deuses. Não obrigatoriamente os que se prepararam para isso. Na hora decisiva, todos são iguais, ninguém é imortal.

RETORNO - 1. Quando viu Lawrence pela primeira vez, ainda garoto, Steve Spielberg disse: é isso que eu quero fazer. O resultado é toda a sua carreira e uma cópia escrachada: o Império do Sol, que era um roteiro que Steve queria produzir para Lean filmar. O gênio disse para o aprendiz: faça você. Quem viu, sabe: Spielberg chupa seqüências inteiras de outra obra-prima de Lean, Doutor Jivago. Lean é o maior. Quem pode ficar ao seu lado é Akira Kurosawa, aquele que produziu maravilhas como Sonhos, acusado de ser um Kurosawa menor. Não existe Kurosawa menor, apenas críticos medíocres.2. Google informa: O Vôo da Fênix foi refilmado e está sendo lançado este janeiro. Tenho certeza que o mocinho da nova versão, o tal Denis Quaid, vai mijar em cena. Ou ele ou outro qualquer. Apostem.

12 de janeiro de 2005

O REFÚGIO SELVAGEM

Devorar a paisagem para iludir o próprio pânico de estar vivo é a fonte da atual onda dos esportes radicais. Está todo mundo confinado pelo medo, que gerou as cidades insuportáveis, convivendo com vizinhos inóspitos e isso parece não ter solução. Então parte-se para a agressão ao que resta de selvagem no planeta, para dizer: posso estar lá, posso sair desta situação, posso dominar o que não domino aqui, no inferno urbano (que pode ser uma monótona cidade do interior). Nenhuma montanha te escala, então para que subir até ela? Os morros são domesticáveis, viram favelas, mas a montanha é uma divindade. Ela guarda uma avalanche, um vento mortal, uma temperatura impossível, mais de mil abismos. A montanha é o jeito de a terra dizer: há limites para você, comporte-se.

DESERTO - Ontem, morreu mais um no rally do deserto. Ficou para sempre na paisagem que desprezou. A história do sujeito é lapidar. Aos 47 anos, tinha feito aquele trajeto 13 vezes, venceu duas. Antes da última prova, anunciara sua aposentadoria, mas a vaidade o chamou de volta. Tombou a 170 quilômetros por hora no meio do nada (Não há nada no deserto, diz o príncipe Feisal, interpretado por Alec Guiness, em Lawrence da Arábia, o maior filme de todos os tempos). Sempre me pergunto o que quer dizer entrar numa máquina, ultrapassar todos os limites de velocidade para vencer o próximo. O que há de esporte nisso? Para mim, esporte é o futebol, uma criação genial do espírito humano, que cria um ambiente à parte para ser jogado e baseia-se na tensão geométrica entre retas e curvas. Isso é realmente humano. Mas ter 10 milhões de dólares para doar aos pobres da Ásia, como aconteceu com o Schumacher, por estar há anos pilotando carros de corrida, me parece um mistério total. Já não há carros suficientes neste mundo? Mortes aos milhões em todas as ruas e estradas com essa invenção hedionda, enquanto vivemos ermos de trens, outra grande invenção, em que o transporte é limitado por uma via pré-fixada, que agride ao mínimo a paisagem. O trem é eterno, mas o carro vai desaparecer um dia. Meter-se numa cabine dessas geringonças e desenvolver 300 quilômetros por horas em trajetos catatônicos é tão estúpido quanto deformar o corpo com a radicalidade esportiva. Vejam as ginastas olímpicas, me parecem deformadas. E os nadadores, com aquele peitoral ridículo e triangular, não são monstruosos? Sem falar na cara angulosa de montanhistas e corredores. Todos se destroem na busca incessante de recordes e vitórias. Decreto para todos uma boa quilometragem de rede. Da rede, dá para ver a montanha. A minha se chama Majestade.

TREINAMENTO - O esporte substitui completamente o estudo. As pessoas se destacavam em primeiro lugar na sala de aula e em segundo na quadra. Isso foi invertido totalmente. Fiquei sabendo que mais um jogador de futebol saiu de ambulância do campo, nesse torneio São Paulo Júnior. O cara teve um ataque epiléptico. Não pode jogar futebol. Mas se não praticar esporte, qual sua posição? Muitas vezes, qual seu futuro? O esporte permite apenas a ascensão social lotérica, o que é fonte permanente de conflito social. Para um sujeito como Junior Baiano ganhar 60 mil reais por mês, quantos pastam no anonimato? Já o preparo que a educação dá é muito mais democrático, isso se ainda tivéssemos uma sociedade que valorizasse as pessoas que suaram para ter acesso ao conhecimento. Temos hoje o treinamento, que subsitui a formação. O treinamento é algo animal, serve para adaptar as pessoas aos ditames do mercado. O que mais existe são as linguagens corporativas hegemônicas. Você precisa aprender a falar alguma língua. No esporte radical jovem light é galera-irado-iuhúú, conforme reproduz a mídia sem parar, já que ela é a mais interessada nessa joça.

PAREDÃO - Falo para o amigo Urariano que os médicos não gostam da língua, por isso inventaram uma à parte, absolutamente impronunciável. Não consigo engolir a explicação científica do maremoto, de que houve uma fricção ou sei lá o quê entre duas placas tectônicas, que provocou o terremoto no fundo do mar. Duvido que hajam placas que bóiam numa coisa chamada magma. Quando desconstruirem essa e outras besteiras, como o tal big-bang (que ainda está fazendo ruído, ha ha ha, conta outra), lembrem de quem não acreditou em nada. Prefiro a linguagem telúrica, poética, a que foi construída em milênios para estabelecer o convívio entre a humanidade e a paisagem. O maremoto para mim foi provocado pela criatura viva que é a terra durante o sono: ela mudou de lado e pronto. No pico da montanha, 35 graus negativos te esperam. O paredão de pedra pode te pegar no meio do salto. Quando entro no mar, rezo. Depois conto meus conflitos. Por fim peço que lave meu espírito de todo o mal. No meio disso tudo, me divirto. A paisagem não dá a mínima bola para você. Você é que precisa saber como chegar até ela. Desprezá-la não é um bom expediente.

RETORNO - Minha implicância com os esportes radicais gerou algum retorno. Nada como a polêmica. Sempre fui contra, mesmo aos vinte anos. Eu achava que os esportes em geral eram uma forma de discriminar os mais fracos e despreparados. Nós, os ruins de salto, corrida, levantamento de peso, nos vingávamos tirando o primeiro lugar nas inúmeras matérias. Os craques ficavam furiosos e nos perseguiam no recreio. Hoje não tem nada disso. É preciso entrar em campo e chutar canela, senão ninguém nota você. Acabaram as notas, as reprovações, os estudos. Nade, corra, pedale: ainda é a primeira bateria. Forças!

11 de janeiro de 2005

O DESPREZO PELA PAISAGEM

Esporte radical é o desprezo pela paisagem. O que é um rally senão jogar areia em cima do nada, passar voando sobre casebres e vilas perdidas e posar para as câmaras? Para que subir o Aconcágua senão para dizer que venceu a montanha, apesar de todo o papo politicamente correto de respeitar a natureza? Faz parte da arrogância do nosso tempo, em que as pessoas acham que tudo podem. Ficam testando os limites do ser humano, iludidos que poderão espichar esses limites até o infinito. O maremoto ensina: a paisagem não é tão dócil, pode te destruir facilmente. Para mim, isso é falta de infância: o assombro e o medo que a natureza impunha sobre nós fazia com que jamais desprezássemos um só graveto. Havia lobisomens, bruxas, assombrações. A lua estava tão perto que parecia cair. Tudo isso sumiu da percepção das pessoas criadas em apartamentos e que ficam desafiando os gigantes como se não houvesse perigo de retaliação.

REPORTAGENS - Minhas reportagens favoritas são aquelas que não consegui fazer. A mais antiga e importante é sobre o rio Pirajussara, em São Paulo, que teria o título de Não se mata um rio. Morei perto dele quando ainda estava a céu aberto e fazia estrago todos os anos por esta época do verão. Depois colocaram uma tumba em cima, a avenida Eliseu de Almeida, mas o bicho é selvagem e continua vivo, arrasando quarteirões. É um rio enorme, que cruza a cidade. Seria uma matéria sobre a judiada bacia hidrográfica paulistana e o Pirajussara seu principal personagem. Até hoje lembro o estupor da minha primeira visão do Tamanduateí. Vi o grande rio pela primeira vez depois de anos morando em São Paulo. Era época de cheia e o animal estava até a borda, correntoso como ele só. Ontem, assisti a um resgate de um homem desesperado que brigou com a família e se atirou no Tamanduateí. Foi difícil resgatá-lo. Pois esse é um rio fantástico, completamente desprezado pela megalópole em ruínas. Um rio é uma bênção. Anderson Petroceli me envia algumas fotos que fez na minha visita a Uruguaiana e lá aparece o Uruguai em sua plena majestade. As fotos foram feitas a partir do Colégio Santana, quando Anderson, Tabajara Ruas e eu visitamos o irmão Arno, nosso professor de História do Colégio. O rio, a ponte, a Argentina do outro lado: a presença da paisagem respeitada por todos os habitantes daquela região. Não se brinca com o mar, advertiram os pescadores do Índico. Nenhum pescador entende o desplante dos banhistas. Parece que nem sei. Os caras se atiram alegres na água como se estivessem num play-ground. Estão puxando as barbatanas do gigante. Ele pode explodir. Corra que o frio da montanha pode cair 35 graus em poucos minutos. O rally Paris-Dacar matou um ontem. Desça a cachoeira pendurado numa cordinha para nós ver. Atire-se no abismo com um mochilinha nas costas. Mostre que você é Deus. Saia no horário nobre. Mate-se para provar que é imortal.

RITA - A reportagem que mais gostei de não-fazer é uma que me pautaram no Estadão e que era sobre os ricos de São Paulo. Era tão absurda e cheia de exigências que quase desisti na hora em que vi a pauta. Mas cheguei a insistir e não deu outra. Enviei uma carta para a redação (eu era frila) e disse que abria mão da pedreira. Tinha que entrevistar os Suplicys, por aí. Coisa horrível. Talvez o melhor da reportagem seja imaginá-la e depois ir dormir. Pois um texto pronto é sempre frustrante. Toda reportagem que consegui fazer me deixou assim assim. O que conseguia apurar era monstruoso de tanta coisa (medo de falhar em algum ponto). Sintetizava tudo, caprichava, chegava a me emocionar numa primeira leitura. Depois que a reportagem saía, adeus. Até hoje lamento um perfil que fiz da Rita Lee para a revista Nova e que está no ar na Internet. Foi toda reescrita, ficou muito ruim. A primeira versão era melhor, mas a editora achou que estava muita séria e resolveu buchinchear um pouco. Colocou até o detalhe dos chinelinhos da cantora, coisa que eu nunca colocaria. Lembro que, no texto original, linkei Rita com São Paulo, bem antes da música Sampa e isso ainda me deixa mais puto. Sempre tem um boi corneta para te cortar as asas. Mas a Abril era assim: camisas quadriculadas bufantes, peitos de pomba, olhares para o infinito, aristocracia total. Hoje, não sei. Nunca mais entrei lá. Sorte que anos depois publiquei quatro páginas de ouro sobre Rita na Istoé. Essa não está na Internet.

REVELAÇÕES - Uma vez tentei fazer uma capa para a Bravo! sobre o Edu Lobo. Parei na gendarmeria que o cercava na época (uns tres anos atrás) e que nem conhecia a grande revista cultural criada por Wagner Carelli e que agora caiu nas garras da Abril. Fico cismado com a ausência do Edu na mídia. Li um trecho de entrevista de Chico Buarque dizendo que está preocupado ou impressionado, não lembro, com o avanço do obscurantismo e do reacionarismo das pessoas. É efeito dominó: a ausência do talento e da grandeza estimula a burrice e ajuda o retrocesso. Você abriu mão de aparecer na mídia, Chico. Precisa comparecer, senão todos os espaços serão tomados pelos chitãozós e chororinhos e moniques evans e tudo o mais. Nenhum especial de fim de ano com grandes artistas. Só o Roberto Carlos aparece. O resto é sangalice pululante. Grandes artistas precisam revelar novos grandes artistas. Se deixar na mão da canalha, só vem merda. Elis nos trouxe Belchior, Renato Teixeira, entre tantos outros . Nara Leão nos trouxe Betânia, Caetano e este Gal. Hermínio Belo de Carvalho ressuscitou Cartola. Não é hora de descansar, como disse uma vez Dom Helder Câmara, numa entrevista a Sérgio Pinto de Almeida, na Folha dos anos 70. O Brasil continua na ditadura.

RETORNO - 1. Vi no Esporte Espetacular da Globo uma prova do tal triatlo, feminino. Fiquei alarmado com a brutalidade da prova. As gurias nadavam, depois pedalavam e ainda por cima corriam no asfalto quente. Pois não bastava. Era apenas a primeira bateria. Foram três! Isso parece assassinato. Como é que as criaturas se submetem a semelhante tortura? Depois vêm as materinhas sobre os exageros da paranóia esportiva, com gente morrendo por todo o lado. Vamos instaurar a Grande Prova de Rede. Já tenho boa quilometragem de ficar na rede na varanda. Estou no páreo. 2. Esqueci de colocar como o pior comercial do ano o do Beto Carrero Word. Ganhou dos seus principais concorrentes, o Beto Carrero Windows e o Beto Carrero Linux.

10 de janeiro de 2005

O ESTRANHO VERÃO DO MAREMOTO

O ar está quente, disse um garoto às oito da noite, quando a praia deveria oferecer um clima um pouco mais amigável. Surfistas e pescadores confirmam: o mar está estranho. Repuxos diferentes, correntes inéditas, uma espécie de mau comportamento do gigante de sal, ferido de morte em outro canto do mundo. Notei que a água está morna, em qualquer hora do dia. Acabou aquele refresco de onda e espuma. O sufoco é tão pesado que nenhuma ameaça de chuvinha de verão resolve. A terra mudou seu ponto de aglutinação, dizem os castañedistas. Mas se o litoral está assim, diferente, o Brasil continua igual. Basta ver o tour dos amiguinhos do filho do presidente Lula.

TIGRADA - Não dispomos de classe média, nos diz Mino Carta. Classe média é um conceito europeu e lá as pessoas sentem orgulho de estarem no meio, vivem bem assim e possuem direitos conquistados com luta, negociação e voto. Aqui, não. Temos apenas os miseráveis de um lado e do outro, a aristocracia. Meu pai é dono disso tudo, deve ter dito o filhinho do presidente para seus 14 amigos que usaram avião da FAB, lancha da Marinha, dependências da Granja do Torto e outros acecipes do dinheiro público. A classe média força a barra para ser aristocrata por isso não acha bem (como se dizia nos anos 50) reclamar de qualquer coisa. Opor-se é coisa de pobre. Não chore, me dizem toda vez que me oponho frontalmente a alguma coisa. Quem se aproveitou dessa mentalidade foi o jovem que cuidava de um cativeiro onde ficou por 21 dias um empresário paranaense seqüestrado. De pés e mãos amarrados e com venda nos olhos, foi tratado a uma fatia de pão por dia. Implorava por comida. Mas o garotão fez o seguinte para abafar os gritos da vítima: colocou o som bem alto. Os bandidos tinham alugados um casarão num bairro metido a chique e os vizinhos não piaram contra a contravenção. O baticum criminoso encobria um crime hediondo. Soube hoje pelo Diário Catarinense que os estrangeiros que compram apartamentos em Floripa exigem isolamento acústico. Sabem da doença social do Brasil, a do som que extrapola todos os decibéis e é colocado na maior caradura pelos meliantes de sempre. Os donos das imobiliárias tremem de emoção ao informar sobre essa exigência estrangeira. Adoram servir os gringos. Deveria ser por lei o isolamento acústico e prisão para quem fizer barulho. Ruído insuportável em veículos automotores dá punição, prevista no Código Penal. Mas são todos gente fina, ninguém diz nada. Pois o importante é manter as aparências: a mente inquieta, o nariz ereto e o muxoxo intranqüilo. Mas aposto que basta o mar ameaçar com alguma coisa, sai todo mundo no pega para capar. Aí cai a máscara da aristocracia fajuta que nos assola. A tigrada, como define Mino Carta.

CONVÍVIO - Converso com minha filha na varanda abafada e descobrimos o quanto perdemos de alegria da convivência com as pessoas, pois normalmente todo mundo gosta mesmo é de exibir status, ser mais que os outros de alguma forma. Se não são posses ou dinheiro, é conhecimento e sabedoria ou realização profissional, ou tudo isso junto. Lembro do meu pai com a casa cheia, no maior divertimento. Havia os conflitos e as defecções (gente que nunca mais aparecia), mas existia muito mais tolerância, imagino. Hoje, as visitas gostam de aplicar as famosas dizidas sobre tudo, especialmente sobre como os outros (nós) deveriam viver. O que mais se força nos monólogos concomitantes (já que vivemos na era do fim diálogo) é a disposição de enquadrar os outros em papéis sociais subalternos. Alguns sinais são evidentes: Tudo bem? nos perguntam. Respondemos que sim, tudo bem. Mas tudo bem, MESMO? dizem, como a declarar o quanto estamos necessitados de tudo, o quanto fomos sempre pobres e jamais alcançaremos outro status que não esse, precário e nefasto, o quanto procuramos esconder, em vão, nossa profunda miserabilidade e o quanto a pessoa é muito superior e pode até fingir que está ali para ajudar. Mas ninguém ajuda, com raríssimas exceções. Quando me perguntam tudo bem mesmo eu coloco sempre a Véia no meio. É bom invocar a mãe alheia, assim calam a boca. E nem tente ficar impune com alguma ação criativa na sua vida. Decidiu mudar e se deu bem? És culpado. Os outros poderão te depedrar de alguma forma. O espírito do capitalismo, me disse um dia Eduardo San Martin, não é vencer, mas evitar que todos os outros vençam. Bingo.