A premiada série da HBO Angels in America impressiona pelo impacto visual, a performance dos atores, a crueza e qualidade dos diálogos, a intensidade do desespero, a abordagem de temas aterradores e a aposta na esperança em pleno Apocalipse. É o que a arte americana tem a nos oferecer. Aqui, fomos submetidos ontem a algo bem oposto: a fala de Duda Mendonça à nação, na véspera da viagem de seu subordinado, o presidente, ao país que ajudou a sucatear a indústria brasileira e que é também uma ditadura.
DELÍRIO - A palavra é o delírio seminal. A partir dela, os anjos da América mergulham no horror, na coma dos condenados. A peça de Tony Kushner, que virou mini-série dirigida por Mike Nichols, bate na civilização das aparências, desmascarada pela peste. Sem nada a perder, os que vão morrer passam por três processos: ao descobrirem a condenação, reagem com ironia; ao se convencerem da morte certa, entram em parafuso; ao cruzarem o umbral da agonia, se resignam; e ao enfrentarem o tribunal da passagem para a eternidade, cobram. O maior ator do mundo, Al Pacino, e o magnífico Justin Kirk, festejado ator de teatro, estão magistrais em cada uma dessas fases. Ao redor dos moribundos, brilha a estrela maior, Meryl Streep, o talento e a contundência de Jefrey Wright e mesmo Emma Thompson, sempre tão previsível, neste trabalho também participa da galeria de grandes interpretações. Trata-se de uma arte que não foge da raia, que enfrenta seus demônios sem pedir misericórdia, apostando alto na humanidade dos seus personagens, colocando para fora o que parecia estar oculto. Uma lição de coragem para nós, brasileiros, que sempre escorregamos pela tangente quando se trata de pegar o touro a unha. O que temos é uma América hoje em guerra frontal contra o presidente que a levou para o morticínio, com toda a sociedade mobilizada para impedir as reeleição do maldito. Aqui, a publicidade se encarrega de pintar de cor-de-rosa a horrenda realidade que nos circunda, como se estivéssemos "em crescimento" e como se a política de arrocho da economia fosse, no fundo, benéfica. Logo depois do pronunciamento de Lula, os telejornais pipocavam com notícias sobre o aumento do desemprego e a guerra civil em que estamos metidos até o pescoço, enquanto brincamos de celebridades.
CHINA - A China é um país que cresce graças ao trabalho escravo e à falta de liberdade. É a maior ditadura do mundo, que está sendo festejada pelo governo brasileiro como se fosse a salvação da nossa vida. A indústria chinesa, que em geral falsifica tudo, inunda o mundo com quinquilharias graças a uma triangulação poderosa: seus produtos são comercializados aqui via Estados Unidos, que assim ganha na intermediação. Nossa indústria, cega como ela só, deixou-se sucatear pelas porcarias chinesas, desde a área dos têxteis (onde os chineses se destacam pela falta de qualidade) até a de guarda-chuvas. Todo mundo tem um guarda-chuva chinês quebrado, torto, imprestável. Eles dominam o mercado via economia informal. Há uns cinco anos, trabalhando na Fiesp, escrevi um discurso para um diretor da casa pronunciar diante da ministra de comércio da China. A autoridade ficou furiosa com o que coloquei lá. Era assim que a indústria brasileira tratava esse tipo de parceiro, que agora virou prioridade do fracassado governo Lula.
CANNES - Tudo indica que Walter Salles leva a Palma de Ouro. Se não levar, pelo menos fica a nossa torcida. O cinema, a Internet e os livros assumiram a vanguarda da cultura, enquanto a música e a mídia ficaram a reboque, transformaram-se em veículos da direita internacional. A indústria dos livros e a do cinema florescem, mas a mídia e a música (esta, pressionada pela tecnologia da rede) ficam para trás. Mas tenho cds na mira: o de João Gilberto em Tóquio e o dos filhos de Caymi em homenagem ao pai. Se Dorival Caymi chorou ao escutar esse cd, se os japoneses ficaram 25 minutos aplaudindo João e se a platéia em Cannes bateu palmas por 15 minutos para Walter Salles, é sinal que precisamos saber do que se trata, o que há nessas obras. Há esperança no mundo. Há vida na arte. Há grandeza na cultura. E o cinema chinês - que, claro, é dissidente, se opõe à ditadura - é obrigatório.
RETORNO - O poeta irmão Marco Celso Viola volta à boa forma e está agitando um lance poderoso para o segundo semestre. Fala de duas criaturas magníficas: o poeta Oliveira Silveira e o líder José Loguércio. Celso procura costurar o que ficou solto nestas últimas décadas, quando, depois de participarmos de um agito cultural que deixou marcas, nos recolhemos aos nossos cantos. Essa maré pode mudar.
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