1 de fevereiro de 2004

O EXCESSO EM DENYS ARCAND


Invasões Bárbaras, o filme do cineasta canadense que dá seqüência a "O Declínio do Império Americano", trata da sobrevivência do espírito humano ressecado pelo excesso de conhecimento. O transbordo da informação cultural – que no fim torna-se escassa ao escoar pelo ralo numa sociedade de privilégios – é a desmoralização da pose acadêmica e o resgate da mais cruel e gratificante verdade humana: aquela que se revela pela sinceridade e a lucidez, e alcança sem querer a transcendência ao conhecer o limite imposto pela morte.

DIÁLOGOS - Se Godard é a majestade do cinema dominado pela cultura, o paraíso de uma síntese genial e insuperável, Denis Arcand é uma descida aos infernos dos consumidores dessa mesma cultura, quando não conseguem transformar-se em criadores. Ficam no limbo da superficialidade, e desenvolvem sua experiência mais importante ao promover o jogo da verdade nos mais duros e inspirados diálogos já escritos para o cinema. A conversa – insumo principal do esclarecimento filosófico – torna-se hilária pela quantidade gigantesca de informações e piadas que jorram das inúmeras escolas do pensamento universitário. Ou melhor, da convicção de que nada mais pode ressurgir da desmoralização das escolas do pensamento diante da complexidade surpreendente da História que passa pelos nossos olhos.


Nos dois filmes, a realidade é a percepção terminal de uma sociedade por meio dos seus mais privilegiados personagens, aqueles que ganham a vida para estudar e transmitir conhecimento. Parece haver culpa nessa vida curtida com jantares grandiosos, casas de campo e viagens internacionais. Mas há apenas revelação. Folhas ao vento das tendências e teorias, as vidas privadas dos personagens deixam-se levar pelos apelos dos projetos, para sucumbir diante dos antigos males humanos, a traição, a solidão, o desamparo, a frustração e a morte. Salva-se apenas a relíquia mais preciosa: a amizade.

Esse laço profundo, que leva todos de volta ao redor da cama do amigo desenganado, abre caminho para o amor possível, tanto o que foi feito para durar – que sonha com fidelidade e filhos – quanto o outro que tem o perfil da aventura. Mas este, devido às feridas acumuladas, tem menos chance de vingar. Por isso a viciada em heroína, depois de beijar o homem por quem se apaixonou – bem sucedido filho do professor que se foi – empurra-o em direção à porta da saída. Alguma lição fica do terremoto: a de que, antes de empapuçar-se de idéias arrivistas, é preciso cuidar de algo muito mais importante e piegas, que é o coração.

Ao resgatar a humanidade com esse convívio, o grupo – ou seus descendentes – terá mais condições de palmilhar a trilha do conhecimento sem os equívocos que colocaram todos a perder. Essa é uma posição otimista diante de um filme que joga pesado na desesperança, mas que acaba se costurando por meio de uma pungente canção popular.

OS DEZ CORAÇÕES DO TEXTO – Leio Pelé – Os dez corações do Rei (Ediouro, 235 páginas), de José Castello e navego num balanço primoroso de uma vida tratada com a mestria do grande ensaísta. Castello refunde o caldeirão do mito com o reconhecimento do quanto já se escreveu sobre o Rei, e devido a essa postura (que não pode ser confundida com humildade, mas com sabedoria) e ao seu talento, consegue nos trazer uma revigorada análise sobre a trajetória do craque maior. A história de Pelé torna-se então a bola que obedece facilmente aos lances de um craque do texto. Neste livro, em vez do futebol jogado sem imaginação, surge a arte da composição rítmica; no lugar da biografia bem comportada, a invenção que não cai nas tentações da firula; e em vez do modelo rígido das jogadas, a estratégia vencedora que não paga mico para a mesmice. O melhor e mais importante crítico literário do país – e romancista do primeiro time – dá um drible nas dificuldades que se impuseram diante desse projeto, e sem deixar cair a bola no gramado, atinge o gol.

RETORNO – Desta vez, o Diário da Fonte teve duas edições dominicais. Para compensar a vagareza dos últimos dias e para aproveitar o tempo disponível nesta época de preparo do Ano do Livro.

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