17 de janeiro de 2004

O FILME PERFEITO



“Chuvas de Verão” (1977), de Cacá Diegues, continua sendo uma obra-prima do cinema nacional. Em cada cena de clássico acabamento, numa trama de grande complexidade e transparência, vemos neste filme maravilhoso quem realmente somos e aprendemos a admirar nossa capacidade de alcançar o mais alto nível da criação cultural. Com essa revelação, resgatamos o país mergulhado dentro de nós. Fica assim mais fácil suportar e entender a carga de realidade que nos desafia e que costumamos ignorar.

MILAGRE – Ao filmar o Rio de Janeiro e deixar de lado a Zona Sul, Cacá Diegues captou o milagre da civilização brasileira, que se estende por vasto território com as mesmas características (“milagre de português”, segundo Paulo Vanzolini). O aposentado que sonha em nada fazer descobre nos vizinhos, amigos e parentes a sombra pesada de uma vida em todos mal resolvida, e por isso mesmo, humana. O admirável é que não há lamentações nesse impacto composto de pedofilia, homossexualismo, deduragem, assassinato. O olhar ao mesmo tempo triste e resignado de Jofre Soares (o ator a quem o Brasil jamais poderá agradecer o suficiente) sabe abrir-se nos momentos mais cruciais, quando a lucidez sobre o horror escancara uma janela para a alegria.

A vida e seus espinhos passam rapidamente como chuvas de verão. O que fica é a tenacidade da sobrevivência, o convívio trepidante entre os despossuídos, a dignidade que prescinde da moral conservadora, a glória da ingenuidade que enfrenta a violência e sai ganhando. Nesta narrativa, desfam grandes eprsonagens interpretados por Miriam Pires,a nudez, a resignação e o desejo da terceira idade; Rodolfo Arena, o palhaço encantador e sinistro; Paulo Cesar Pereio, o comportamento crítico diante da falsa arte por meio de genial caricatura do malandro,entre outros.

A rua de casas que serão demolidas para uma futura obra do metrô é pintada como uma paisagem única, onde a decadência da modernidade superpõe-se à seqüência de cores e formas da tradição pictórica brasileira. Como se os séculos anteriores servissem de amparo para a trama que se desenrola entre paredes velhas, com fotos e cartazes antigos, móveis obsoletos. O corpo humano é moldado por essa paisagem e seus gestos são limitados pela penúria da geografia que o circunda. Torna-se patética a justificativa do palhaço criminoso (Rodolfo Arena) que tenta disfarçar a culpa do estupro com o simulacro de um exercício físico. A imagem da solidão absoluta é o aposentado que leva sua cadeira desconfortável para a calçada numa tentativa de fisgar a vizinha. E a precariedade do caráter revela-se na camisa aberta ao peito de Juracy (Paulo César Pereio, absolutamente impossível na sua genialidade).

CIRCO - Há também camadas superpostas de artes populares, como é o caso da cena do teatro de revista que vira drama de circo de subúrbio. O mais impressionante neste filme antológico é que Cacá, como os grandes romancistas, expõe as feridas mais profundas dos personagens como se estivesse narrando uma anedota. E conta uma história aparentemente banal com todos os elementos do grande teatro. Ali está a relação edipiana entre adolescente tardio e a estrela decadente; a morbidez do velho (Sady Cabral) que tenta descobrir o estado terminal dos amigos; a senhora muito antiga (Lourdes Mayer) que faz revelações pornográficas e consegue rir do seu fracasso; o almofadinha (o magnífico Daniel Filho, ator infelizmente pouco presente no nosso cinema) que conseguiu escapar da miséria e entrega-se a orgias homossexuais; a filha (Marieta Severo) que nunca vê o pai para poder escapar de suas raízes.

Mas não se entenda essa galeria de horrores como uma entrega da obra às facilidades da desgraça. Sem cair no otimismo – que é a esperança pulando o Carnaval – Cacá Diegues aposta na dignidade de uma vida escassa, mas cheia de grandeza. O final, que são as pessoas indo para o trabalho ao som de um chorinho, nos mata de emoção. A solteirona (Miriam Pires) que ao redescobrir o sexo usa sua saia amarela ao voltar para o batente, o operário que antes de pegar o trem é acompanhado pela mulher e filhos fazem parte de um hino camerístico, a majestade informal de uma cultura que soube encontrar sua identidade e deixa sua marca para ser vivenciada e admirada.

SOMOS ASSIM - Dificilmente “Chuvas de Verão” deixará de ser a obra- prima que é. Por ser um filme perfeito, já nasceu clássico. Por ser a soma da nossa coragem, veio para ficar. Por falar a verdade sem nos humilhar, é um amigo eterno. Por nos abraçar sem nos paparicar, faz parte da família. Por isso é muito mais do que um drama ou uma comédia de costumes. A obra não se enquadra em qualquer moldura. É o que temos para mostrar a nós e ao resto do mundo: somos assim. Por isso somos os melhores.

RETORNO - Boa entrevista de Cacá Diegues aqui .