18 de dezembro de 2003

A MUSA ANTES DA PALAVRA



Nei Duclós

A palavra dorme numa cama voltada para o nascente.
Ainda nem é palavra, nem som, nem nada.
Apenas existe esquecida de si mesma.
Mas toda a criatura tem o privilégio da alvorada.

Naquele despertar gostoso, antes de alcançar totalmente a lucidez diurna,
ela faz um barulho na boca como que gozando o sono
e a vontade de continuar na cama.
É quando ela sonha acordada nessa porta entre mundos,
nesse crepúsculo ao avesso,
nessa estrela antes de ser sol.

A palavra nem sempre gosta de tornar-se límpida, de banho tomado,
café posto na mesa.
Prefere muitas vezes o espreguiçar-se, a lenta mansidão dos braços
que evoluem em forma de blues,
quando ouve galos folk dylan guthries, guitarras perdidas
antes do heavy metal,
baterias que solam nossos corações que foram felizes,
trumpetes inimagináveis,
camas de gato da última sílaba de pink floyds
uivando para as ruinas.

A palavra, antes de acordar, vira sonata, piano, tambor e corda,
caixa de ressonância.
Aí levanta e algum treco horrendo martela no som do vizinho.

Por isso ela pensa sempre no dia seguinte, quando voltará
a ter esperança de um renascimento.
O único jeito é muddy waters e count basie misturados às frutas da manhã.
Quem sabe uma criança anuncia uma nova banda,
que nos faça esquecer o passado,
já que pode tocá-lo por inteiro sem despertar saudade.
Pode ser um joão gilberto no bar do Arantes, na praia do Pântano.
Um Walter Franco resgatando o mantra.
Um espesso rolling stones no céu de diamantes.
Um penny lane de carruagens.
Algo ainda perto, mas perdido. Algo, enfim, sem nome.

Por enquanto, para reverter o barulho, a palavra pia o gesto
que o artista descobre em cada traço, em cada curva do sonho.

RETORNO - Este é um poema feito sobre ilustração do artista Ricky Bols

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