18 de agosto de 2003

A PLENOS PULMÕES


Transcrevo aqui um trecho magistral do poema de Maiakovski, poeta insuperável da revolução russa, numa tradução primorosa de Haroldo de Campos. Leia até o fim, vale a pena. Especialmente quando ele fala: "No túmulo dos livros,/ versos como ossos,/ se estas estrofes de aço/ acaso descobrirdes,/ vós as respeitareis,/ como quem vê destroços/ de um arsenal antigo,/ mas terrível." Maiakoviski foi o poeta que nos jogou em praça pública em 1969. Na versão abaixo, fiz pequenas modificações, já que convivo há tanto tempo com este poema que me dei a liberdade.


A PLENOS PULMÕES

(Primeira Introdução ao Poema)

Vladimir Maiakovski


Caros camaradas futuros!
Revolvendo a merda fóssil
de agora,pesquisando
estes dias escuros,talvez
perguntareis por mim.

Ora,começará vosso homem de ciência,
afagando os porquês
num banho de sabença,
conta-se que outrora
um férvido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor(1).

Professor, jogue fora
suas lentes de arame!
A mim cabe falar
de mim
de minha era.
Eu, incinerador,
eu sanitarista,
a revolução
me convoca e me alista.
Troco pelo front
a horticultura airosa
da poesia
fêmea caprichosa.

Ela ajardina o jardim virgem
vargem
sombra
alfombra.
"É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim."
Este verte versos feito regador,
aquele os baba, boca em babador,
bonifrates encapelados,
descabelados vates
entendê-los,
ao diabo!, quem há-de...

Quarentena é inútil contra eles
mandolinam por detrás das paredes:
"Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
ta-ran-ten-n-n..."
Triste honra,
se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
escarra a tuberculose;
putas e rufiões
numa ronda de sífilis.

Também a mim
a propaganda
cansa,
é tão fácil
alinhavar
romanças,
Mas eu
me dominava
entretanto
e pisava
a garganta do meu canto.

Escutai, camaradas futuros,
o agitador, o cáustico caudilho,
o extintor dos melífluos enxurros:
por cima dos opúsculos líricos,
eu vos falo como um vivo aos vivos.
Chego a vós, à Comuna distante,
não como Iessiênin,
guitarriarcaico.
Mas através dos séculos em arco
sobre os poetas
e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta
lírico-amável,
que persegue a caça.
Nem como
ao numismata
a moeda gasta,
nem como a luz
das estrelas decrépitas.
Meu verso
com suor
rompe a mole dos anos,
e assoma
a olho nu,
palpável,
bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
por escravos romanos.

No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
mas terrível.
Ao ouvido
não diz
blandícias
minha voz;
lóbulos de donzelas
de cachos e bandós
não faço enrubescer
com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
tropas em parada,
e passo em revista
o front das palavras.
Estrofes estacam
chumbo-severas,
prontas para o triunfo
ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
as maiúsculas
abertas.
Ei-la,
a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
alerta para a luta.
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças agudas.
E todo
este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido,
eu vos dôo,
proletários do planeta,
cada folha
até a última letra.

O inimigo
da colossal
classe obreira,
é também
meu inimigo
mortal.
Anos de servidão e de miséria
comandavam
nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
volume após volume,
janelas de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
saberíamos o rumo!
onde combater,
de que lado, em que frente.
Dialética,
não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das batalhas,
quando, sob o nosso projétil,
debandava o burguês
que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
glória
se arraste
após os gênios,
melancólica.

Morre, meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.

Cuspo
sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória,
entre nós todos,
o comum monumento:
o socialismo,
forjado na refrega
e no fogo.

Vindouros,
varejai vossos léxicos:
do Letes
brotam letras como lixo:
"tuberculose",
"bloqueio",
"meretrício".
Por vós,
geração de saudáveis,
um poeta,
com a língua dos cartazes,
lambeu
os escarros da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
antediluviano.

Camarada vida,
vamos, para diante,
galopemos
pelo qüinqüênio afora(2).
Os versos para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara,
e basta,
para mim é tudo.

Ao Comitê Central
do futuro ofuscante,
sobre a malta
dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.

RETORNO - O poema foi escrito entre dezembro 1929/janeiro 1930. Notas: 1. Maiakóvski escreveu versos de propaganda sanitária. 2. Alusão aos Planos Qüinqüenais soviéticos. (Tradução e notas de Haroldo de Campos). Do livro "Maiakovski - Poemas"/Editora Perspectiva, 1982.

Nenhum comentário:

Postar um comentário