24 de abril de 2019

ANTES DO DILÚVIO

Nei Duclós


A terra é um sítio temático do mundo titânico
Gente dos primeiros tempos altos como as montanhas
Que hoje exibem seus corpos e rostos petrificados
Em expressões e cenas de extrema imobilidade

Por isso essas criaturas coevas são invisíveis
A soprar seu enigma diante dos abismos
Abrigando neves e cavernas que se ligam ao centro do mistério

Somos insignificantes perto dos titãs
Passamos por eles em nossas carruagens
Escalamos seus ombros no maior desplante
A fincar bandeiras nos topos que são suas cabeças

Não choramos por eles
Que velam em granito nos desertos
Onde sobrevivem suas lendas
Ocultas em linguagens indecifráveis

Só o poema toca em seus olhares
Despejados no ar como pássaros antes do Dilúvio



TEMPLO


Nei Duclós

Para que serve a palavra dita em voz baixa
em busca de um lugar na tua alma?
Basta que escutes o leve roçar
dos lábios em pele escura ou clara.
Esse vento suave na flora dos teus cantos.
Esse acalanto em templo sagrado e profano.
O corpo humano.



SONORAS

Nei Duclós


Gosto de palavras sonoras
Ecos de tambores
Solos de flauta

Que abrem a guarda
para frases soltas
Colhidas a esmo
Quando algo pipoca
em chuva no teto

Um anjo que pousa torto
Um amor que dá as caras



NA MESA COMUM


Nei Duclós 

Não perco tempo me dispersando
Providencio o pão, 
que o amanhecer completa

O jejum não celebra o dia,
nem o vazio, de má conduta.
E sim o que compartilho, 
alimento no fogo imaginado 
desses versos

Na mesa comum, recito,
admirando a deusa que desperta.



21 de abril de 2019

ACENO ADENTRO

Nei Duclós


Um rosto não é o poema
Feito memória e poeira
Oasis de árduo acesso
Mesa posta no deserto

Um rosto é dor e aceno
Invisivel passageiro
Dele ninguém se lembra
A não ser quando se escreve

Um rosto que me dá pena
Jugo de contingências
Voltado inteiro para dentro
Onde em sonho submerge



PERIGOSA


Nei Duclós


Fazes mistério com tua aparência
Driblas o assédio fingindo que é antiga
Como se a beleza corresse perigo
Se descobrisse o véu do anonimato

Não sabes que brilhas sob tantos panos
E uma perna foge em meio ao desacato
Nada disfarça tua vocação ao cânone
Nem mesmo os óculos de má procedência

De longe és o que os deuses dizem
Por isso te cercam de trovões e raios
Só o navegante atado no barco
Terá forças para conquistar-te

Pois ouvirá teu canto sem afogar-se
Sereia do amor, perigosa beldade


AMOR PRECOCE

Nei Duclós


Tudo é tardio na minha idade
Menos tu, amor precoce
Pés fazendo alarde na praia
Quando andas atraindo olhares

Passas sem me ver mas eu te visto
Com a desfaçatez da minha fantasia
Nem sequer te enxergo, estou absorto
No estrago que a paixão faz quando voa

Entras então no mar
E vem lá da montanha a sinfonia
És a virtuose, seguras o violino
A tocar com o corpo meu mergulho



EM SITUAÇÃO DE RUA

Nei Duclós


Morre Valdiram em situação de rua
no sábado de Aleluia

Vindo de Pernambuco, do Brasil profundo
vestiu a camisa do Vasco ao lado de Romário
Foi espancado na Cracolandia em São Paulo
Talvez por vingança
Por lembrar aos parceiros de infortúnio
o quanto era especial por ter chegado ao Maracanã depois de uma infância pobre

Teve sua chance, dirão os indiferentes do país sem misericórdia
Os que passam de olhos fechados para a via crucis de quem foi herói por ter se superado
E que experimentou a queda até sucumbir aos 36 anos

Morre Valdiram em situação de rua
no sábado de Aleluia
Fez a passagem na véspera de um domingo
Jogou e foi jogado
da página dos Esportes para os obituários

Quem se importa com um brasileiro a menos na estatística dos assassinatos?
Não serei eu, que faço o poema sobre o irremediável
depois que a gruta fecha sobre a carne

Esse silêncio nos terrenos baldios onde jogávamos futebol
em duelo com a glória
Nós, os eternos deserdados
Nos campinhos que abrigavam futuros craques a chutar um sonho até depois de escurecer



9 de abril de 2019

O VOO DO ROMPEDOR


Nei Duclós




Vavá rompe a barreira formada pela teimosia adversária
Eles achavam que bastava levantar um muro para manter aquelas criaturas longe
Não contavam que pássaros podiam voar
no peito, na raça e de cabeça
E meter numa fresta invisível a olho nu
A bola contraída pela vontade

Éramos leões, éramos canários
que os moleques soltavam para correr atrás
Éramos os campeões do mundo
E ainda faltava uma eternidade de tempos para acabar a Copa



O NÚMERO UM

Nei Duclós

Não dizíamos goleiro
Dizíamos Gilmar
Não era espetacular
Raramente voava
Mas estava sempre onde um Gilmar deve estar

Fazia parte como alguém da linha de frente
Não se limitava a ser o número Um já que era Dez

Se o futebol fosse música
Ele não seria o bel canto
Mas João Gilberto

No seu ombro de campeão do mundo
Um rei menino chorou



A VOLTA DOS CAMPEÕES


Nei Duclós

Quando voltamos com a taça
O povo foi nos receber
Pois tínhamos povo
Não apenas torcedores, jogadores, mas todos
As crianças, as mulheres, os idosos

Era o titulo conquistado desde o quintal
O terreno baldio que ganhou linhas de cal
Era a bola de papel, depois de meia
Era a bola de couro
Que ensebávamos com graxa costurando cada gomo esfolado
Eram os joelhos feridos as canelas roxas de tantas faltas
Eram as medalhas dos torneios, as camisetas brancas
que tinham uma faixa azul ou vermelha costurada pelas tias

Depois os estádios, os times do coração
Nossa religião de todos os domingos

Por isdo o povo celebrou sua vitória
Pelos pés dos craques nascidos nessa história

Eramos os reis do futebol. 
A glória extraida no coração poderoso de uma nação que estava de pé


TODOS OS PÁSSAROS

Nei Duclós


Garrincha surpreende fazendo sempre o mesmo
Aprendeu que em futebol não se inventa
Mas se cria
É como fazer um pássaro. Em cada pluma há uma nova cor
Em cada garganta um novo canto

Seus dribles são criaturas de uma só espécie
Que ele aprendeu domando o corpo pelo avesso
Foi árduo impor-se em Pau Grande
E de lá um lugar ao sol
Passando pela enciclopédia do futebol

Em 1958 foi meia Copa reserva
Mesmo Deus precisa ficar no banco



O MAESTRO

Nei Duclós


Não precisávamos de mais ninguém para ganhar a taça
Tínhamos Nilton Santos

Era como um chanceler em missão diplomática
Um maestro em visita a orquestras estrangeiras

Os reis imitavam sua postura sem pose
Sua capacidade de armar jogadas decisivas

O carisma vinha dessa posição
De ser o pilar de uma equipe inédita
E também da humildade de ser o maior
sem dar bandeira

De longe parecia facil
Mas cada verbete do seu jogo era marcado pelo sacrifício

Humano, transcendia os confrontos. Pairava sobre as nações do futebol
Com o jeitão de boa praça
Cercado de respeito porque voltou vitorioso da guerra
Veterano que desde moço soube dominar as armas
E liderou um país na travessia do mar



VERSOS LIVRES

Nei Duclós


O talento de Maiakovski não precisava da revolução
E sim o contrário

Mas a convicção e o idealismo colocaram suas palavras no front

Quando a revolução foi traída
A tirania empurrou-o para o suicídio
Enquanto os versos que fez cruzam os anos
"como o aqueduto levantado pelos romanos"
como diz na obra prima, A Plenos Pulmões

Essa é sua lição
Ao defender uma causa, não se ponha a serviço de um tirano
por mais que ele jure inocência
Faça da vocação um sopro que extraia música das nuvens
e dialogo do drama
E sobreviva ao aparelhamento que hoje parece obrigatório

O poder usa o poeta que se imagina dono da vontade
Teu compromisso é com algo mais importante
A liberdade



LUGAR COMUM

Nei Duclós


Ninguém foge ao seu destino
Os terrores da infância
voltam na terceira idade
A vida é uma cobra
que morde o próprio rabo

Brincamos de roda
Enquanto falta chão
na eternidade



2 de abril de 2019

TROVAS AVULSAS


Nei Duclós

Essa vida é uma ilusão
Essa vida é passageira
Só a infância tem razão
Só o poema é de primeira


Mandei um coração
Não precisa devolver
Não sinto falta
Ele está em boas mãos
Só não esqueça na porta
Se começar a chover

Tuas fotos não compõem
uma persona.
És múltipla conforme incide
a luz e a sombra.


nvento-me, risco na areia
que tu, maré, desmanchas
concha que abriga sereia
escuto em forma de onda


És a doçura que brota no deserto,
alimentada pela flor do meu poema.


É preciso paciência ao dizer
E humildade ao escutar
Tudo o que vem do Outro
Quando há ponte entre iguais
É uma ordem do amanhecer


Trouxe orvalho, que estava em falta. Barulho de peixe na água, para assombrar o acampamento. Estrelas cadentes, que somem em silêncio. Cavalos marinhos, que ninguém monta.

Não precisa agradecer, flor exposta na varanda.

- Pode voltar! disse ela desesperada para o motorista. Esqueci o pacote de amor na porta.

Tudo o que não presta, vinga
Tudo o que te dizem, cola
Tudo o que esperas, demora
Tudo o que perdes, não volta
Tudo o que fazes, pagas
Tudo o que esqueces, vale
Tudo o que falas, cobram
Tudo o que consegues, invejam
Tudo o que abandonas, cresce
Tudo o que aprendes, esquecem

Passei depressa pela vida
Deixei um verso como aviso
Teus olhos despertam
quando recitam

POEMA VAZIO


Nei Duclós

O poema está vazio
Como um baú descendo o rio
Como um país que se perdeu
Como lua sem nuvem no frio

Falta-lhe a palavra que o habite
O ritmo que a voz emite
O timbre de tambor invicto
O sopro divino

O poema se permite
Ficar oco igual ao corpo
de um parente morto
Sem convite, sem ingresso
À vida, como um prematuro rebento
A esperar para sempre
O momento do grito



CAPTURA


Nei Duclós


Não posso dizer não à tua beleza
Por onde passas há um rastro de felina
Seria crime ignorar a realeza
Mesmo que eu corra o risco de perder-me
Abdicar dos brasões de cavaleiro

Pois há punição para quem não vira o rosto
E tenta enxergar o que não deve
Tua glória de mulher, aura de deusa
Teu brilho natural, tua candura

Passo pelo séquito bem despacio
Fechando a cara para teus guardiões de mato
Porque um dia chegará, pastora
Em que eu mudo a lei e te capturo