4 de fevereiro de 2015

BREAKING BAD: NÃO HÁ TESTEMUNHAS NO DESERTO



Nei Duclós

Uma pessoa é a composição química de elementos, que podem ser dissolvidos em ácido numa bacia de polietileno. Atribui-se aqueles misteriosos 3% que faltam para completar a criatura à existência da alma, que assim ganharia peso numa base científica. Mas essa porção ínfima, minoritária, não faz parte das intenções da série Breaking Bad, totalmente disponível no Netflix, com seus 62 episódios didáticos, que foram ao ar originalmente de 2008 a 2013. Eles não só ensinam como treinam os espectadores na crueldade sem limites, no assassinato em massa, na ganância a qualquer custo, na mentira permanente, na manipulação completa, na esperteza sinistra.


O criador da série, Vince Gilligan, deveria ser preso junto com toda a equipe de atores,atrizes e roteiristas,  cumprindo pena de trabalhos sociais forçados. Em vez disso, foram abusivamente premiados, como se o mundo inteiro tivesse enlouquecido para celebrar tamanho rombo na ética, tamanho abandono do humanismo, tamanho tiro de misericórdia em qualquer esperança no ser humano. O roteiro funciona a serviço do mal: pessoas honestas são envolvidas no tráfico de drogas, direta ou indiretamente e todo perigo  contra o maior vilão encontra uma solução inverossímel.

Como pode um perseguido marcado para morrer entrar no covil dos facínoras com um carro que dispõe de uma metralhadora sem que o porta-malas tenha sido revistado? Como pode o bandido que mata policial dar um tonel de dez milhões de dólares para seu concorrente jogando fora a oportunidade de eliminá-lo? O roteiro é o principal aliado da falsa verossimilhança, pois a crueza das imagens – tudo filmado no deserto do Novo México e seus desdobramentos, a cidades secas ao sol – e a overdose das interpretações garantem o espetáculo. Hipnotizados pela sucessão de eventos do enriquecimento ilícito dos mega traficantes e o poder de fogo contra pessoas comuns, o espectador deixa passar o principal, que é a forçação de barra nas situações limite.

O vilão Walter White, interpretado por Bryan Cranston – que ganhou tudo que é prêmio – é um fenômeno de eficiência e sorte. Seus ardis sempre dão certo. Toda hora ele escapa da morte: sim, senão como continuar a série? Seu comparsa que vira inimigo mortal, Jesse Pinkman, encarnado de maneira chorosa e desesperada por Aaron Paul – também premiadíssimo – afunda em sucessivos abismos sem jamais conseguir ter um lance de lucidez e tirocínio. É uma besta ambulante convincente, que empresta a cada cena a intensidade necessária para continuarmos grudados na narrativa.

As negociatas, os assassinatos, as fugas espetaculares, os enterros de dinheiro, os massacres, as investigações policiais importantes, a produção da droga química (metanfetamina, ou cristal, a cocaína dos pobres) acontecem no imensurável deserto, sem testemunhas. Ninguém vê o que se passa entre cactos, areias e lagartos. Apenas nós, telespectadores privados da nossa humanidade, que abrem mão de tudo para se entregar a essa série filha da mãe, que nada nos dá em troca a não ser medo, pavor e um vazio jamais preenchido.

Como tudo o que se faz na Sétima Arte – pois Breaking Bad é cinema, um longuíssima metragem de dezenas de horas – trata-se de um filme sobre cinema. As referências são inúmeras e constantes. Entrega que a piada do espirro em cima do pó é dos Tres Patetas (no caso deles era talco, não cocaína) e não do Woody Allen. Compara toda pessoa com uma arma apontada para a cabeça com o talento de Meryl  Streep. Mostra a tendência gay de um químico (que se chama Gale , interpretado por David Costabile) com a fala “este é o começo de uma grande amizade", o infeliz desfecho de Casablanca. Dedica uma cena grandiosa de trem clonada em Sergio Leone de Era Uma Vez o Oeste, entre muitos outros cruzamentos.

E há a conotação étnica, como nunca falta no cinema americano. Quem morre mesmo são os vilões mexicanos narcotraficantes. Há um loiro bandido, Todd, interpretado por Jesse Plemons, mas é exceção. O mega chefão é negro chileno (o elegante e talentosíssimo Giancarlo Esposito) e mesmo o bandidão White tem um apelido nazista, Heisenberg. Os americanos não se livram da questão étnica. Faz parte de sua natureza.  A lei vence no final, pero no mutcho. White morre feliz e realizado, pois para se sentir vivo depois de um diagnóstico de câncer no pulmão, matou quem estava na frente e transgrediu todas as leis para enriquecer. Tudo em nome de uma ficção, a “família”, que acaba destruída.





O núcleo familiar tem intérpretes da pesada. Anna Gunn como Skyler, a esposa que é empurrada para o crime, RJ Mitte como Flynn, o deficiente físico que recebe todo o impacto da destruição do lar, Betsy Brandt como Marie, que perde para o tráfico o marido policial Hank, interpretado por Dean Norris. Um grupo de forte intensidade dramática, que ajuda a costurar as cenas mais terrivelmente emocionantes.                

Deveriam todos estar presos. Mas me pergunto por que fiquei semanas vendo essa coisa e não desgrudei o olho até chegar ao final? Talvez porque seja a mais escabrosa série de todos os tempos, o deserto do real, e eu tenha sido apenas uma testemunha. 

De tudo escapam dois personagens, que chegam a uma nova série sobre o advogado corrupto Saul, interpretado por Bob Odenkirk, um comediante de TV que ganhou sua grande oportunidade e aproveitou ao máximo. O outro é o matador Mike, interpretado por Jonathan Banks, que avisa: melhor fazerem logo toda a série porque estou velho demais para esse tipo de papel. Ou seja: o pesadelo continua. É como dizia Hitchcock ao ser homenageado: “Vocês estão gostando? Olha que eu vou continuar!”

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