6 de dezembro de 2010

PRIMEIRA HORA


Nei Duclós

Alguém jogou farinha na mesa azul do céu e raspou com uma palha de aço. Deixou a nuvem esgarçada, ao som inaudível só percebido pelo casal de pombas que se aboletaram no fio para curtir a manhã. Elas aguardam o levantar supremo do sol, quando partirão para outras ações menos passivas, como voar até os morros próximos, cobertos pela compacta massa de arbustos. É uma espécie de cordilheira em miniatura, esses morros que pontuam os limites da varanda, onde observo o silêncio que a natureza define neste quadrante extremo da ilha.

Não existe nada demais em compartilhar esse momento em que tudo transparece esperança. Acontece todos os dias, mas poucos se aventuram a depositar nele a atenção total. Estamos distraídos pelo compromisso iminente, que se avizinha com suas dificuldades, e pelas demandas do corpo, cada vez mais exigente e escasso. Muita preocupação acaba nos afastando de um ato natural que é o amanhecer de primavera, em que a umidade está na dose certa, e o frio uma bênção diante da lembrança dos calorões que se aproximam. É quando as cores básicas se distribuem irmãmente pela plataforma construída ao nosso redor, feita no capricho por um Deus ainda na ativa.

Decidir-se pelo amanhecer é abrir mão de ilusões noctívagas. Baladas, serões, insônias, corujões, tudo isso precisa ficar à parte quando queremos exercer o domínio do despertar na primeira hora. É uma questão de competência, como tudo. Transformar uma decisão numa ordem que não pode ser transgredida. Não ultrapassar a meia noite no jogo diário com as palavras. Concentrar-se para dormir cedo imaginando alguma história boa para nos distrair, já que na televisão só passa porcaria e não temos mais paciência para ver tanta coisa enganosa. Há uma cota para suportar a mentira e já atingimos esse nível há tempos.

Com o tempo, passamos a encarar a época em que ficávamos acordados por força das eletricidades variadas da vida, como uma era distante, um passado remoto demais para sabermos do que se tratava exatamente. Voltar a acordar com a luz do sol, mesmo em dia nublado e com chuva (alguns deles maravilhosos) é ainda possível hoje, quando imaginamos ter nos afastando tanto da natureza.

Precisamos mergulhar na manhã para que todos possam nos identificar com a claridade. Escolher a palavra certa faz parte do jogo da sobrevivência. Pois ela acaba grudando em quem a usa. Sabemos disso principalmente depois da internet, quando os sistemas de busca começaram a trazer junto com o nome de cada um tudo o que a pessoa decidiu colocar perto de si. Assim, se você falar muito em ódio, fará parte dele. O tema ficará em sua aura digital. Se atacar demais determinado personagem político, acabará em seu redil, vai compactuar sem querer do seu curral. Tocou no problema, ele se torna seu. É injusto, mas é o que acontece.

O grude das palavras é como um caso de amor. Ele não te deixa, por mais problemas que surjam. É recomendável então amar a manhã, já que a relação com as palavras tem essa vocação para a eternidade.

RETORNO - 1.Crônica publicada na edição 320 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: foto de Ida Duclós.

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