15 de dezembro de 2010

O COZINHEIRO


Nei Duclós

O Cozinheiro é aquele que faz certo o que todos os outros fazem errado. Sua maneira peculiar de torcer a colher em que mexe os temperos acompanha o esgar de pouco caso desenhado no canto do nariz. É uma espécie de pré-espirro que puxa um pouco o lábio superior, deixando entrever alguns dentes de desprezo. Ninguém acerta o ponto senão ele. Ninguém sabe o ingrediente raro, trazido de helicóptero dos Balcãs Centrais, dos bosques da Baviera, ou da plantação exótica de Tia Chica, a que tem 130 anos e mora na serra e só é acessível de bote de borracha importado da Suíça por íngremes fios de água encachoeirados.

Seu olhar sampacu perscruta qualquer aspirante a tentar cozinhar na sua frente. Demolidor, venenoso. Abra alas para ele, que sabe, o resto se mortifica. Não é que se considere um Deus, já que Deus nunca entendeu de cozinha, tanto é que preferia os hortis crus de Abel aos assados de cabrito de Caim. Não se acha superior a Bocuse, já que Bocuse ou qualquer outra notoriedade culinária simplesmente não existe. Nas conversas que antecedem as refeições, só usa grifes famosas quando precisa desmoralizar alguém.

A vítima pode ser um chef qualquer (formado na cozinha de um mestre que O Cozinheiro despreza brandindo um concorrente). Se for francês, melhor. Ou um parente rico ou o melhor amigo do seu irmão, penetra numa reunião familiar. O Cozinheiro vinga-se dos adventícios pontificando, com gestos e caras, sobre o que todos não tem a mínima condição de apreciar por falta absoluta de berço ou destino.

E não guarde elogios que ele não faz a mínima questão. O Cozinheiro sabe qual altura do calor da brasa que pode crestar uma paleta de cervo dos Alpes. E tem noção exata do que significa uma trufa. Para mim, que sou leigo no assunto, e não sirvo, como o resto da humanidade, para comer as especiarias preparadas por O Cozinheiro, sempre achei que trufa fosse um jeito de me esnobarem . Pois para mim era certo que queriam dizer trutas. Quando soube, ou imaginei saber, que era um cogumelo raro só encontrável nos dias 30 e 31 de fevereiro em terras molhadas de húmus de percevejos ancestrais no interior dos Pirineus, fiquei chocado.

Mas decorei a fala ouvida de alguém e cheguei a fazer algum sucesso diante de outros panacas como eu. Até encontrar O Cozinheiro pela frente, que me humilhou dizendo que trufas, ao contrário do que eu pensava, eram chocolates finíssimos que só mestres do deserto espanhol são capazes de conceber em noites batidas pelo vento Siroco. Emudeci para sempre depois dessa, mas não evito entrar em pânico quando alguém se refere a trufas, com seu efe cortante a retalhar amadores. Esse é só um exemplo da desmoralização de quem está acostumado a comer coisas banais e não aquilo que O Cozinheiro prepara e degusta, aguardando elogios dos assustados comensais.

É quando então, todos satisfeitos e se derramando em loas, ele faz pouco do que fez dizendo que ao cozinhar na Corte da Baviera para Iluminattis adolescentes, aquela gororoba estava infinitamente superior.

Quando algum rei visita o Brasil e, claro, jamais convidam O Cozinheiro, pois os patrocinadores tem medo quem ele cometa alguma grosseria contra o sangue azul, O Cozinheiro então prepara um ágape exatamente no mesmo dia e hora em que os coroados vão atacar o fiambre. Assim, enquanto torce o nariz com seu esgar favorito, mexendo a colher daquele jeito que faz com que ervas finas atinjam o esplendor do Olimpo, ele pontificará sobre a vida sexual airada de algum ancestral da família real.

Assim é O Cozinheiro. Dê graças a Deus se você não o conhece. E contente-se com uma linguicinha de frango picada em rodelas, frita com cebola em fogo baixo no azeite de oliva, arroz branco soltinho e lentilha natural, borrifada de farinha saborosa e fresca, tudo acompanhado por um suco honesto de uva produzido no Ceará. Atole-se na sua ignorância.

RETORNO - Imagem desta edição: "Felipe II no banquete dos monarcas", de Sanchez Coello.

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