9 de março de 2007

ESSE OBSCURO OBJETO DE DESEJO




O livro não-descartável é a personagem principal de uma novela que resgata a paixão pelo conhecimento

Nei Duclós

Qual o objetivo do desejo? Testar o próprio limite, nos diz Carlos Maria Dominguez em sua impressionante novela, A Casa de Papel (Francis, 100 páginas). Amontoar livros até ser enterrado pela própria biblioteca, por exemplo. Como os outros vícios, os livros também são perigosos, adverte o autor (argentino, que vive no Uruguai, premiadíssimo). Podem participar de um ou mais crimes. Quais as pistas deixadas por Dominguez?

São elas: todos os livros são imprescindíveis, mas eles exigem mais de uma vida para que você saiba o que merece saber; como você não consegue chegar até o teto da sua ambição, acaba adquirindo a cor dos pergaminhos, como o personagem Delgado, o homem que dá a chave para entender o enigma que envolve o narrador. Você pode ser um colecionador (como Delgado) ou um estudioso (como Carlos Brauer, a personagem chave da trama). O primeiro pode manter a sanidade (o ego dividido entre a sobrevivência e o prazer da leitura), enquanto o segundo pode enlouquecer. Por que Carlos Brauer enlouqueceu?

Porque, aposentado e com boa herança, dedicava todo seu tempo à sua paixão. Porque descobriu afinidades entre autores de nações opostas, que se tornam assim complementares. Porque enxergou uma arquitetura subliminar no design de letras e linhas nas páginas impressas, o que significa uma partitura oculta que acompanha, em silêncio, a leitura. Porque não quis para sua biblioteca o destino de tantas outras, dilapidadas pelos espertalhões, decomposta para melhor proveito de um mercado de antiguidades e por fim disputada em seus exemplares raros em detrimento de outros considerados menores, o que é um crime contra a obsessão que reuniu todos os títulos.

Carlos Brauer enlouqueceu porque tentou organizar sua biblioteca no espaço que não dispunha, num fichário excêntrico que no fim o acaso queimou. E, talvez, porque não se ligou aos contemporâneos com a mesma intensidade com que acumulou seus livros. Deixou marcas da sua passagem em corações afins, como a catedrática inglesa tão culta quanto ele e que foi capaz de morrer atropelada lendo poemas de Emily Dickinson. Seu crime foi ter deixado passar a oportunidade de um amor que o libertasse da loucura e que no fim não deixou vestígios, a não ser um velho exemplar de “A Linha da sombra”, de Joseph Conrad.

A indiferença existente no mundo dos livros não era a mesma de Brauer em relação a seus semelhantes. O estudioso que se deixou soterrar pela própria biblioteca não compartilhava com o universo de patranhas de autores, livreiros, editores, jornalistas, professores. Era um out-sider no mundo encadernado e de brochuras infinitas. Procurava (ou seria o narrador?) a porção européia dos autores latino-americanos. Procurava mais do que isto: as respostas para os mistérios que os livros encerram ou acobertam. Mas não acha o principal: o amadurecimento de uma vida que só se consegue com renúncia e não com auto-piedade ou autofagia.

Brauer se refugiou na praia e construiu uma casa que tinha os livros como tijolos. Procurou desesperadamente o livro de Conrad, que é sobre o rito de passagem entre a vida juvenil e a adulta, mas não sabia o significado dessa busca. Quando o encontrou e remeteu pelo correio até a catedrática inglesa, já era tarde demais. Uma vida tinha se desperdiçado. O narrador precisou ir até os confins da sua terra para entender a tragédia. Descobriu, no caminho, o vazio das multidões brincando com as novidades eletrônicas, apartadas, como os autores frustrados ou célebres, de uma vida espiritual plena, que só se consegue quando há ascendência do humano sobre o papel, da vida sobre a imobilidade da representação.

Uma lição que Dominguez nos apresenta como um conto policial que dispensa a astúcia dos protagonistas, mas não deixa de lado os pequenos assassinatos das nações globalizadas. E que mergulha na história universal do livro como um guia de primeira grandeza, sem exibicionismos, pois sabe onde existe o conteúdo que faz falta: aquele que não ilude com as filigranas da falsa sabedoria, mas que leva pela mão até o tesouro oculto da cultura acumulada por séculos de celebração e dor.

Por isso, é preciso ler a literatura de Carlos Maria Dominguez nesta época em que as inutilidades se acumulam nas vitrines (alugadas) das grandes livrarias. Às vezes, na longa espera de um avião, a companhia de um livro como este é mais útil do que a perda de tempo num título qualquer de auto-ajuda ou de filosofia barata (aquela que economiza neurônios ao ser consumida).

RETORNO - Esta resenha foi publicada na edição deste mês da revista Empreendedor, seção Leitura.

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