29 de janeiro de 2006

SENTINELAS DO REINO




Demonstramos essa falta de presença, essa identidade perdida, esse misturar-se à areia e às plantas (Crônica publicada neste domingo, 29/01, no caderno Donna DC, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

O Verão cumpriu todas as promessas. Torrou de azul o dia interminável. Lavou o corpo seco jogado fora pelo longo Inverno. Bordou de rendas a água clara das manhãs e a tintura anil do entardecer tranqüilo. A lua cheia compareceu para iluminar o noturno pio dos nossos sonhos. Quem poderá queixar-se desta temporada que chegou ao esplendor? A esperança exangue temia tempestades. O fungo da pele grudava para sempre. O tom cinzento do olhar suspirava o desamor com a paisagem. Mas o Verão assumiu o perfil de um deus poderoso que inunda de vibração os planos adiados.

Há ressaca de tanto mar. Pedimos rede, quando devíamos estar na praia. Bebemos água que jamais mata qualquer sede. Passamos ungüentos milagrosos nos braços e pernas que exigem massagem. O cabelo perdeu o prumo, o andar deixa-se levar pela escassa brisa e aparecemos para amigos distantes que chegam de repente. Demonstramos para eles essa falta de presença, essa identidade perdida, esse misturar-se à areia e às plantas. Perguntam sobre nossos laços antigos, mas não estamos mais naquele lugar. Somos agora habitantes de uma ilha, invadida pela ansiedade, perplexa diante do futuro, saudosa de sua paz perdida. Somos habitantes da falta que tudo isso faz em qualquer cidade, somos os que largaram tudo para viver na imaginação cevada em janelas tomadas pelo ruído.

Não sabemos mais quem somos. Alguns de nós voltam para suas origens e lá aparecem fora dos certames da civilização encerrada em redomas de poluição e vidro. Aos poucos voltam ao normal, mas nós somos diferentes. Nós apostamos alto no que nos escapava e hoje vemos que o custo desse passo era a alma que tínhamos gerado em décadas de cruzadas e carreiras. Por isso não atendemos aos chamados, estamos ocultos como a flecha do vôo do gavião que busca a presa. Deixamos que vejam as gaivotas, as corujas, as pombas. Porque o importante é ser a rapina de algo ainda por vir, e que pertence sim ao Verão, mas a ele não se circunscreve. Viramos o enigma que ainda não deciframos.

Sabemos o quanto se enganam, os futuros habitantes que escolhem a ilha porque hoje devoram ostras e camarões com licores árticos. Sabemos o quanto é impossível cruzar os meses de chuva e frio, a maresia que sobe no ar e se congela dentro de nós. Sabemos o quanto doem as ruas de barro, o dinheiro escasso, o trânsito cada vez mais apertado. Sabemos que o verão é só um detalhe da ilha que a todos prende como o olhar da águia. Venham, dizemos, experimentem. E calamos, para rezar em silêncio pelo que virá depois desta época de bênçãos. Pedimos proteção para seguirmos em frente. Queremos chegar ao novo Verão menos marcados, com luzes próprias, e não com esse brilho intenso que nos confunde, esse prêmio que cobra a conta, essa flor que na próxima estação começa a se tornar inalcançável. É quando tudo vira deserto. É quando o vento bate seus mutirões punitivos, desentocando os recalcitrantes. Esperavam o quê? O paraíso é precário e ilusório como uma casa alugada pelos banhistas.

Em meio à multidão, vejo aqueles que vieram dos pescadores. Estão vestidos em meio à humanidade pelada. Rugas enormes nos rostos de pouca idade. Eles se cumprimentam com alguns gritos, dialeto sem porto, museu de linguagens. Aguardam a Primavera, que virá com seu sopro gelado. Sonham com cardumes, mesmo sabendo que eles passam ao largo. Visitam os lugares onde moravam, hoje transformados em condomínios lotados, e depois absolutamente vazios.

Nos bairros que viram mais tarde fantasmas, vejo a espera de quem acumula recursos longe daqui. As calçadas ficarão entregues aos cães de praia. Há um aperto no coração se você trafegar por elas imaginando algo vivo. É apenas o descompasso entre o verão que se foi e a realidade.

Habitamos uma ilha, e são poucos os seus mistérios. Venham nos fazer companhia, mas preparem-se. O Verão é a visita do filho amado, que parte quando chega a hora. Ficamos sós, a varrer saudades. Os falcões aguardam empoleirados. De repente, um deles cruza o ar. É quando gritamos diante de Deus, que decide abrir um claro na charada. Ele traz um ramo de luz na mão grandiosa. Somos guardiões da felicidade possível, neste tempo sombrio, que mantém o Verão como sentinela de um reino que inventaremos não apenas com palavras.

RETORNO - Na imagem, quadro Pescadores, de Fulvio Pennacchi.Na edição impressa do DC, a ilustração, belíssima, é de Samuel Casal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário