27 de abril de 2005

QUANDO MEU PAI MUDOU O DESTINO



Nei Duclós

Ele sabia se vestir. Ou melhor, sabia que seu terno, seu cabelo bem puxado para trás, seu bigode fino, seu sapato de verniz, seu corpo magro e firme tinham aquela postura que agradava às mulheres. Recém saído da Brigada Militar, de onde se retirou depois de sofrer uma injustiça (não foi condecorado por bravura na guerra de 1932, quando prendeu um oficial inimigo), ele abraçou a carreira de inspetor sanitarista, naquela época em que havia investimentos nessa área no Brasil. Lá conheceu a moça magra e também elegante, de passo miúdo e sorriso sedutor, com olhinhos puxados de índia, cabelo preto e pele morena. Vinda de uma família de proprietários de terra que perderam as posses com a morte do pai, ela tinha formação: fora professora primária e além disso passara uma temporada de estudos na capital. Muito religiosa, entrou em acordo antes de casar com aquele moço bonito, ateu, charmoso e um apaixonado pela caça e a pesca. Poderia freqüentar a igreja e encaminhar os filhos para a religião, que ele não colocaria nenhum obstáculo. Ele seguiu à risca seu acordo, mas surpreendeu em outros itens. Decidiu, por exemplo, um belo dia, que não queria mais a carreira pública. Havia muito conflito por pouco dinheiro. Além disso, era uma rotina muito monótona. O que fazer, se já tinham três crianças em casa? Resolveu então juntar os cacarecos, colocar mulher e filhos na casa de um parente e partir para uma longa pescaria.

BRILHO - Lá no meio do mato ele achava a si mesmo, o homem perdido na cidade. Sentia-se aliviado e tornava-se humano, fora da carcaça que precisou inventar para sobreviver. Pertenceu também a uma família órfã de pai. O velho, tenor de circo, daqueles que cantavam árias no final dos espetáculos mambembes das periferias, abandonou mulher com oito filhos e saiu pelo mundo para nunca mais voltar. Seu ímpeto, talvez, fosse fazer o mesmo, mas ele não repetiria o erro. Era um homem de palavra. Mas primeiro deixou-se levar, dias e dias pescando, vivendo do peixe, que ele fritava com a maior tranqüilidade na beira de um arroio farto e generoso, em terras pertencentes a um estancieiro amigo seu. Tivera uma infância pobre e lutou bravamente todos os dias. Com nove anos de idade, de pé no chão, vendia pastel . Um dia levou um relhaço de um carroceiro, que o atingiu por pura maldade. Não teve dúvida: jogou uma pedrada nas costas do agressor. Na escola, fizera tão bem o primeiro ano primário, que passou imediatamente para o terceiro. Espírito livre, caiu no erro de espreguiçar-se, uma vez só, em aula. Levou uma reguada da professora naquela época da palmatória. Levantou-se, pegou seu boné e não voltou mais. Tornou-se um devorador de livros, jornais e revistas. Lia tudo, até classificados. Queria que os filhos fossem longe, fizessem faculdade e doutorado, e tivessem a iniciativa de adiantar-se aos professores. Não poderia, portanto, voltar atrás. Levantou-se na beira do arroio, viu as bóias do seu espinhel, sentou-se no seu banco e decidiu: vou montar um negócio, sair dessa vida precária. Tinham já se passado 15 dias. Voltou sujo, barbudo, mas com um estranho brilho no olhar ardosiado.

NEGÓCIOS - Montou então uma lenheira, depois um armazém, depois uma loja de brinquedos com uma barbearia ao fundo e prosperou. Tonou-se o único rico entre os irmãos. Um deles era pescador, dois aposentados, uma irmã viúva, numa sucessão de pessoas que costumavam passar o verão naquela esquina generosa, onde a todos acolhia com seu charme de anfitrião. Dizia-se feliz, pois um belo dia mudara o destino. Gostava de iniciativas, de pessoas se virando, de sucesso. Mas jamais fez amizade na elite, com algumas exceções, pessoas que o admiravam e aceitavam como era: um homem franco, independente e que às vezes poderia ser confundido com uma pessoa hostil. Era sócio de todos os clubes, os dos ricos e os da classe média. Não freqüentava nenhum. Por um tempo, gostou de jogar. Sentia-se seguro, com sorte. Mas nem sempre teve sorte. Caiu, mas levantou-se. Montou numa garagem na saída da ponte internacional uma pequena casa de casa e pesca que se transformou num comércio de variedades, desde garrafa térmica até cadeira desmontável. Nessa casa estreei minha primeira ocupação profissional.

EXEMPLO - Quinto filho daquele casal, eu vivia no mundo da lua. Nada sabia da história que os dois criavam ao redor de si. Sem enxergar, eu fazia parte daquele enredo. E dali saí para o mundo, equipado com o que tinha de melhor: o rompante do meu pai voluntarioso e livre, a concentração e a verve da minha mãe. Minha literatura tem essa origem: o pai que enfrentava a correnteza, a mãe que abençoava a partida. E a possibilidade, pelo exemplo, de um belo dia mudar o destino.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Rosa e Elo no final dos anos 30, antes da filharada. 2. Recebo mensagens emocionadas e encorajadoras do meu amigo de décadas Clovis Heberle e do meu irmão Luiz Carlos, sobre a crônica A volta na quadra, publicada no domingo passado no Diário Catarinense. E recebo notícias entusiasmadas de Marco Celso Viola, que enfim localizou nosso grande líder das passeatas de 1968, o cara que, em plena ditadura civil-militar, colocou 30 mil pessoas na rua em Porto Alegre confrontando o regime. Trata-se do ético, corajoso e intelectual dialético José Loguércio, meu candidato à presidência da República nas próximas eleições.

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