30 de julho de 2022

MIRANDA, UM POETA CLASSICO

MIRANDA, UM POETA CLÁSSICO

Nei Duclós 

Foi-se no dia 29 de julho, para sempre, o poeta Luiz de Miranda, talvez o último exemplar em nosso meio de um poeta  clássico , dedicado integralmente ao seu ofício, com toda a carga de danação e sobrevivência. Mestre na vocação a qual se entregou, ele inseriu em sua obra diversas paixões - a poesia, o amor, a esperança, a amizade - transformando duas cidades, Uruguaiana onde nasceu e se criou, e Porto Alegre, que adotou como segunda natureza, em referências da arte poética. E fez dos  contemporâneos matéria prima de inumeráveis poemas. Dedicou ao próximo um lugar ao sol de sua palavra, sem limitar-se a nada. Nele, o poema é o exagero, que cumpriu com o sacrifício da própria vida.

Morreu só como os heróis antigos, no front de um mundo hostil, com seus tesouros públicos como os prêmios, os livros publicados e a aspiração ao reconhecimento maior, o Nobel da Literatura, que se achava merecedor depois de longa jornada coração  adentro.

Devo a Miranda a lição fundamental da poesia. Ele me mostrou o foco principal da nossa arte: a palavra. Eu tateava no escuro e ele me falou numa mesa de bar: poema é antes de tudo palavra.

Parece óbvio mas é tudo. Como diz Drummond, deixa de lado tua infância e "penetra surdamente no reino das palavras".

Conterrâneos longevos , fomos próximos em  muitas fases da vida e neste século pouco nos falamos. Foi-se o poeta clássico, aquele que merece ser estudado em classe. É vasta a sua herança,  é pobre o que temos a dizer diante das iluminações da sua lavra, agora tornada sagrada.

Nei Duclós

27 de julho de 2022

OS ESPÍRITOS



Os espíritos não tem medo do escuro

Curtem quando descobrem que assombram

Procuram os lugares onde vivem

De memória como os velhos indígenas


Ao escapar do purgatório decidem

Ficar em rodizio no limbo

Aguardam vagas se um dia No paraíso lotado abrirem

Janelas de impunes virtudes


Chutam latas, puxam tranças e emitem

Sons guturais e rascantes

que os velhos cachorros

Inventam

para afastá-los do osso


Pois sentem fome as almas espúrias

Que não desistem de serem humanas

E se acaso te encontram, pastora

Na curva de rio tomam banho

E como eu, ai de mim, se apaixonam


Nei Duclós

25 de julho de 2022

PLANOS

 


Tenho planos (cidades vistas ao longe)

Mas me canso (prefiro ficar na estrada)

Siga adiante ( não tente ser veterano)

Chegará tua vez (todos tem essa chance)


Acaba sempre em poesia

O que jamais escrevi 

Abandono minha pretensão de estadista


Talvez sobrevivas

Ao que estava escrito

Eu permaneço na minha

Vocação de vitória

Ao perder o que tinha


Meu gênio irascível

Sabe o que ignora


Nei Duclós

23 de julho de 2022

CATIVO


Convives comigo sem presença física

Isso te libera de inúmeros conflitos

Que meu corpo antigo provoca nas amigas


Longe, para ti sou um querido

Perto, ardo como urtiga 

Quem me  conhece sabe, mais não digo

Melhor manter a imagem sem retoques

O boa praça dedicado aa poesia

E não o bruto, escorpiano pobre

Mendigo do amor, calcanhar de vidro


Ando pela lua a tropeçar cativo

Na palavra perdida, a única companhia


Nei Duclós

18 de julho de 2022

INICIO DE VIAGEM

 


Ser muito pouco no turbilhão do mundo

Fagulha sem repercussão externa

Cultivo pobre em reduto e esquema

Vida impessoal que exaure o sonho


Quantos são assim, isolamento em massa

Sem sintonia da presença ou fala

Passar lotado no funil da época

Conformar-se, de rosto crispado


Isso decepciona o anjo da guarda

O que aposta tudo em seu protegido

Queria dar-lhe asas mas é proibido

Não que ele precise da transgressão das almas

Fica distraído sem lhe faltar o básico


Por isso há tanto anjo jogado às traças

Que precisa do apoio de quem o abandona

Por achar que é terminal o início de viagem 


Fica difícil convencer a humanidade 

que apesar do medo, o sofrimento e a morte

Temos uma porção da divindade

Viemos para ficar com a marca da passagem


Nei Duclós

PROFECIA

 


Escrevo para que eu possa ver

Como ave noturna que acorda para amanhecer


Mesmo que não haja luz

Ou testemunha para o seu cantar

Ela vive do sonho, tão  certo quanto uma profecia

Dita em voz baixa numa praça vazia


Escrevo para não te perder


Nei Duclós

15 de julho de 2022

PRESENTE

 


Achei que tinha tempo

Mas me foi tirado

Ao recebe-lo


O presente está  embrulhado

Em papel de seda

Dentro há um vazio

Com o recado :

Chegou a sua hora

O que é dado

Cobra a conta


Vou partir

Traído pela entrega do futuro

Que não veio 

Fica tudo jogado fora 

O rosto passado

Diante do espelho


Hoje, palavra de sempre


Nei Duclós

14 de julho de 2022

FUGI

 

Antes eu me importava

Agora não me importo mais

Deixo para você

O cultivo que evitei

Negócios que não fechei


Fugi

Não tente buscar-me aqui

Me escondi

Onde jamais estarei 


Nei Duclós

AGUA DA FONTE


E agora que me viste por inteiro

Com todo meu acervo de conflitos

E perdeste a esperança de ser minha

Por eu me aproximar sem ter direito

E afastar um lance verdadeiro

Já que me vesti de oportunista


Saiba que apesar das evidencias  

Sou eu que sofrerei primeiro

Por não ter poder sobre mim mesmo

E ter virado mendigo em teu caminho

Achando que o perdão da minha pena 

Teria sido o amor, água da fonte

A lavar a alma em sua miséria


Nei Duclós

VISITA

 


Quando me visitaste

Em meu sóbrio e solitário apartamento 

Deixaste cair, sem querer, a bolsa

Que foi ao chão com teu cartão e lenço


Nesse momento descobriste tudo

Que estavas ali por um só motivo 

Querias ficar, doce e decidida

Porque nada pode contra o sentimento

Que agarra todo ser e leva ao piso

Nosso corpo comum num improviso

Na improvável comunhão do paraíso


Nei Duclós

13 de julho de 2022

FEITO AGORA

 


Meu poema não gera espanto

Primeiro porque não tenho cacife para tanto

Vivo da mão para a boca

Como um pedreiro do subúrbio 

E não compareço na festa da cultura

Moro longe das experiências que fazem a cabeça dos contemporâneos

Estou sempre convalescendo

Na terceira idade lenta


Segundo porque ninguém se impressiona com mais nada

E prova generosas porções bizarras impactantes

Já estão servidos


Por isso fico na minha

Pesquiso a palavra perdida nos edifícios 

Nos livros desprezados mas onivoros 

Sempre há tesouros sob a pedra


Assim, componho a poesia sem truques

Como pão feito agora para o café preto


Nei Duclós

12 de julho de 2022

ANJO TORTO

 Nei Duclós 


Levo um tempo para chegar a um  acordo

Com o poema que me desafia

Dá trabalho,  como nas redações do bom jornalismo

Eh feito da mesma matéria

A palavra penteada ao extremo 

Submetida ao olhar alheio, atento

Enquanto toca o telefone preto

Desta vez com imagens que se movimentam 


Tecer desse jeito não expõe o esforço

Parece fácil, mas é carne de pescoço

Por isso os poetas andam meio torto

E  colocam a culpa no anjo que lhes sopra o verso


Por serem gauche

Escondem o verdadeiro rosto

E mostram a cara varrida pelo espanto


Nei Duclós

A LEI

 Nei Duclós 


Não faz sentido o poema que repito

Em infindáveis manhãs do Apocalipse

Se é para cumprir as profecias

Basta obedecer o que está escrito 


Mas não é esse do poeta o seu oficio

Calar-se, devoto de silêncios

Eh dizer sempre, mantra convicto

Como os profetas bíblicos em sua meta

Assombrar a praça e denunciar o reino

Com a voz que fica, gravada em pedra viva 


Assim, de cidade em cidade (os teus ouvidos)

Vou mantendo a tradição dos muito antigos 

Que traduzem o sagrado em eterno grito


Revisite tudo o que estah dito

Quando apareço a pé

Trazendo o trigo

Com as tábuas  da lei, o amor cativo

Que é sempre o mesmo, como um recém nascido


Nei Duclós

9 de julho de 2022

CASAMENTO


Casamento de cuidados

Contingência e  compromisso

Eh beijo para todo lado

Ninguém tem nada com isso


Moral de aliança no dedo

Catedral de abençoados

Casal de uma só palavra

Em paz com a diferença  


Homem e mulher tão   ligados 

Que nem se sabe o motivo

Talvez seja a natureza 

Ou o amor, laço de fita


Nei Duclós