4 de março de 2008

BEIJO ENTRE NUVENS


Nei Duclós (*)

Acredito na ciência, que nos convenceu sobre a natureza das nuvens, compostas de gotas suspensas e grudadas em bandos pelo céu. A chuva é, dentro de princípios provados e aceitos, o resultado dessa condensação que encontra um ponto de desequilíbrio e se derrama. Mas desconfio que as nuvens vistas da varanda sejam de outra estirpe. Não foram feitas para assustar nas enxurradas, refrescar nos dias de verão, salvar e também destruir a lavoura. Acho que nos encharcamos de evidências científicas, enquanto os mistérios ficam intactos.

Tenho estudado o comportamento de certas nuvens e noto que elas formam criaturas disformes e gigantescas, não catalogadas nos compêndios de História Natural. Não se trata de enxergar leões marinhos ou elefantes nos algodões que bordam o azul da estação. Ver com olhos livres é aprender algo inédito gerado por contornos e movimentos. Nada a ver com os documentários da televisão sobre a vida nas savanas, geleiras ou arquipélagos. Ou com as lembranças que temos das visitas ao zoológico.

Os seres absurdos reunidos em assembléias silenciosas, mas compactas, são legiões de volumes com um único objetivo: avançar uns sobre os outros. Há câmara lenta nesse embate, vislumbrado por minha atenção desconfiada. Ao mesmo tempo, há velocidade. Vejo que as criaturas se jogam em direção ao que posso imaginar ser um inimigo, se fosse cair na tentação comparativa. Mas os gestos, contundentes, têm comportamento próprio, caótico e só se reportam ao ambiente onde trafegam. Não existe guerra porque não há nada de animal neles.

Qual então o motivo de se engolir no toque, se transformar depois do abraço fatal, tomar outras dimensões quando enfim atingem a meta? Focando o olhar, descobri em cada maçaroca de nimbos (ou plúmbeos, esqueci as lições da geografia) uma vontade que se disfarça para nos confundir. Acabo identificando, contra minha vontade, um perfil de deusa, um cabelo de duendes, narizes bem definidos, bocas entreabertas, testas decididas. Vejo nesse cinema aleatório alguém mirando uma fada que navega em leque sobre o abismo. Ou uma dupla em rápida evolução, quase de mãos dadas. Mãos? Estaria minha percepção traindo a essência dessas visões diurnas?

Notei que essas nuvens nada têm a ver com as chuvas. Você já não experimentou a sensação de levar um banho em pleno dia claro? Ou ficar sob grande massa cinzenta de iminentes tempestades que jamais acontecem? A água se evapora e se condensa e cai na terra seca, mas isso não explica tudo. Existem chuvas misteriosas, geradas não se sabe como. E nuvens com outra carne e com uma diferente missão.

Aos poucos, a muito custo, acumulando quilometragem de rede na varanda, tive uma revelação. As criaturas agem assim e tomam essas formas inverossímeis, que os disfarces não conseguem ocultar, porque procuram fazer bem feito apenas uma coisa.

E essa coisa é o beijo. Sim, existem nuvens dedicadas ao beijo definitivo, que muda o ritmo do andar e corrige o rumo. Levadas pelos ventos soprados por Cupido, o deus travesso, elas sugerem uma civilização do beijo desmesurado, sem que nada ou ninguém interfira. Os casais, aqui embaixo, que se entregam ao mesmo ímpeto, são apenas pobres imitações do que verdadeiramente se passa sobre nossas cabeças.

As nuvens se beijam a céu aberto e em pleno dia. Imaginem o que não fazem à noite.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 4 de março de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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