Há mistérios confundidos com outros mistérios. É fácil achar que os mensageiros espirituais, por exemplo, são anjos, desses de cinema ou novela, que vivem rodeando as pessoas e acabam se apaixonando por elas. Mas os mensageiros espirituais são de outra natureza. No fundo, não existem, ao contrário dos anjos, tão onipresentes. Surgem de repente para cumprir a improvável missão e somem para sempre. Tomam a forma humana por, talvez, serem a essência do humano. Mas chega de teoria. Vamos aos fatos.
Acontece a toda hora. Éramos muito garotos. Nossa turma deixara a última carona do dia e seguia a pé pela estrada deserta, enquanto a noite, poderosa, começava a tomar forma por todo canto. Pios de corujas, estalos de gravetos, ruflar de asas (seriam morcegos?) nos rodeavam, apertando o coração. Mesmo em grupo, não conseguíamos manter a moral. Não havia nada à vista, nem sequer uma luz. A estrada aos poucos se confundia com o breu. Carros passavam, ameaçadores.
Até que um deles, depois de ter voado rente a nós, decidiu dar meia volta e partir em nossa direção. Gelamos. O que seria? Quem estaria no volante? Quais pessoas se escondiam na escuridão para chegar perto de estudantes apavorados e, naquela altura, completamente sem rumo? Então alguém desceu o vidro da janela do carro e ouviu-se uma voz lá no fundo: “Ei,você não é o Fulano?” Era eu. “Irmão do Ciclano? Pois sou colega do teu irmão, cara. Entrem aí e vamos embora para a cidade”.
Coincidência? Então me digam: por que nunca mais ele surgiu na nossa frente, foi-se embora e não deixou rastros? Teria sido a salvação de outras pessoas em outros momentos? Ou aquela foi sua hora, quando brotou na estrada gelada do meio do pampa e reconheceu alguém, parecido com um amigo?
Não há respostas. Vamos a outro caso, o da moça pobre de calça apertada, que se destacou na multidão no meio da megalópole e nos apontou a rua certa depois de uma tarde de passos perdidos, em que fomos engolidos pelo caos urbano e tínhamos urgência para resolver algumas pendências. Ela se destacou sem exibir nada. Nem seu passo era diferente. Mas havia em seu redor algo maior e mais profundo. Imaginei-a voltando-se bruscamente e partindo para nós com um largo sorriso.
“O endereço que vocês procuram e precisam achar antes da quatro da tarde fica nessa direção. Está perto, não desistam”. Olhei de novo para a mulher. Ela nem sequer tinha olhado para nós. Continuara seu caminho, e misturou-se à massa. Foi um flash aquela orientação, dita fora do mundo, no sonho acordado num momento difícil. Seguimos o rumo apontado e chegamos a tempo para resolver a questão.
Não se trata de providências comuns, fruto das pregações e das certezas. Os mensageiros espirituais são voláteis, não fazem parte de nenhum credo, nenhum sistema de princípios. Eles surgem e somem e pronto. Seriam como lances da divindade em socorro a quem precisa. Porque a vida comum, diária, prosaica, profissional, doméstica, tão real como uma pedra, é no fundo um queijo suíço, cheio de vãos por onde passam, céleres, os pés voadores dos mensageiros espirituais.
Eles não pregam a verdade, não possuem nenhuma vaidade em direção à eterna busca do Absoluto. São puro movimento em forma de gente. Agem na vigília e no sonho. Na imaginação e na evidência. Na vitrine e na escada rolante. No cartório e na escola. Na rua e na torre. Não são capazes, como os anjos, de tomar alguém pelos braços e levá-lo a um hospital. Não possuem carne os mensageiros espirituais.
Eles podem, sim, acordar subitamente o único médico capaz de fazer aquela cirurgia. Na calada da noite, o doutor, exausto de tantos dias trabalhados, veste-se rapidamente e segue uma estrela. Chega então à sala de operações para resolver um impasse.
É assim que eles agem. Podem estar ao teu lado. Mas não por muito tempo. Por isso abra os olhos. Eles chegam a qualquer momento. E no instante seguinte, não estarão mais aqui. Mas deixarão algo em tuas mãos, a alegria de compartilhar um mistério, a chance de participar da grandeza que sempre nos escapa. Somos então tocados pela graça dos mensageiros espirituais, esses vulneráveis ajudantes do Bem, que tanto nos faz falta.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim des semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Fada madrinha, quadro de Juliana Duclós. 3. Recebo a seguinte correspondência, que muito me honra:
Prezado Nei Duclós:
Aproveito o ensejo e, invadindo seu espaço, gostaria de compartilhar uma experiência "familiar", no mesmo sentido. E, também, solicitar sua autorização para difusão, em veículo impresso (revista espírita) seu texto tão oportuno.