29 de março de 2008

MENSAGEIROS ESPIRITUAIS


Nei Duclós (*)

Há mistérios confundidos com outros mistérios. É fácil achar que os mensageiros espirituais, por exemplo, são anjos, desses de cinema ou novela, que vivem rodeando as pessoas e acabam se apaixonando por elas. Mas os mensageiros espirituais são de outra natureza. No fundo, não existem, ao contrário dos anjos, tão onipresentes. Surgem de repente para cumprir a improvável missão e somem para sempre. Tomam a forma humana por, talvez, serem a essência do humano. Mas chega de teoria. Vamos aos fatos.

Acontece a toda hora. Éramos muito garotos. Nossa turma deixara a última carona do dia e seguia a pé pela estrada deserta, enquanto a noite, poderosa, começava a tomar forma por todo canto. Pios de corujas, estalos de gravetos, ruflar de asas (seriam morcegos?) nos rodeavam, apertando o coração. Mesmo em grupo, não conseguíamos manter a moral. Não havia nada à vista, nem sequer uma luz. A estrada aos poucos se confundia com o breu. Carros passavam, ameaçadores.

Até que um deles, depois de ter voado rente a nós, decidiu dar meia volta e partir em nossa direção. Gelamos. O que seria? Quem estaria no volante? Quais pessoas se escondiam na escuridão para chegar perto de estudantes apavorados e, naquela altura, completamente sem rumo? Então alguém desceu o vidro da janela do carro e ouviu-se uma voz lá no fundo: “Ei,você não é o Fulano?” Era eu. “Irmão do Ciclano? Pois sou colega do teu irmão, cara. Entrem aí e vamos embora para a cidade”.

Coincidência? Então me digam: por que nunca mais ele surgiu na nossa frente, foi-se embora e não deixou rastros? Teria sido a salvação de outras pessoas em outros momentos? Ou aquela foi sua hora, quando brotou na estrada gelada do meio do pampa e reconheceu alguém, parecido com um amigo?

Não há respostas. Vamos a outro caso, o da moça pobre de calça apertada, que se destacou na multidão no meio da megalópole e nos apontou a rua certa depois de uma tarde de passos perdidos, em que fomos engolidos pelo caos urbano e tínhamos urgência para resolver algumas pendências. Ela se destacou sem exibir nada. Nem seu passo era diferente. Mas havia em seu redor algo maior e mais profundo. Imaginei-a voltando-se bruscamente e partindo para nós com um largo sorriso.

“O endereço que vocês procuram e precisam achar antes da quatro da tarde fica nessa direção. Está perto, não desistam”. Olhei de novo para a mulher. Ela nem sequer tinha olhado para nós. Continuara seu caminho, e misturou-se à massa. Foi um flash aquela orientação, dita fora do mundo, no sonho acordado num momento difícil. Seguimos o rumo apontado e chegamos a tempo para resolver a questão.

Não se trata de providências comuns, fruto das pregações e das certezas. Os mensageiros espirituais são voláteis, não fazem parte de nenhum credo, nenhum sistema de princípios. Eles surgem e somem e pronto. Seriam como lances da divindade em socorro a quem precisa. Porque a vida comum, diária, prosaica, profissional, doméstica, tão real como uma pedra, é no fundo um queijo suíço, cheio de vãos por onde passam, céleres, os pés voadores dos mensageiros espirituais.

Eles não pregam a verdade, não possuem nenhuma vaidade em direção à eterna busca do Absoluto. São puro movimento em forma de gente. Agem na vigília e no sonho. Na imaginação e na evidência. Na vitrine e na escada rolante. No cartório e na escola. Na rua e na torre. Não são capazes, como os anjos, de tomar alguém pelos braços e levá-lo a um hospital. Não possuem carne os mensageiros espirituais.

Eles podem, sim, acordar subitamente o único médico capaz de fazer aquela cirurgia. Na calada da noite, o doutor, exausto de tantos dias trabalhados, veste-se rapidamente e segue uma estrela. Chega então à sala de operações para resolver um impasse.

É assim que eles agem. Podem estar ao teu lado. Mas não por muito tempo. Por isso abra os olhos. Eles chegam a qualquer momento. E no instante seguinte, não estarão mais aqui. Mas deixarão algo em tuas mãos, a alegria de compartilhar um mistério, a chance de participar da grandeza que sempre nos escapa. Somos então tocados pela graça dos mensageiros espirituais, esses vulneráveis ajudantes do Bem, que tanto nos faz falta.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim des semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Fada madrinha, quadro de Juliana Duclós. 3. Recebo a seguinte correspondência, que muito me honra:
Prezado Nei Duclós:
Nossos cumprimentos por seus "relatos" no Donna DC deste domingo (30.03). Mensagens assim, simples, verdadeiras, poéticas até, são excelentes lenitivos para a "vida" e para as "relações humanas". Os mensageiros, próximos ou mais distantes, são, seguramente AMIGOS que reduzem o peso de alguns "fardos" e estendem a mão, ante perigos e dificuldades mais ásperas. Ideal é termos o "peito" aberto e a consciência desperta para percebê-los, seja no momento em que "aparecem", seja no instante seguinte, quando, das situações, tiramos grandes lições.
Aproveito o ensejo e, invadindo seu espaço, gostaria de compartilhar uma experiência "familiar", no mesmo sentido. E, também, solicitar sua autorização para difusão, em veículo impresso (revista espírita) seu texto tão oportuno.
Cordialmente, Marcelo Henrique Pereira, Presidente da Associação dos Divulgadores do Espiritismo de Santa Catarina Secretário para a promoção da juventude da Confederação Espírita Pan-Americana . Editor-Chefe da Revista Espírita HARMONIA.
4. O texto de Marcelo Henrique Pereira é impressionante: relata o caso verdadeiro acontecido anos atrás em que um ancião, surgido do nada, curou a perna da sua irmã. Assim como veio, se foi. Sumiu, segundo testemunhas, enquanto caminhava no ermo, um lugar deserto onde pediu para ser deixado.

27 de março de 2008

O QUE É DESIGN?


Design é a capacidade de cobrar mais caro por artigos desvirtuados de suas utilidades. Bancos impossíveis de sentar, xícaras quadradas, alças escorregadias: são inúmeros os exemplos da tralha criada em prancheta e que acaba se transformando, pelo artesanato ou na fábrica, em coisas só para serem olhadas. Enfeitam a sala. São como vasos etruscos. Não vá querer colocar flores neles.

O álibi para convencer os trouxas, de que aquilo é como a roupa invisível do rei, é que não existe nenhum fedelho para denunciar que o imbecil está nu. Todos se calam diante da grande arte. Você sai com as costas doendo, quase derruba a louça por não ter onde segurar, desiste de sorver qualquer coisa nos bocais que funcionam apenas na hora da foto, mas não dá o braço a torcer. Diz que tudo é um primor e, se seu sobrenome terminar em i ou one, diga algumas frases com sotaque italiano.

Pois os italianos são uns espertalhões. Lembram do golpe da Benneton? Juntaram milhares de fabriquetas fajutas, padronizaram o design, mergulharam as roupas em cores dignas de uma lavanderia chinesa e disseminaram uma caríssima publicidade tomada pelo avesso: gente moribunda, entre outros expedientes. Todas as cores da Benneton. Era disáin! A roupa não durava, desbotava, ficava logo em frangalhos. Era fácil de piratear. Mas vai falar mal.

O design bebe na fonte da performance artística, a vanguarda pela vanguarda, em que vassouras possuem cabos de foice. Serve para ganhar prêmios, enriquecer os desenhistas e ludibriar a população. Fui comprar um banquinho de madeira e me assustei com o preço de uma droga colocada bem no meio do show-room. Mas por que custa tanto? Ah, esse tem disáin! disse, orgulhosa, a atendente.

O engodo precisa de entorno. O que se destaca no apoio é a palavra conceito. Você pode fazer a maior porcaria, preparar uma tremenda armadilha para ganhar uns trocos, mas para isso é necessário que você use a palavra conceito. Qual o conceito da comida vendida em lanchonetes e restaurantes hoje? Nada da generosidade do velho bauru, ou daquele beirute inesquecível, ou mesmo o clássico xiz-salada. O conceito é colocar uns glégous e chamar aquilo de frango, por exemplo. Quer de frango? Aí te servem glégous, uma pasta horrenda, muitas vezes dura. A indústria alimentícia está cheia de conceitos. Implantam até cheiro de picanha e te servem soja. É o conceito.

Funciona da mesma forma no disáin. O conceito não é sentar, entende, é desarmar os gestos e recriar a postura corporal para que as pessoas cumpram sua missão de fazer pose, enquanto consomem a cafeteira para pó de cinco mil dólares o quilo, a faquinha para cortar alho poró indonésio, o pretinho básico que custa uma fortuna. Conceitos como o canivete suíço são xangai, cafonas, coisas de pobre. É preciso criar formas em produtos para quem não precisa de nada, os privilegiados da má distribuição de renda, que se vestem e comem brisa, porque estão até o pescoço com a bufunfa predada das nações.

Você pega um cartão de crédito, por exemplo, e compra design. E sai sacolejando o esqueleto usando óculos de disáin, sorrindo como uma bestalhona por aí, enquanto as câmaras te filmam. És a estrela do disáin. Tem gente que paga para ver.

RETORNO - Imagem de hoje: um banco com formas orgânicas projetado por Brodie Neill feito de fibra de vidro envernizada. Fonte: http://mocoloco.com/

25 de março de 2008

A FALA DE PROMETEU


Nei Duclós (*)

O mundo não existe e nenhum lugar faz sentido. Não se trata de niilismo ou pessimismo, é a pura verdade e nada podemos fazer contra ela. Raspe o edifício e renasce o terreno baldio que o precedeu. Continentes submergem sem deixar vestígios. A cidade abandonada não guarda nenhuma memória. Tua infância jamais te pertenceu. O noticiário se repete porque exauriu sua capacidade de iludir. Tudo flui para o nada nesta rua de fim de bairro, onde as pessoas chutam pedras a esmo, solitárias.

As perguntas já foram respondidas: nascemos para passar o tempo, vivemos para acumular dúvidas e desaparecemos entre gargalhadas alheias ao nosso martírio. A vida pessoal é uma obsessão de mentes que se ocupam à toa. Falar da vida alheia parece ser uma saída para o vazio universal, mas chega a hora de fechar a porta, recolher-se, e deixar que as corujas ocupem o telhado. As televisões nos assistem e caem no sono.

É inútil ocupar-se com planos, eles serão traídos. É exaustivo palmilhar os caminhos, eles nunca te levam ao destino. Não há poder em existir, mesmo que reines sobre a face da Terra. Teus súditos voltarão as costas quando menos esperas. Eles compartilham da mesma sina, a indiferença total do Mistério que nos circunda. Há os que tentam extrair poesia do céu estrelado, mas a Via Láctea empedrou e empurra o Cruzeiro para o abismo.

O bocejo é a única lei universal. Bilhões de criaturas nascem para dormir. Quem se insurge contra esse absurdo acaba sendo insuflado pela insônia. Garfos rasgam imaginações soltas da vigília. E o sono toma conta de tudo, numa catedral onde o breu é a divindade. Insetos chiam num horizonte de agulhas. Corvos piam em janelas infecundas. Socos e surras se agrupam em torno de almas de vime. A metralha varre como granizo. Há nucas quando frontes se exaltam. E costas largas que abrigam crimes.

Não existe carne desperta no açougue sombrio. Nem sossego nos corredores de fúria. Nossos pés mergulham em areias frias. Minas somem dos mapas, tomados pelos fungos. Facas cortam a luz que urra na margem do rio. Há algo de roedor nas fuças dos minutos. As horas suam nas cavernas surdas. E escorrem, pelas trilhas dolorosas de pássaros extintos.

Nada existe, a não ser a linguagem. Tudo finda, com exceção da palavra. O que nos ocupa não tem importância, o que pega é o texto, o verso, a frase, a letra. As falas são os únicos sobreviventes do massacre. O dito é o que ressurge, cria, funda. O amor é seu filho, a dor sua prova. Passam os séculos, mas tua sílaba fica. Como um fígado que renasce diante do abutre. És ladrão do fogo, Prometeu acorrentado, a cuspir no medo. De tua boca sai a metáfora, a sentença, o desafio da pitonisa, a salva de canhões, o grito.

Basta tua garganta para revelar a senha, submersa pela sanha assassina. A vida escapa, mas teu poema é a corda sobre o precipício. É espantoso ver Deus pôr-se de pé quando enfim consegues achar o som forjado em tua glória. Estendes então o dedo em direção a esse gesto de Capela Sistina. És a Criação, e a Terra enfim te acolhe, na semeadura utópica e sem motivos. Agora és um ruído de sementes em direção às águas. Brotas dessa brutalidade vaga, feita de ossos.

Teu rosto emerge na tormenta. A superfície se acalma. Um sopro cruza teu coração como um espírito.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 25 de março de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Prometeu rouba o fogo dos deuses.

UM PAÍS SEM VALOR


Evito ao máximo o noticiário de televisão. Mas às vezes me pego em frente à telinha e vejo a sucessão de barbaridades, pseudo-notícias entremeadas de mentiras publicitárias nos intervalos e fora deles. O que se destaca é o Brasil sem soberania, à mercê de quem o rifou para o mercado. O horror está em todos os minutos.

O megatraficante apanhado com mais de uma tonelada de cocaína amanhece morto numa cela poderosa. A tragédia são as caras e bocas do ministro prestigiado, dizendo que vai fazer uma investigação séria. Não existe seriedade se alguém, que movimenta tanta grana no tráfico de drogas, morre sob a guarda do Estado e a versão é que o sujeito cortou a carótida com uma faquinha de plástico.

Está resolvido: o mosquito da dengue é municipal. Mas como a doença explodiu no Rio de Janeiro, então o governador explica que agora o caso é estadual. Enquanto isso, o governo federal tira ouro do nariz.

Montanhas de livrecos imbecis dirigido às crianças, a maioria editados com verbas públicas, são carregados por um jegue e atirados no chão, onde são recolhidos por estudantes que perdem tempo lendo suas páginas. A tragédia é que o troço ganha destaque e pode servir de paradigma para outras iniciativas. Teremos a Jeguebrás, no mínimo.

Há 17 anos uma fulana tortura crianças e só agora houve uma denúncia. Ela achava que estava educando e não torturando. É que o povinho não tem valor, então precisa das luzes de quem se coloca acima dele.

Foi só existir a ameaça de reestatizar a grande empresa exploradora de minérios, vendida no governo FHC por 3 bilhões de dólares quando valia 90, para ela então inundar a mídia de publicidade. O mote é que o brasileiro vale. Vale nada. Está na mão dessa canalha.

A famosa atriz faz o papel da dona de casa imbecil que consegue um cartão de crédito, a agiotagem em forma de dinheiro plástico, e sai pulando de contente no shopping. Claro que está feliz. Ganhou cachê para o banco, a quem serve, mentir.

Mente-se deslavadamente, de maneira maciça e sem nenhum constrangimento. Claro, não existe oposição. Estamos no auge da ditadura. Vai falar mal dos caras, vai. São todos impolutos, inocentes, sérios, corretos. E dê-lhe propaganda dos heróis da nossa democracia. Nenhum deles é trabalhista.

Por falar em trabalhismo, ontem vi uma saraivada de reclames do partido traidor mentindo sobre carteira assinada e direito dos trabalhadores. Para isso lutou e morreu Leonel Brizola. Para os cretinos empalmarem sua herança.

A putaça que derrubou o governador americano fala com intimidade com quem quer que se aproxime dela. “Fulano, você sabe, né fulano” dizia ela para o repórter. É uma técnica da prostituição que foi adotada no comércio. Nas loja perguntam teu nome. E começam: “Pois então, Fulano, temos uma promoção, né Fulano”.É o mesmo expediente. O mundo transformado em mercadoria destruiu a nação soberana e impôs a cultura de bordel.

O Brasil é reconhecido internacionalmente pelo michê.

RETORNO - Imagem de hoje: foto impressionante de Anderson Petroceli, do cachorro que parece estar correndo sobre as águas. Cachorro brasileiro, naturalmente.

23 de março de 2008

AMÉRICA PEDE SOCORRO


Pela primeira vez vi a bandeira americana virada do lado contrário num filme feito nos Estados Unidos. É o pedido de socorro em “No vale das sombras”, de Paul Haggins, sobre a investigação policial de um assassinato. Soldado que volta do Iraque, sai para a balada com os colegas e aparece esquartejado. A invasão dura há seis anos, mais do que o tempo do envolvimento americano na Segunda Guerra Mundial. Hora de tirar o time de campo, pois o bem mais precioso para a sobrevivência no conflito, a camaradagem entre os soldados, se quebra. A crueldade no front se volta contra o próprio Exército.

É o país que perde a identidade ao acreditar na versão oficial da luta contra o terrorismo. Manipulado por um bruto, George W. Bush, a nação se deixa levar pelo medo e o ressentimento e vai buscar sarna para se coçar longe de suas fronteiras. Deveriam fazer como Higgins que procura, e acha, os motivos dentro do próprio território. Está na cara que toda liberdade que a repressão ganhou depois do11 de setembro torna o atentado altamente suspeito. Nenhum líder de sandália e camisolão tem tecnologia para levar alguns aviões direto para as torres gêmeas.

No futuro, se ainda houver liberdade, este início de século será conhecido como a época da Grande Fraude. Foi uma cartada da extrema direita americana para implantar a ditadura que cevou por todo o planeta durante mais de um século. Enfim provaram do próprio remédio. Agora, com o que resta de liberdade de opinião, e com eleições à vista, além de serem comidos pelos calcanhares por uma profunda e devastadora crise econômica, começam a fazer autocrítica. Tarde piaram. Agora lambam as feridas.

É mais uma sinuca de bico. Sair do Iraque assim no más, nem pensar. Permanecer, nos termos atuais, idem, pois significa aumentar os contingentes, inventar novas estratégias a cada semestre para confundir a opinião pública. Por isso a América pede socorro. É preciso tirá-los do atoleiro, senão vai todo mundo para o buraco. O Brasil teve chance de interferir, mas Sérgio Vieira de Mello foi assassinado pelas forças que queriam o caos. Não está descartada a hipótese de também esse atentado ter sido forjado dentro das hostes da falsa democracia. Vieira de Mello iria atrapalhar a guerra.

As raízes do Mal estão fortemente plantados no coração da América, como prova o rosto marcado de Tommy Lee Jones, que, disparado deveria ter ganhado o Oscar e não o histriônico Daniel Day Lewis. Susan Sarndon fez uma ponta e nos deslumbra com a força do seu carisma e do seu talento. Um súbito olhar para o militar que tenta consolá-la pela morte do filho serviria, em apenas um segundo, para lhe dar todos os prêmios de interpretação do ano.
Vejam que raridade. Gostei desse filme, apesar do tema recorrente (os americanos e suas guerras).

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Tommy Lee Jones e Susan Sarandon numa cena de “No Vale das sombras”. 2. Este é o quarto post no feriadão da Páscoa. Depois não perguntem por que o Diário da Fonte “parou”. Nós jamais paramos.

CRIME VISTO DO ESPELHO



Nei Duclós

A cara refletida no espelho era grande, pipocada, grossa. Um bigode exagerado grudava-se às costeletas, algumas mechas caíam da cabeleira, as orelhas eram enormes e flácidas. Os olhos pretos tinham se tornado foscos, quase não se distinguiam naquela ramaria de linhas e pêlos.

O espetáculo do seu rosto, imóvel diante do espelho que cobria toda a parede, era apenas o primeiro plano de um vasto painel, formado pelo movimento da rua e da calçada em frente à sua barbearia. Sentado na cadeira gasta em vinte anos pelos fregueses que ele custou a conquistar — e que depois desapareceram - ele via, ao fundo daquela paisagem de vidro, os carros cruzarem, de maneira desigual, o espaço refletido. Pois, bem no meio, havia um a divisão que repartia a realidade em cascas diferentes do mesmo ovo.

No outro lado da rua, na calçada escondida pelos ônibus, automóveis e caminhões que passavam a toda velocidade, estavam os elementos novos do seu bairro: a lanchonete, onde operários e colegiais disputavam os poucos bancos para almoços rápidos ou refrigerantes; a boutique, que tinha substituído o açougue, exibindo, em vez de carnes e donas de casa angustiadas, as jovens senhoras que alugaram os apartamentos recém construídos; e também a padaria luminosa e sempre lotada, erguida há dois meses no terreno baldio do falecido coronel Beregaray, que no começo do século era dono da metade do bairro.

Desocupado compulsoriamente pelos novos hábitos, o barbeiro recusava-se a abandonar seu posto, antigo local de encontro dos companheiros de bermudas, chinelos e camiseta, que esticavam uma conversa no banco em frente à sua porta, nos dias de verão, ou que se aglomeravam dentro do estabelecimento com casacos e opiniões sobre futebol e política nos longos meses de inverno e chuva.

Naquele tempo - e não faz muito - era o encarregado de negócios espontâneos, como vender um revólver de estimação, cabo de ouro, ou automóveis antigos, entre aposentados excêntricos. Guardava também recados e chaves de senhores respeitáveis, para pedreiros que chegariam um pouco mais tarde, ou domésticas envolvidas em compras ou namoros demorados.

Era ele também que se ocupava - antes de surgir a banca da esquina - dos 20 exemplares do Correio do Povo vendidos religiosamente entre os mais tradicionais habitantes da rua. Na sua barbearia, havia uma valiosa coleção de exemplares antigos da revista O Cruzeiro, no tempo em que a política tinha graça e as pessoas famosas matavam por amor.

Agora, sentado no seu trono, usava o tempo para desvendar os mistérios dos novos habitantes - já que os antigos tinham se mudado, morrido ou simplesmente cortado relações. Observava os grupos adolescentes que atravessavam a rua para esperar o ônibus, tentando, todos os dias, fixar algum rosto para reconhecer no dia seguinte. Ou então apostava consigo mesmo se poderia acertar a hora em que Dona Laura, a nova dona do casarão, passava em direção ao escritório de advocacia na esquina.

Mas nada fazia sentido. Os adolescentes se pareciam, Dona Laura ficava meses sem mostrar as curvas (teria achado outro caminho?) e os velhos, esses não existiam mais. Talvez tivessem fabricado um asilo gigante, longe da cidade, onde eles eram alimentados com pirão de batata e antigas valsas em álbuns oportunamente reeditados.

Do vasto enigma, sobrava seu rosto e a cumplicidade do espelho que, assim mesmo, gostava de pregar suas peças, graças ao racha que o dividia em dois e fazia os automóveis e as pessoas desaparecerem para surgirem em planos diferentes. E também havia aquelas "rugas" no canto do vidro, que diluíam as imagens e obrigavam o barbeiro a desistir e voltar sua atenção para o ponto seguinte, para a velocidade incômoda da vida, que lhe atrapalhava a visão, os hábitos e o bolso.

Um dia, cansado da nova rotina, já que o movimento excessivo do seu "cinema" particular lhe enchia de perguntas em vez de lhe apresentar soluções, resolveu cochilar na cadeira. Para pessoas como ele, acostumadas ao trato dedicado com os fregueses, à tradição de bom relacionamento pessoal que existe nessas velhas profissões, cochilar era faltar o respeito consigo mesmo. Mas o sono repentino era a prova de que ele já se habituara ao vazio da sua vida nova, que lhe consumia o rosto e a vontade, obrigando-o a permanecer em estado de apatia permanente, jogado fora como um mendigo de praça.

Era uma tarde de sexta-feira e o vento norte enchia as ruas de uma névoa de poeira, sacudindo os eucaliptos dá avenida e levantando monotonamente as saias e os casacos dos passantes. Nada lhe obrigava a ficar acordado, a não ser suas dúvidas, que pesavam demais naquele início monótono de primavera. Longe de si mesmo, aprofundou-se no esquecimento, apesar do barulho da rua e da gritaria da natureza, aparvalhada com a mudança brusca da humanidade e das estações.

Súbito, um berro distante atrapalhou seu sonho formado por lentas procissões de casarios e velhos endomingados. Um ruído vinha como um alfinete gigante, perfurando o mundo, penetrando em seu corpo desmaiado e que aos poucos começou a sacudi-lo na cadeira. Pensou que fosse ele mesmo que estivesse gritando, pedindo pelo amor de Deus que o tempo voltasse, que o piano do cinema tocasse para trás para acompanhar as aventuras sonâmbulas de algum casal envolvido numa trágica e melosa história de desamor.

Abrindo os olhos, seu pensamento custou a acompanhar o que se passava na sua frente, refletido no espelho, bem acima de sua testa suada de susto: alguém, na calçada do outro lado tentava escapar de uma faca empunhada com fúria por um homem alto e musculoso, tão forte que não deixava nenhuma chance para o autor do berro e do seu despertar apressado.

Para seu desespero, o sinal, recém aberto, despejou um volume de carros que ocupou todo o espaço do espelho. Grudado na cadeira, ele ainda esperou alguns segundos para ver a continuação do seu pesadelo, como se o desfecho pudesse decifrar aquele momento confuso. No intervalo entre um ônibus e um carro, viu a faca sendo enterrada na barriga da vítima, que antes de tocar no chão foi encoberta por nova rajada de automóveis.

A cena custou a se manifestar com a transparência exigida pelo pavor da testemunha. Pelo efeito da rachadura, cada estocada avançava aos saltos, e tremia enquanto arrancava os berros da vítima, não reconhecível por também estar situada naquela fenda que encobria o crime. Era como se o filme, muito antigo, fosse interrompido pela incompetência da projeção, enchendo de impaciência os espectadores.

O barbeiro sentiu que suas mãos estavam grudadas na cadeira não pelo suor, mas pelo sangue que deveria estar chegando já na sarjeta da calçada em frente. Poderia ter visto o final do crime, mas como conseguiu se levantar, o rosto imenso cobriu o campo visual, lhe deixando novamente só, cara a cara consigo mesmo.

Essa visão, entretanto, já não lhe interessava mais. Seu rosto já não fazia mais sentido, apenas lhe atrapalhava o pânico e a curiosidade. Não queria mais ver seus olhos sem resposta, aquela confusão de pequenas cicatrizes e linhas disformes. Precisava descobrir o que se passava por trás da sua cabeça cansada e além da sua expressão de espanto. Por isso, voltou-se demoradamente para enxergar a vítima ensangüentada.

Foi seu único gesto de liberdade, o de virar-se para interromper uma vida vivida pelo avesso. De costas, abandonava ali o mundo repartido que refletia assassinatos. E deu um passo decidido para alguém que pedia socorro, enquanto pegava sua navalha no fundo da gaveta, para enfrentar o destino mal intencionado, que lhe pregava peças.

RETORNO - Este conto foi escrito há décadas, quando eu morava no bairro de Ipanema em Porto Alegre (anos 70). Uma cópia estava na mudança que trouxe de São Paulo. Publico pela primeira vez, com pequenos acertos em relação ao original.

22 de março de 2008

CAMPANA


Nei Duclós


O barco absorto como um besouro morto
Um corpo é sua sombra

O peso de alguém mantém a corda tensa
Um pescador na âncora

O barco encarna a mudez do assombro
Remorsos de sangue

Ele interrompe o sonho da paisagem
Proa de imóvel soco

O barco está pronto como um filho ausente
Pedra vista ao longe

A não ser que a corrente do poema
Fareje o crime hediondo

Não há provas, segreda o único suspeito
Seu álibi é o silêncio

RETORNO - Imagem de hoje, que inspirou o poema: "O repouso da embarcação nas águas do rio Uruguai ", de Anderson Petroceli.

21 de março de 2008

DOIS FILMES POLÍTICOS

"Leões e cordeiros”, de Robert Redford, e "Brizola: Tempos de Luta”, documentário de Tabajara Ruas, são filmes políticos urgentes, que merecem ser vistos. Abordo as duas obras em capítulos separados, a seguir.



AUTOCRÍTICA DO DÓLAR FURADO

Quanta “coincidência”: a má-consciência dos militantes democratas de Hollywood, da imprensa e da intelectualidade em geral, que embarcaram na canoa furada de Bush no Iraque, se manifesta em tom de autocrítica bem no momento em que a guerra cobra a conta, ajudando a fazer água na economia do dólar furado. Perigo: os dito progressistas podem perder dinheiro! Pânico geral. Quando o bolso está sob ameaça, é hora de rever tudo.

O rebento mais explícito dessa reviravolta é o filme Leões e Cordeiros. O título original é “Leões por cordeiros”, ou Lions for lambs, expressão que faz parte de uma frase citada no filme, de autoria de um alemão, sobre os soldados ingleses na Primeira Guerra, que sofriam sob o tacão de comandantes pífios. Guerreiros sob as ordens dos covardões seria a tradução na lata, limpa de metáforas.

É o álibi perfeito para o roteirista Matthew Michael Carnahan e o diretor Robert Redford criticarem a direção da guerra, mas não a guerra em si. O grande problema não é o direito de os americanos meterem a pata no mundo como bem entendem a partir do 11 de setembro de 2001 (já faziam antes, o atentado só serviu para intensificar a vocação). Mas sim a quantidade de corpos que voltam em sacos plásticos, a bufunfa jogada fora (as armas tirando recursos da indústria do entretenimento), e, claro, as eleições presidenciais deste ano, pois é disso que se trata. Se um presidente democrata vencer, o que acontece com a guerra?

O filme procura dar uma resposta. Se Obama ou Hillary chegarem à Casa Branca, a guerra fatalmente entrará numa fase mais “racional”. Sairá da guarda dos falcões para se abrigar no destino da correção política (o que seria um resgate das melhores intenções da nação que virou Império). Ao mesmo tempo em que irá desmascarar os responsáveis diretos pelo massacre (tanto os republicanos que impuseram o terror quanto os democratas que foram coniventes), fará uma convocação para que as melhores cabeças de se encarreguem da guerra, não deixando que ela fique ao sabor dos atuais criminosos.

O filme tem o cuidado de valorizar os soldados que dançam na montanha gelada sob o fogo muçulmano, e de denunciar a conivência da mídia (comprada por grandes negociantes). Chama a atenção da juventude alienada e privilegiada, que se beneficia dos contingentes excluídos, que procuram as Forças Armadas para lutar pelo país que os deixou de fora. Essa inclusão feita na marra por negros e chicanos é condenada, o que vale é a opção consciente dos americanos loirinhos e ricos.

O filme é sobre culpa, alienação e perspectivas a partir do fim da era Bush. Deixa de lado o principal: a possibilidade de os Estados Unidos contestarem de fato seu direito ao terror internacional sob a capa do super-heroismo. Isso é citado superficialmente, já que uma obra metida a consciente não poderia deixar esse aspecto de fora. Mas a abordagem não é séria. Pois os americanos se enredaram na ditadura depois que sofreram o ataque de 11 de setembro. Colhem o regime que disseminaram pelo mundo. São vítimas e agentes do Mal que imaginam combater.



UMA PLANTA NO DESERTO

“Votem em qualquer um de nós, menos na direita, que quer entregar o país”, diz Brizola em Tempos de Luta, documentário de Tabajara Ruas, selecionado para o Festival de Cinema do Recife, que será realizado no final do abril até maio. Ele se referia a Lula, entre outros candidatos. Mal sabia o que iria acontecer mais tarde e que denunciou, com veemência, logo no primeiro mandato do governo petista. Deveria ter dito: Votem em mim, que é a única garantia de o Brasil não ser entregue aos estrangeiros. Mas Brizola é de uma terra em que soar convencido é crime. Que pune o egoísmo e celebra a generosidade, virtude que jorrava do líder porque se alimentava do povo a quem servia.

Duas cenas constrangedoras denunciam a traição a que foi submetido: uma, a de Tancredo Neves de cabeça baixa e mexendo em alguma coisa, como a negar o que estava sendo dito por Brizola ao microfone, na Cadelária, quando o movimento Diretas-já ganhou força. A outra, a de Brizola levantando a mão do candidato Lula em 1989, quando perdemos a chance de termos um estadista de verdade no Planalto. Meio por cento de diferença e pronto, lá estava o movimento de resistência popular encarnado pelo falso operário diante de Collor, o bom-mocismo da extrema direita.

O documentário é enxuto, super-bem feito, se aprofunda no movimento da Legalidade e deixa de fora, de propósito, algumas passagens, especialmente as dificuldades do final da vida. “Quis filmar a lenda”, disse Taba para mim quando me deu de presente um exemplar do seu novo filme (que não pode ser comercializado, segundo determinações dos contratos de financiamento). Conseguiu. É emocionante. A água fria fica a cargo da aparição sinistra de Lula, FHC e Jarbas Passarinho. Surpreendentemente, Stedile e Dilma Roussef deram os melhores depoimentos. É supreendente para mim, que tenho os dois em baixíssima conta, fato que deve tirar o sono deles em noites sem lua.

Flavio Tavares e Mario Soares fizeram pouco de Brizola, achando que o gênio político foi influenciado por Che Guevara (Tavares) ou resolveu se civilizar quando chegou na Europa (Soares). E Carlos Luppi, o ministro do governo traidor, chama Brizola de “bom gaúcho”, uma espécie de “bom mineiro”, ou seja, um sujeito esperto e matreiro. É impressionante como as pessoas projetam nos outros os próprios defeitos.

Mas está tudo lá: a encampação da ITT no RGS, feito de maneira legal, a fundação do Movimento dos Sem Terra (coisa que saiu da cabeça de Brizola) a resistência democrática em 61 contra o golpe de estado, a infância dura, a juventude suada, a ascensão irresistível de quem deveria ter sido nosso presidente, e que não foi, porque a ditadura se consolidou e o maior objetivo era impedir que ele chegasse ao poder. Triste sina a do país que perdeu a soberania e que hoje lambe as feridas lembrando os grandes estadistas do Brasil soberano, aquela nação que foi assassinada.

RETORNO - Imagens de hoje: na primeira foto, Merryl Strip e Tom Cruise no filme de Redford; na segunda, cartaz do documentário que concorre em Recife.

18 de março de 2008

GREVE DE PALAVRAS


Nei Duclós (*)

A recente greve dos roteiristas expôs o mecanismo da indústria do espetáculo nos Estados Unidos. Tudo parte da palavra, desde as imagens até a piada que parece tão espontânea. Nos making of dos dvds, os atores, pelos menos os mais ricos, seguem scripts. A entrevista sobre o tema do filme ou a carreira do artista bebe na fonte que jorra previamente do verbo especializado.

Situação inconcebível em nosso meio, já que ninguém precisa de roteiro para nada. Aqui se improvisa o tempo todo. Não é costume pagar alguém para saber o que dizer em frente às câmaras. Talvez seja melhor assim. Uma bobagem articulada pode causar mais dano do que uma asneira espontânea.

A maioria dos escritores brasileiros vive em estado de greve permanente e involuntário. Simplesmente não existem, como os agricultores que sofrem o apodrecimento da safra por falta de transporte. Estocam parágrafos e empilham manuscritos, enchendo a sala de papéis ou cds. Há a saída pela porta da Internet, mas nesse mar se perdem produções e talentos. Escrever não é profissão, com raras exceções.

Acabam sempre sendo empurrados para funções avessas ao ofício. Mesmo digitando profissionalmente, passam anos sem gerar uma linha de verdade, deixando latente a vocação, que reclama. Quando, enfim, nasce a decisão de investir na própria arte, chovem críticas. Como pode abandonar tudo em favor de um sonho?

Nos Estados Unidos, existe hoje um tipo de cinema cult que é o dos roteiristas brilhantes. Grandes estrelas abrem mão de seus cachês para fazer uma ponta em obras de cérebros e talentos privilegiados. É o cansaço da padronização dos roteiros e da venda de Hollywood para as políticas imperiais, o que se tornou praxe depois da vitória do macarthismo. As melhores cabeças não são mais convocadas, a não ser para abrir mão dos originais e deixar que escribas fiéis ao regime sapateiem em cima.

Dizer que William Faulkner, Bertold Brecht, John Fante, entre tantos outros, trabalhavam para os estúdios, é falar em utopia. Hoje temos histórias maquiadas por campanhas publicitárias. Ver um blockbuster dá saudade de um simples noir dos anos 40. Ou mesmo o megaespetáculo concebido para ganhar Oscar cansa o olhar. O histrionismo de celebridades consideradas os melhores do mundo contrasta com a majestade de atores clássicos e inesquecíveis, como Burt Lancaster, que só com o olhar sustentou por um longo tempo seu papel principal de nobre decadente e lúcido em “O Leopardo”, de Luchino Visconti.

Há decadência no cinema. Apesar dos avanços da técnica, estamos hoje menos servidos do que na época do Cinemascope, em que até em minha cidade as telas foram modificadas para que pudéssemos nos deslumbrar com a grandeza dos épicos. Nunca esqueço quando ganhei, em concurso na escola, o privilégio de assistir por uma semana, de graça, as sessões da principal sala do centro. Nesse período premiado, só passou um filme, “Lawrence da Arábia”, a obra-prima absoluta de David Lean.

Exagerei: não só vi várias vezes, como entrava na segunda metade ou saía no fim da primeira. Decorei cada fotograma e cada diálogo (o roteiro é de Richard Bolt). Às vezes, me pego segurando uma pedra depois de uma noite insone murmurando: “Akaba, por terra!”. E saio para conquistar a cidade à beira mar, com os canhões voltados para o lado errado, o dos navios. Invado a fortaleza, como Lawrence, pela improvável face do deserto.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 18 de março de 2008, no Caderno Variedades, do Diário Catarinense. A imagem é o ataque de Lawrence sobre Ákaba, no filme imortal do gênio David Lean.

2. Nova versão do "Blues da Casa Torta", música de Mutuca com letra minha, está no site
. A versão é de Oly Jr. Jardim.

3. Sou citado, em francês, no site
Autres Bresils. O assunto é a música "Opinião" de Zé Keti, que analisei no texto acadêmico "Cultura, Carnaval e Cinzas", um dos mais visitados do meu site. A citação é a seguinte: "Cette chanson est à replacer dans le contexte d’une époque, en 1964-1965, aux débuts de la dictature et de la chanson contestataire brésiliennes. Le personnage qui chante la chanson ne veut pas être délogé de sa favela. Les opposants à la dictature en ont fait une chanson de résistance et de lutte contre le pouvoir imposé par les militaires. Mais originalement, il s’agissait, selon Nei Duclos, d’une chanson se situant dans la lignée romantique de la musique populaire brésilienne, qui prône surtout la liberté de l’individu loin du bras répressif de l’Etat." Os franceses me citam. Menos mal.

4. O Brasil sem soberania e prostituído pela indústria européia da sacanagem está sendo barrado nos aeroportos da Espanha. O embaixador de lá diz que não deve desculpas a ninguém. É fácil resolver: basta desapropriar a Telefonica pelo valor de um real.

5. A ditadura financeira internacional, a que produz escravidão e miséria para que meia dúzia de malvados vivam no bem bom, está fazendo água. Estava previsto. Não dá é para aturar as exclamações de surpresa. Bandidagem tem perna curta. Ou até quando será que o mundo produtivo vai servir de álibi para que os espertalhões encham as burras de dinheiro?

15 de março de 2008

REVOADA


Nei Duclós

Esse punhado de pássaros
Que sobrevoa o barco
São fantasmas de peixes
Em grosso estardalhaço

Há surpresa e espasmo
Diante da imóvel pesca
O inútil banho de anzóis
A insistente espera

Nuvens de cardumes
Sobre o rio de pedras
Asas feitas de esporas

Enquanto enxergo o dorso
De uma nova fera
Que ao dormir, devora

RETORNO – Poema feito a partir da foto acima, de Anderson Petroceli.

12 de março de 2008

HORA DA MESA

Nei Duclós (*)

Havia solenidade nas refeições. Uma hierarquia definia os papéis à mesa: pais nas cabeceiras, filhos de um lado e filhas do outro. Os menores estavam mais próximos da mãe. Para evitar tumulto, devido à quantidade de comensais, não era permitido conversar mais do que o necessário. “Passe o arroz” nunca poderia ser substituído por “briguei hoje no colégio”. Assim como as palavras, as porções eram rigidamente controladas. Nunca faltou nada porque a disciplina colocava a voragem natural da prole em limites suportáveis.

O debate aberto, que descambava para a política ou a anedota, conforme a disposição do dia e a eventual presença de convidados, só era franqueado no momento da sobremesa e do cafezinho. Quando o pai viajava, a temperatura da conversa subia até a defecção precoce dos menores, que debandavam sem esperar que os mais velhos se retirassem antes, como era costume.

Havia diversidade nos doces servidos após o almoço em ocasiões especiais – domingos, aniversários ou quando havia visita. Mas a gelatina recheada de pêssego com floco firme de merengue em cima era nossa favorita. Vinha coroar refeições antológicas, com pratos que se foram junto com sua autora, como o peixe desfiado e misturado com farofa, o rocambole quilométrico de pele crocante, o feijão perfeito que, enriquecido de vários ingredientes e temperos, tornava as segundas-feiras uma data tão esperada quanto os fins-de-semana.

Ninguém comia sem camisa, mesmo no mais tórrido verão. Ninguém deixava de se pentear ou mesmo deveria perder o horário sagrado em que éramos chamados para o ritual. O ágape não começava se o pai não decidisse. A tortura mais recorrente era quando um telefonema importante o segurava por um tempo que nos transformava em vítimas do Holocausto.

O cafezinho vinha de um longo processo caseiro. Sacos da semente crua eram comprados regularmente. Depois, havia os sábados de torrefação, de grossa catinga. A matéria-prima era guardada em lata, aberta todos os dias para que fosse moída no moedor manual. Era uma espécie de punição, reduzir a pó, no muque, a semente negra que permitiria o final das refeições. Mas o resultado compensava. O aroma do café e a fumaça do cigarro dos adultos encerravam o espetáculo.

Por um bom tempo, a lenha servia de combustível para o fogão e a água do chuveiro. Soprar a brasa e esperar o momento tanto do banho quanto da comida eram hábitos de uma civilização hoje perdida, que dava um trabalhão danado, mas que povoou os anos de formação. A modernidade só chegou tempo depois, quando uma grande mesa de fórmica convivia com paredes pintadas no chamado estilo funcional. As cores variadas que não combinavam desesperavam a mãe, atrapalhada ao explicar a novidade às amigas.

O mundo masculino decidia tudo, mas vivíamos no regaço materno. Rodeávamos aquela que jamais viajava e que voltava vagarosamente do emprego para adiar o furacão doméstico. Quando todos foram embora, ela ficou à espera do carteiro, escasso de novidades. Olhava longamente para a rua vazia, onde sobrava espaço e o barulho das novas gerações não a tranqüilizavam como antigamente.

Foi-se devagarinho, como um pássaro ferido. Mãe da mesa farta e do rigor que nos acompanha, ela é o símbolo dessa vida que cultivava a solenidade diária, para fugir do estilo prosaico que acabou tomando conta da cidadania.

RETORNO - (*) Crônica publicada dia 11 de março de 2008 no Caderno Variedades, do Diário Catarinense.

4 de março de 2008

BEIJO ENTRE NUVENS


Nei Duclós (*)

Acredito na ciência, que nos convenceu sobre a natureza das nuvens, compostas de gotas suspensas e grudadas em bandos pelo céu. A chuva é, dentro de princípios provados e aceitos, o resultado dessa condensação que encontra um ponto de desequilíbrio e se derrama. Mas desconfio que as nuvens vistas da varanda sejam de outra estirpe. Não foram feitas para assustar nas enxurradas, refrescar nos dias de verão, salvar e também destruir a lavoura. Acho que nos encharcamos de evidências científicas, enquanto os mistérios ficam intactos.

Tenho estudado o comportamento de certas nuvens e noto que elas formam criaturas disformes e gigantescas, não catalogadas nos compêndios de História Natural. Não se trata de enxergar leões marinhos ou elefantes nos algodões que bordam o azul da estação. Ver com olhos livres é aprender algo inédito gerado por contornos e movimentos. Nada a ver com os documentários da televisão sobre a vida nas savanas, geleiras ou arquipélagos. Ou com as lembranças que temos das visitas ao zoológico.

Os seres absurdos reunidos em assembléias silenciosas, mas compactas, são legiões de volumes com um único objetivo: avançar uns sobre os outros. Há câmara lenta nesse embate, vislumbrado por minha atenção desconfiada. Ao mesmo tempo, há velocidade. Vejo que as criaturas se jogam em direção ao que posso imaginar ser um inimigo, se fosse cair na tentação comparativa. Mas os gestos, contundentes, têm comportamento próprio, caótico e só se reportam ao ambiente onde trafegam. Não existe guerra porque não há nada de animal neles.

Qual então o motivo de se engolir no toque, se transformar depois do abraço fatal, tomar outras dimensões quando enfim atingem a meta? Focando o olhar, descobri em cada maçaroca de nimbos (ou plúmbeos, esqueci as lições da geografia) uma vontade que se disfarça para nos confundir. Acabo identificando, contra minha vontade, um perfil de deusa, um cabelo de duendes, narizes bem definidos, bocas entreabertas, testas decididas. Vejo nesse cinema aleatório alguém mirando uma fada que navega em leque sobre o abismo. Ou uma dupla em rápida evolução, quase de mãos dadas. Mãos? Estaria minha percepção traindo a essência dessas visões diurnas?

Notei que essas nuvens nada têm a ver com as chuvas. Você já não experimentou a sensação de levar um banho em pleno dia claro? Ou ficar sob grande massa cinzenta de iminentes tempestades que jamais acontecem? A água se evapora e se condensa e cai na terra seca, mas isso não explica tudo. Existem chuvas misteriosas, geradas não se sabe como. E nuvens com outra carne e com uma diferente missão.

Aos poucos, a muito custo, acumulando quilometragem de rede na varanda, tive uma revelação. As criaturas agem assim e tomam essas formas inverossímeis, que os disfarces não conseguem ocultar, porque procuram fazer bem feito apenas uma coisa.

E essa coisa é o beijo. Sim, existem nuvens dedicadas ao beijo definitivo, que muda o ritmo do andar e corrige o rumo. Levadas pelos ventos soprados por Cupido, o deus travesso, elas sugerem uma civilização do beijo desmesurado, sem que nada ou ninguém interfira. Os casais, aqui embaixo, que se entregam ao mesmo ímpeto, são apenas pobres imitações do que verdadeiramente se passa sobre nossas cabeças.

As nuvens se beijam a céu aberto e em pleno dia. Imaginem o que não fazem à noite.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 4 de março de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

1 de março de 2008

FICHAS DO CINE SAGU


Nei Duclós (*)

Já fui sócio-proprietário de uma sala de cinema. Exercia uma função estratégica: era o porteiro. A vizinhança fazia fila para ver os filmes mudos, que a velha máquina projetava no lençol estendido na parede dos fundos de casa. Lá apareciam, invariavelmente, Charles Chaplin (que chamávamos de Carlitos), O Gordo e o Magro e outros comediantes que não identifico mais.

Nos cinemas da cidade, já existia o Cinemascope, aquela tela enorme que provava a existência de Moisés na pele de Charlton Heston. Como atrair gente com tamanha concorrência? Tínhamos um acervo limitado, e a platéia começou a se cansar. Certa feita, um garoto muito pequeno queixou-se, choroso, do repeteco, mas ouviu a frase salvadora do adulto que o acompanhava: “Fica quieto, guri, que depois tem sagu”.

As toneladas de sagu que se fazia em casa costumavam sobrar em panelas enormes. Gelado, era servido, de graça, aos potes, a ávidos cinéfilos. Idéia, claro, do meu irmão nascido empresário, a de agregar valor à gasta programação. A entrada era um custo, mas o sagu compensava. Garantia quórum para o porteiro de olhos brilhantes diante dos lucros.

Era um troço organizado. As pessoas iam até o caixa, devidamente gerenciado pelo meu irmão, e lá eles recebiam uma ficha colorida de plástico duro, numerada. Seria o maior charme se as cadeiras fossem personalizadas, mas a ficha era apenas a coisa mais próxima de um bilhete de cinema que dispúnhamos. Servia para dar credibilidade ao negócio, já incrementado pela existência de um lanterninha.

A ficha vinha dos cassinos, do jogo pesado, tipo de pecado que devassava as virtudes do cofre, exposto na sala para quem passasse na rua. Um cofre que meu pai religiosamente abria para lá depositar, ou tirar, tudo o que era inacessível à infância. Dizem que chamava a atenção da cobiça alheia, mas nunca fomos invadidos ou assaltados.

Naquele tempo, podia-se ter um cofre bem à vista de todos e ainda dormir na calçada no verão, coisa que meu pai fez regularmente até 1964. Mas isso faz parte de um Brasil que foi jogado no lixo, quando havia paz na diferença, soberania nacional e segurança na cidade e no campo. Coisas antigas, como se sabe. Trocamos tudo isso pelas promessas de um futuro melhor.

Cobrimos os trilhos com asfalto de má qualidade, apodrecemos os dormentes, lotamos de automóveis os caminhos feitos para carroças, privatizamos o ensino e a saúde, aprovamos os alunos por decreto, enchemos a cabeça da meninada com bobagens, e depois nos perguntamos por que o país ficou assim. Ora, ficou dessa maneira porque isso faz parte da natureza humana, entende? Isso acontece em qualquer país do mundo, entende? Sermos campeões mundiais em homicídios é uma coisa normal, entende?

O que chamam de economia informal era nossa brincadeira de criança. Pela quantidade de pessoas que sobrevivem no nosso capitalismo de farol (ou sinaleira) podemos notar que o país não conseguiu amadurecer. Os negócios da infância hoje são mais pesados. Nada comparado ao árduo trabalho de montar um cinema completo e roubar espectadores de Hollywood.

O dinheiro que arrecadávamos era todo reinvestido, pois tínhamos uma meta maior. Para isso, criamos novos empreendimentos. Quermesse, onde eu me encarregava da pescaria e das latas empilhadas. Rifas, como a vez em que vendemos a chance de alguém ganhar um violão, sem dizer que se tratava de um pequeno instrumento de plástico vagabundo. Quando meu irmão foi entregar a prenda para o feliz ganhador, que estava fazendo a barba no lugar sagrado onde os homens adultos discutiam política e futebol, quase foi linchado. O barbeiro, homem experiente que exibia sua perna queimada por um lança-chamas na Segunda Grande Guerra, deu-lhe um corridão. “Isso é violão que se apresente, seu! ”. Para nós, não houvera má fé. Ninguém perguntou que tipo de violão era.

A meta maior era nosso time de futebol, que ainda dispunha das mensalidades dos sócios (todos os guris da rua e arredores). Soube que o mesmo time, 50 anos depois de fundado por cinco garotos, foi campeão da cidade em 2007. Algo sobreviveu daquela época: nós, hoje mais antigos que nossos pais; e o time que ganhou o campeonato na raça, graças aos meninos que mantêm a saga que vem de longe, a do país que um dia resgatará sua grandeza.

RETORNO - (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense.