30 de novembro de 2003

O CÍRCULO DA EDIÇÃO


Definir o perfil de uma edição significa implantar um sistema circular, onde a matéria de capa “pauta” o que vem a seguir, costura a maioria das páginas, desdobra-se em combinações afins, cruza referências para complementar leituras e consegue assim impacto e profundidade. As havaianas que estão na capa e foram reproduzidas como um selo ao longo da edição da Carta Capital desta semana são um exemplo dessa arquitetura, que apresenta-se com a lógica de uma construção, sem cair na redundância comum das edições feitas sem planejamento.

COERÊNCIA - Para conseguir esse resultado, é preciso que a equipe esteja sintonizada, mas não é só isso. Há mágica também, pois o que poderia ser apresentado de maneira dispersa, é colado de propósito pelo diretor de redação e os editores. É claro que há a previsão de que essa é a abordagem adotada, mas acontece também a incrível coerência da edição, que ao estocar inúmeros vetores, deságua no fechamento impondo-se com uma síntese que parecia oculta no início do trabalho. Nesta Carta Capital número 269, o foco é a má distribuição de renda do Brasil, onde um pé de havaiana de pobre faz par com outra, de milionário. O apartheid social e financeiro rebate na cobertura do encontro do FMI no Brasil, e encontra farto material teórico na deslumbrante entrevista mediúnica de Karl Marx. Tudo faz sentido quando há rigor e, neste caso, engajamento: o lado do jornalista é o da fidelidade aos fatos e a realidade brasileira é explícita na sua injustiça diária e violenta. Não há como fugir do sol, que atravessa a peneira. A edição aprofunda-se na coerência ao exigir também seriedade na edição de livros, quando José Onofre, o texto maior, garimpa ouro ao falar sobre O Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin (que eu desconhecia). A fragilidade das estrelas do entretenimento, a falta de competência nos transplantes de órgãos e tecidos e o perigo do alcoolismo funcionam assim como complemento (sem ficar em segundo plano) do vetor escolhido para costurar a edição. É preciso determinação e competência para conseguir esse tipo de resultado, que ao longo das edições torna-se cada vez mais apurado. Por isso uma reunião de pauta é um encontro de decisões coletivas, de combinações prévias, de reflexão, e não apenas uma operação tapa-buraco. O espaço a ser ocupado nas páginas que ainda estão em branco é uma responsabilidade muito grande para ser deixado ao vento do que se entende por notícia. Ou à deriva de interesses maiores, interferências que surgem de fora do jornalismo. A excelência do ofício é a medida de todas as coisas.

RÁDIO – No programa Comunique-se, no sábado na allTV (18 às 20 horas), falei, entre outras coisas, sobre rádio, já que descobri ter sido conquistado para a profissão graças a esse veículo, hoje em decadência. Eduardo Ribeiro me perguntou sobre a falta de consideração da publicidade em relação ao veículo e eu rebati que os radialistas e os empresários de comunicação precisam investir numa grade de qualidade (tudo pode ser visto no endereço http://www.alltv.com.br/ondemand.php?arquivo=2003112918.wmv). E aqui entra o tema da coluna de hoje: o rádio precisa também obedecer ao círculo da edição, obter coerência na sua plataforma de lançamento, criar motivos para a audiência aumentar e assim atrair publicidade. Para que os anunciantes aumentem, deve-se, além de criar, mostrar o que está sendo criado. Uma união das rádios para promover o veículo deveria tomar conta das televisões, dos jornais e out-doors. Para que funcione, é preciso motivos para isso. Não se pode fazer estardalhaço em cima de vitrolões ou baixarias. Jornalismo é um bom apelo. Programas culturais de alto nível (é disso que o povo gosta) também. Lembrei no Comunique-se que eu ouvia o Fausto Canova falando sobre e mostrando as jóias do jazz todas as noites na rádio Tupi nos anos 60. Também escutava o Walter Silva e seu Bo-65, programa do início da tarde que trazia Elis Regina para entrevistas. Assim, vai. Isso precisa ser resgatado. A decadência faz com que o fosso fique mais profundo: como aturar tanta propaganda? Com uma programação melhor, mais apurada, os reclames aumentam de preço e diminuem de freqüência. Também acho que deveria ter apoio estatal para que haja uma virada na rádio brasileira, que já nos deu momentos de ouro, que ninguém esquece.

RETORNO – 1. Ficou supimpa a edição que o Anderson Petroceli fez do texto aqui publicado Viagem ao Princípio do Mundo, que está junto às fotos dele no www.portaluruguaiana.com.br. Quem tiver paciência de ver um poeta diante do rio Uruguai, deve fazer uma visita.
2. Infelizmente, ouvi só uma parte do programa do poeta Ubirajara Raffo Constant na rádio São Miguel de Uruguaiana, que vai ao ar todos os sábados, das 10 às 11 horas. Mas soube por Rubens Montardo Junior que ele recitou No Acampamento, poema de No Mar, Veremos, e me dedicou duas músicas. Biratuxo é terra, é querência, é talento e inteligência do pampa.

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