Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
17 de maio de 2003
CARTADA
CARTADA
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
Não me olha mais na cara
não apaga minha lágrima
Não passa a língua no corpo
não chora quando se acaba
Não curte nenhum namoro
não perdoa minha falta
Não me envolve em sua trama
não chama quando estou pálido
Já não traduz sua linguagem
não bota fogo na palha
Não pede mais o cigarro
nem sente ciúme, nem fala
Não estoca minha ferida
nem ri, quando o sangue jorra
Desencarnou da costela
jogou a última carta
(Do livro No Mar, Veremos, Ed. Globo, 2001)
CAVALEIRO NEGRO
(Um poema perdido: este poema, que fiz há muito tempo - bota muito nisso - estava completamente perdido. Foi-me resgatado pelas mãos talentosas de Ricky Bols, artista da pesada de Porto Alegre, que o recuperou de um exemplar da antológica publicação marginalísssima Pedra Mágica)
CAVALEIRO NEGRO
Nei Duclós
(www.consciencia.org/neiduclos)
eu tenho um pedaço de medo guardado como revólver
no bolso de um menino. meu tesouro são dez revistas
usadas que levo ao mercado para matar todo mundo de inveja
costurei o sol no lado direito do coração comido. alinhei
dez mil frases sem sentido e fiz elas marcharem como
soldados perdidos no meio da neve.
eu tenho um ninho comestível, uma gilete blue blade usada,
um cavaleiro negro, um círculo mal feito
a lápis na parede suja da casa perdida,
uma bola de pano,
uma fantasia tão real como um sonho ou uma bicicleta,
uma lata de lixo
e coisas que jamais acharei:
um pão
um abraço
um laço
um traço
a lágrima,
a carne,
a morte,
marte,
etecétera
CAVALEIRO NEGRO
Nei Duclós
(www.consciencia.org/neiduclos)
eu tenho um pedaço de medo guardado como revólver
no bolso de um menino. meu tesouro são dez revistas
usadas que levo ao mercado para matar todo mundo de inveja
costurei o sol no lado direito do coração comido. alinhei
dez mil frases sem sentido e fiz elas marcharem como
soldados perdidos no meio da neve.
eu tenho um ninho comestível, uma gilete blue blade usada,
um cavaleiro negro, um círculo mal feito
a lápis na parede suja da casa perdida,
uma bola de pano,
uma fantasia tão real como um sonho ou uma bicicleta,
uma lata de lixo
e coisas que jamais acharei:
um pão
um abraço
um laço
um traço
a lágrima,
a carne,
a morte,
marte,
etecétera
15 de maio de 2003
O CARTEL DA DUBLAGEM
O CARTEL DA DUBLAGEM
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
É incrível como as pessoas sofrem, sem reclamar, com os horrores da dublagem nas televisões brasileiras. Nas poucas vezes em que o assunto vem à tona na mídia, é para elogiar. Um especialista chegou a dizer que a dublagem brasileira é muito respeitada no exterior. Pudera: lá ninguém entende português.
É natural que haja silêncio sobre o assunto, pois esse mercado é dominado por poucos privilegiados. Existem outras empresas, mas é como se fossem uma só: todas cometem os mesmos erros. Todo cartel é tremulamente respeitado no Brasil, onde qualquer tipo de concorrência ainda é encarada como crime. O mais impressionante dos depoimentos dos dubladores é que eles se julgam artistas e possuem teorias sobre interpretação. É por isso que eles “se esforçam” e nos oferecem sacadas geniais como, por exemplo, a voz brasileira fanha do James Stewart. Outra: como confessou um dos envolvidos, a voz de Marlon Brando não está à altura da sua estampa, por isso é substituída por um trinado de galã.
Não é demais lembrar os horrores infantis e geriátricos. Todos os velhos, sem exceção, possuem uma voz trêmula. As crianças, bem, Carrossel basta como exemplo. Mas como todo mundo fica quieto, eles vão em frente e chegamos ao absurdo de assistir o Burt Lancaster, num filme intitulado ‘Rochedo Gibraltar” sendo aterrorizado por netinhos com voz de melodrama do SBT.
Os franceses e alemães que falam inglês com sotaque no original, coitados, são homenageados por erres guturais e guinchos de chucrutz. E de Jack Nicholson a Jack Palance triunfa, poderosa, a voz do Kojak. Esse é mais um sintoma do cartel: apenas meia dúzia de vozes fazem tudo, numa linha de montagem que passa por cima da sensibilidade, da lógica, da arte.
Cenas de multidão são um desastre: juntam meia dúzia para gritar qualquer coisa, transformando momentos drmáticos de massa numa mixórdia. E o que dizer dos sotaques espertinhos dos jovens, os exagerados gemidos femininos e os suspiros gerais? Pior do que os sussurros sem nexo, porém, são as vozes estridentes que rebentam qualquer cena. É inesquecível o exemplo da destruição de uma obra-prima como “El Cid”, de William Wyler. No momento em que Charlton Heston é pressionado para se decidir pela guerra, sua mulher - a pobre da Sophia Loren - começar a guinchar, fanhosamente, implorando para que ele não vá. É de chorar.
Mas como todo mundo fica quieto - “fazer o quê? É o nosso slogan - o guincho asqueroso volta em tudo que é filme, fazendo “arte”, para horror do bom senso. Mas não é só isso. Os programas especiais maravilhosos da BBC
são editados com os dubaldores imitando o que eles imaginam ser o clima dos depoimentos. Um ex-combatente russo, por exemplo, sofrido e pausado em suas ponderações, é massacrado com um tom doentio e inaudível porque o dublador, ao ver aquele cansaço todo, “interpretou" como se o personagem estivesse internado numa UTI. O pior é a perseguição ao movimento dos lábios. Como o velho fala devagar numa outra língua, o dublador espicha as falas e faz entonações falsas para suas frases entrarem a fórceps no depoimento original.
Não podemos esquecer de outros escândalos. Negros, por exemplo, sempre tem aquela voz bem grossa, aranhada, tremida. Não existe um só negro com voz límpida na dublagem brasileira. A não ser o Eddie Murphy, que fala esganiçado. Falando nisso: e os comediantes, como Jerry Lewis e Woody Allen, precisam dizer suas piadas daquele jeito imbecil?
Os dubladores, naturalmente, não tem tempo para ver os filmes. Eles precisam trabalhar muito para o cartel. Se houvesse concorrência real - e como mudar isso se as redes de TV, e seus epígonos na TV a cabo, também são grandes monopólios? - a situação seriaa diferente. Haveria um mínimo de preocupação pela qualidade e o convite a artistas de verdade - atores, e não locutores sem talento dramático.
A culpa é sua, telespectador, que sofre em silêncio a mutilação do resto de lazer que nos cabe - ver televisão, enquanto o Brasil vai se acabando. O som original corresponde à metade de uma obra cinematográfica e não pode ser suprimida e substituída por uivos, muxôxos e interjeições. Está na hora de ligar em massa para as empresas de dublagem e os números de atendimento ao telespectador que estão surgindo e impor um pouco mais de respeito.
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
É incrível como as pessoas sofrem, sem reclamar, com os horrores da dublagem nas televisões brasileiras. Nas poucas vezes em que o assunto vem à tona na mídia, é para elogiar. Um especialista chegou a dizer que a dublagem brasileira é muito respeitada no exterior. Pudera: lá ninguém entende português.
É natural que haja silêncio sobre o assunto, pois esse mercado é dominado por poucos privilegiados. Existem outras empresas, mas é como se fossem uma só: todas cometem os mesmos erros. Todo cartel é tremulamente respeitado no Brasil, onde qualquer tipo de concorrência ainda é encarada como crime. O mais impressionante dos depoimentos dos dubladores é que eles se julgam artistas e possuem teorias sobre interpretação. É por isso que eles “se esforçam” e nos oferecem sacadas geniais como, por exemplo, a voz brasileira fanha do James Stewart. Outra: como confessou um dos envolvidos, a voz de Marlon Brando não está à altura da sua estampa, por isso é substituída por um trinado de galã.
Não é demais lembrar os horrores infantis e geriátricos. Todos os velhos, sem exceção, possuem uma voz trêmula. As crianças, bem, Carrossel basta como exemplo. Mas como todo mundo fica quieto, eles vão em frente e chegamos ao absurdo de assistir o Burt Lancaster, num filme intitulado ‘Rochedo Gibraltar” sendo aterrorizado por netinhos com voz de melodrama do SBT.
Os franceses e alemães que falam inglês com sotaque no original, coitados, são homenageados por erres guturais e guinchos de chucrutz. E de Jack Nicholson a Jack Palance triunfa, poderosa, a voz do Kojak. Esse é mais um sintoma do cartel: apenas meia dúzia de vozes fazem tudo, numa linha de montagem que passa por cima da sensibilidade, da lógica, da arte.
Cenas de multidão são um desastre: juntam meia dúzia para gritar qualquer coisa, transformando momentos drmáticos de massa numa mixórdia. E o que dizer dos sotaques espertinhos dos jovens, os exagerados gemidos femininos e os suspiros gerais? Pior do que os sussurros sem nexo, porém, são as vozes estridentes que rebentam qualquer cena. É inesquecível o exemplo da destruição de uma obra-prima como “El Cid”, de William Wyler. No momento em que Charlton Heston é pressionado para se decidir pela guerra, sua mulher - a pobre da Sophia Loren - começar a guinchar, fanhosamente, implorando para que ele não vá. É de chorar.
Mas como todo mundo fica quieto - “fazer o quê? É o nosso slogan - o guincho asqueroso volta em tudo que é filme, fazendo “arte”, para horror do bom senso. Mas não é só isso. Os programas especiais maravilhosos da BBC
são editados com os dubaldores imitando o que eles imaginam ser o clima dos depoimentos. Um ex-combatente russo, por exemplo, sofrido e pausado em suas ponderações, é massacrado com um tom doentio e inaudível porque o dublador, ao ver aquele cansaço todo, “interpretou" como se o personagem estivesse internado numa UTI. O pior é a perseguição ao movimento dos lábios. Como o velho fala devagar numa outra língua, o dublador espicha as falas e faz entonações falsas para suas frases entrarem a fórceps no depoimento original.
Não podemos esquecer de outros escândalos. Negros, por exemplo, sempre tem aquela voz bem grossa, aranhada, tremida. Não existe um só negro com voz límpida na dublagem brasileira. A não ser o Eddie Murphy, que fala esganiçado. Falando nisso: e os comediantes, como Jerry Lewis e Woody Allen, precisam dizer suas piadas daquele jeito imbecil?
Os dubladores, naturalmente, não tem tempo para ver os filmes. Eles precisam trabalhar muito para o cartel. Se houvesse concorrência real - e como mudar isso se as redes de TV, e seus epígonos na TV a cabo, também são grandes monopólios? - a situação seriaa diferente. Haveria um mínimo de preocupação pela qualidade e o convite a artistas de verdade - atores, e não locutores sem talento dramático.
A culpa é sua, telespectador, que sofre em silêncio a mutilação do resto de lazer que nos cabe - ver televisão, enquanto o Brasil vai se acabando. O som original corresponde à metade de uma obra cinematográfica e não pode ser suprimida e substituída por uivos, muxôxos e interjeições. Está na hora de ligar em massa para as empresas de dublagem e os números de atendimento ao telespectador que estão surgindo e impor um pouco mais de respeito.
11 de maio de 2003
CINZAS E DIAMANTES - URGENTE
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
Escrevo sobre a obra-prima de Andrzej Wadja no domingo (11) à noite, depois de assistir esse filme no Cinesesc. Há mais uma chance amanhã, segunda-feira, dia 12, às 19 horas. Fui conduzido para a seção de hoje pelas mãos enciclopédicas e obstinadas do meu amigo Luiz Carlos Merten, crítico de cinema do Estadão. Merten é um fenômeno de difusão cultural. Seu trabalho vem de longe, dos anos 60, quando surgiu no caldo de uma cidade (Porto Alegre) cheia de cinemas e de autores de textos primorosos sobre cinema, que eram publicados diariamente na imprensa local. Helio Nascimento e Goida eram alguns que se destacavam e Merten faz parte dessa linhagem de jornalistas destinados ao cinema e que nos deslumbram com seus conhecimentos.
Mas não é só isso. Merten hoje é uma âncora cultural: suas referências, seus paradigmas estão solidamente instalados num vasto acervo de grandes cineastas e respectivas obras-primas. Basta Merten se referir a um deles para nos sentirmos convocados, de maneira decidida e suave (pois não há pessoa mais gentil do que o nosso Merten) para irmos ao cinema.
Foi assim com Cinzas e Diamantes. Filme de 1958, em preto e branco, com legendas em espanhol, é uma avassaladora obra-prima, mãe de muitas outras. Podemos ver nela a luz que iluminou Fellini (especialmente em Oito e Meio), a força visual e dramática que jogou Glauber Rocha no meio das pedras do sertão e do lixo urbano, a inspiração de Costa-Gravas em Missing (a sombra dos tanques projetadas no muro em meio à noite sinistra) etc.É um filme como poucos, de uma clareza brutal, de uma complexidade reveladora, de uma solidez incomparável e de uma honestidade a toda prova.
Não perder é a palavra de ordem.
CINZAS E DIAMANTES - URGENTE
Nei Duclós
Escrevo sobre a obra-prima de Andrzej Wadja no domingo (11) à noite, depois de assistir esse filme no Cinesesc. Há mais uma chance amanhã, segunda-feira, dia 12, às 19 horas. Fui conduzido para a seção de hoje pelas mãos enciclopédicas e obstinadas do meu amigo Luiz Carlos Merten, crítico de cinema do Estadão. Merten é um fenômeno de difusão cultural. Seu trabalho vem de longe, dos anos 60, quando surgiu no caldo de uma cidade (Porto Alegre) cheia de cinemas e de autores de textos primorosos sobre cinema, que eram publicadso diariamente na imprensa local. Helio Nascimento e Goida eram alguns que se destacavam e Merten faz parte dessa linhagem de jornalistas destinados ao cinema e que nos deslumbram com seus conhecimentos.
Mas não é só isso. Merten hoje é uma âncora cultural: suas referências, seus paradigmas estão solidamente instalados num vasto acervo de grandes cineastas e respectivas obras-primas. Basta Meten se referir a um deles para nos sentirmos convocados, de maneira decidida e suave (pois não há pessoa mais gentil do que o nosso Merten) para irmos ao cinema.
Foi assim com Cinzas e Diamantes. Filme de 1958, em preto e branco, com legendas em espanhol, é uma avassaladora obra-prima, mãe de muitas outras. Podemos ver nela a luz que iluminou Fellini (especialmente em Oito e Meio), a força visual e dramática que jogou Glauber Rocha no meio das pedras do setão e do lixo urbano, a inspiração de Costa-Gravas em Missing (a sombra dos tanques projetadas no muro em meio à noite sinistra) etc.É um filme como poucos, de uma clareza brutal, de uma complexidade reveladora, de uma solidez incomparável e de uma honestidade a toda prova.
Não perder é a palavra de ordem.
8 de maio de 2003
A língua em risco de risco de vida
Estava com vontade de escrever sobre o crime cometido por alguns jornais que usam "risco de morte" no lugar do clássico "risco de vida". Como quem corre risco é a vida e não a morte, que não corre risco nenhum, e como não me acostumo às besteiras consagradas da imprensa, fui primeiro ao Google e lá encontrei o bom texto do Instituto Gutenberg, que serve de antídoto às modinhas inventadas pela imprensa nesta época de trevas:
IDIOMA
A língua em risco de risco de vida
Novidades da imprensa agridem
fórmulas consagradas do português
Volta e meia, a imprensa patrocina a condenação de expressões clássicas do português e, em nome de uma lógica que não é formal nem dialética, as substitui por alguma genialidade de algibeira. Foi o caso de estar de férias, trocada por "estar em férias" - quando as duas expressões são aceitáveis.
Puseram no índex também o dito "maiores informações", tido como errado, substituído por "mais informações". Ora, uma coisa não é maior que outra somente no tamanho, mas, também, no número, na grandeza, na importância, na qualidade. A troca demanda maiores reflexões.
Igualmente censurada, caiu em desgraça nas redações a expressão "vezes menor". Argumenta-se que uma coisa só pode ser tantas vezes maior (nunca tantas vezes menor) que outra, porque vezes significa adição. É lógica da matemática, não da língua. Pela lógica dos números, a frase "uma vez na vida, outra na morte" só comportaria duas (únicas) ações, mas é empregada com sentido de raramente, e ao longo de uma vida o que é raro, como pobre comer frango, pode ocorrer dúzias de vezes.
Outra patacoada impenitente continua a ser a grafia de nomes de tribos indígenas com letra maiúscula e no singular, como "os Xavante", comum no Jornal do Brasil. De maneira que, já, já os filólogos de jornal podem copidescar o título do poema de Gonçalves Dias, de Os timbiras para "Os Timbira". Não custa lembrar que Gonçalves Dias, indianista exaltado, foi estudioso das línguas indígenas, tendo preparado um dicionário de tupi.
E o que dizer de "Antártida", como às vezes escrevem o Estadão e a Folha, se a palavra vem de ártico, do grego arktos, e o continente de gelo foi batizado como oposto ao velho Ártico? Grandes autores abonam o vernáculo. Castro Alves, em Espumas flutuantes: "O antártico pólo de diamante...". Camões, nos Lusíadas: ""Do mar temos corrido e navegado / Toda a parte do Antártico e Calisto..."
A novidade das revisões intempestivas é "risco de morte" por "risco de vida". Nos jornais, principalmente na Folha de S.Paulo, ninguém corre "risco de vida", frase de clareza solar, indicadora de que a pessoa está em perigo. Na nova ordem lingüística da imprensa, risco, só de morte. Não pensavam assim alguns artífices do idioma. Aluísio de Azevedo, em O cortiço, escreveu: "Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida." José de Alencar, em O guarani: "Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida."
Tais revisões não deixam de ser purismo, ou, pior, uma tentativa de interpretar a língua ao pé da letra. Pelo andar da carruagem, a imprensa vai banir palavras ou expressões que perderam o sentido literal, como anemia (ausência de sangue), tirar a pressão (vai dizer que tal procedimento mataria o paciente...) ou alpinismo, que, como indica o étimo, era montanhismo exclusivo dos Alpes.
17/04/2002
©Instituto Gutenberg
igutenberg@igutenberg.org
IDIOMA
A língua em risco de risco de vida
Novidades da imprensa agridem
fórmulas consagradas do português
Volta e meia, a imprensa patrocina a condenação de expressões clássicas do português e, em nome de uma lógica que não é formal nem dialética, as substitui por alguma genialidade de algibeira. Foi o caso de estar de férias, trocada por "estar em férias" - quando as duas expressões são aceitáveis.
Puseram no índex também o dito "maiores informações", tido como errado, substituído por "mais informações". Ora, uma coisa não é maior que outra somente no tamanho, mas, também, no número, na grandeza, na importância, na qualidade. A troca demanda maiores reflexões.
Igualmente censurada, caiu em desgraça nas redações a expressão "vezes menor". Argumenta-se que uma coisa só pode ser tantas vezes maior (nunca tantas vezes menor) que outra, porque vezes significa adição. É lógica da matemática, não da língua. Pela lógica dos números, a frase "uma vez na vida, outra na morte" só comportaria duas (únicas) ações, mas é empregada com sentido de raramente, e ao longo de uma vida o que é raro, como pobre comer frango, pode ocorrer dúzias de vezes.
Outra patacoada impenitente continua a ser a grafia de nomes de tribos indígenas com letra maiúscula e no singular, como "os Xavante", comum no Jornal do Brasil. De maneira que, já, já os filólogos de jornal podem copidescar o título do poema de Gonçalves Dias, de Os timbiras para "Os Timbira". Não custa lembrar que Gonçalves Dias, indianista exaltado, foi estudioso das línguas indígenas, tendo preparado um dicionário de tupi.
E o que dizer de "Antártida", como às vezes escrevem o Estadão e a Folha, se a palavra vem de ártico, do grego arktos, e o continente de gelo foi batizado como oposto ao velho Ártico? Grandes autores abonam o vernáculo. Castro Alves, em Espumas flutuantes: "O antártico pólo de diamante...". Camões, nos Lusíadas: ""Do mar temos corrido e navegado / Toda a parte do Antártico e Calisto..."
A novidade das revisões intempestivas é "risco de morte" por "risco de vida". Nos jornais, principalmente na Folha de S.Paulo, ninguém corre "risco de vida", frase de clareza solar, indicadora de que a pessoa está em perigo. Na nova ordem lingüística da imprensa, risco, só de morte. Não pensavam assim alguns artífices do idioma. Aluísio de Azevedo, em O cortiço, escreveu: "Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida." José de Alencar, em O guarani: "Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida."
Tais revisões não deixam de ser purismo, ou, pior, uma tentativa de interpretar a língua ao pé da letra. Pelo andar da carruagem, a imprensa vai banir palavras ou expressões que perderam o sentido literal, como anemia (ausência de sangue), tirar a pressão (vai dizer que tal procedimento mataria o paciente...) ou alpinismo, que, como indica o étimo, era montanhismo exclusivo dos Alpes.
17/04/2002
©Instituto Gutenberg
igutenberg@igutenberg.org
5 de maio de 2003
QUE UM DE NÓS SOBREVIVA
Nei Duclós
Que um de nós sobreviva
e emudeça
Para esse alguém e suas mãos
estamos preparando nossa insônia
Que por fora ele seja aço
e por dentro de estrelas
Que ninguém desconfie de seu destino
De maneira alguma
sorria
(para isso, se for preciso
mastigue infinitamente
meteoros e planetas)
Pois esse que eu chamo companheiro
deixará que os anjos revistem seus bolsos
e aprendam o que se passou conosco
RETORNO - Poema do livro Outubro, IEL/RS/ A Nação, 1975)2. Imagem desta edição: obra de Magritte.
4 de maio de 2003
ALMOÇO NA TELHA
ALMOÇO NA TELHA
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
O Olhar Absoluto, Marcelo Min, levou-me para almoçar uma anchova na telha, ao forno, na Vila de Carapicuíba, que ostenta, entre outras atrações, casinholas coloniais caindo aos pedaços, onde numa delas abriga-se um bizarro restaurante chileno. Acompanhados pela fotógrafa Cinthia e o perspicaz repórter policial de A Verdade Sangrenta, Gim Tones – em processo avançado de deterioração física -, devoramos uns seis quilos de peixe, mas só o Min encarregou-se dos olhos do bicho – ou melhor, de um só, já que o outro exemplar certamente foi roubado pelo gato-ladrão-com-piolhos que o Gim fez questão de adotar no meio da confraternização.
Min precisava desse tipo de alimento – córnea, íris, pestanas - para o que viria depois: fotografar nos mínimos detalhes uma procissão de Santa Cruz, saída da igrejinha histórica em direção a um colubreante (palavra que vem de cobra) périplo pelo bairro, com direito a íngremes lombas (palavra portoalegrense que denota subidas) e vielas ladeadas de casas bem guardadas por cachorrões. Um filhote canino, aparentemente abandonado, foi recolhido por Gim, que atravessa uma fase romântica devido à ameaça de pneunomia que lhe sugere nichos recônditos com cobertores compreensivos. Mas ele abandonou o bicho à própria sorte pois assustou-se com nossas advertências sobre a duração de um cachorro – no mínimo quinze anos – o tamanho que o pequenino iria alcançar em 45 dias de ração, e o quanto ele ficaria feroz morando no edifício Copan.
No almoço, fomos abordados pelo dono do lugar, que se dizia arrependido de ter nascido chileno, já que sempre quis ser o que todo mundo teme: um argentino. O sujeito farejou uma conversa minha sobre churrascos num subúrbio da tríplice fronteira gaúcha e ficou esperando que eu falasse mal da sua admiração. Como não era meu dia de desancar os portenhos, saiu-se com uma longa catilinária sobre a performance argentina no comportamento e na economia. Também na hora do ágape fomos assocados por outros personagens que se revezavam na mesma pergunta sobre um carro estacionado na frente do restaurante, o que estava provisoriamente proibido devido à massa popular concentrada em frente à igreja e que precisava de caminho livre para a caminhada.
Além de comer olho – e depois sentir-se levemente enfarado devido a esse excesso – o Olhar Absoluto teve a manha de resgatar a presença do chilo-argentino com uma pergunta amigável, o que quase lhe valeu um estrangulamento por parte de Gim. A sorte que o crime foi evitado ao surgir a comparação entre Min e Tim Maia e seu sucesso “não não vá embora”. Ao ser informado sobre o novo nome do fotógrafo – Min Maia – Gim teve um acesso de tosse que confundimos com riso convulso.
Acompanhamos pacientemente Min na sua cobertura da procissão, que por alguns momentos teve como gerente de tráfego o solerte repórter policial em avançado estado de decomposição. Por insistência minha, saímos já noite fechada de maneira apressada pois já se avizinhavam algumas barras comuns ao lugar, o que deixava a dupla de criação Gim/Min cada vez mais à vontade. Escaldado na convivência de loucos profissionais da imprensa, que já me fizeram pagar inúmeros micos por infinitos becos, sugeri que fôssemos tomar um cafezinho em casa, o que cumpri em parte, pois tendo tecido maravilhas sobre minha arte de fazer café, acabei galopeando uma água quente e preta servida em canecas inadequadas, o que apressou a despedida desses caros amigos que me salvaram de um sábado mergulhado na mais absoluta mesmice.
Aproveitando minha distração e alegria com as visitas, meu fiel catchorrinho Nick, que até o momento estava sendo monitorado para não despejar sua urina nas rodas do meu carro novo, fez exatamente o que se espera de um animal cockeriano de quatro patas: derramou-se em pneus estalando de novos , o que lhe valeu sérias reprimendas e ameaças de telefonemas para a carrocinha. A família distante, quando soube da arte de Nicholas, limitou-se a ir.
Hoje, domingo, Nick está de castigo e só pode fazer suas estropolias no corredor dos fundos, o que se recusa terminantemente, economizando bexiga para uma nova distração de minha parte. Bem que ele poderia passar uma temporada no Copan, mostrando a Gim Tones o que é bom para a tosse.
Nei Duclós
(nei@consciencia.org)
O Olhar Absoluto, Marcelo Min, levou-me para almoçar uma anchova na telha, ao forno, na Vila de Carapicuíba, que ostenta, entre outras atrações, casinholas coloniais caindo aos pedaços, onde numa delas abriga-se um bizarro restaurante chileno. Acompanhados pela fotógrafa Cinthia e o perspicaz repórter policial de A Verdade Sangrenta, Gim Tones – em processo avançado de deterioração física -, devoramos uns seis quilos de peixe, mas só o Min encarregou-se dos olhos do bicho – ou melhor, de um só, já que o outro exemplar certamente foi roubado pelo gato-ladrão-com-piolhos que o Gim fez questão de adotar no meio da confraternização.
Min precisava desse tipo de alimento – córnea, íris, pestanas - para o que viria depois: fotografar nos mínimos detalhes uma procissão de Santa Cruz, saída da igrejinha histórica em direção a um colubreante (palavra que vem de cobra) périplo pelo bairro, com direito a íngremes lombas (palavra portoalegrense que denota subidas) e vielas ladeadas de casas bem guardadas por cachorrões. Um filhote canino, aparentemente abandonado, foi recolhido por Gim, que atravessa uma fase romântica devido à ameaça de pneunomia que lhe sugere nichos recônditos com cobertores compreensivos. Mas ele abandonou o bicho à própria sorte pois assustou-se com nossas advertências sobre a duração de um cachorro – no mínimo quinze anos – o tamanho que o pequenino iria alcançar em 45 dias de ração, e o quanto ele ficaria feroz morando no edifício Copan.
No almoço, fomos abordados pelo dono do lugar, que se dizia arrependido de ter nascido chileno, já que sempre quis ser o que todo mundo teme: um argentino. O sujeito farejou uma conversa minha sobre churrascos num subúrbio da tríplice fronteira gaúcha e ficou esperando que eu falasse mal da sua admiração. Como não era meu dia de desancar os portenhos, saiu-se com uma longa catilinária sobre a performance argentina no comportamento e na economia. Também na hora do ágape fomos assocados por outros personagens que se revezavam na mesma pergunta sobre um carro estacionado na frente do restaurante, o que estava provisoriamente proibido devido à massa popular concentrada em frente à igreja e que precisava de caminho livre para a caminhada.
Além de comer olho – e depois sentir-se levemente enfarado devido a esse excesso – o Olhar Absoluto teve a manha de resgatar a presença do chilo-argentino com uma pergunta amigável, o que quase lhe valeu um estrangulamento por parte de Gim. A sorte que o crime foi evitado ao surgir a comparação entre Min e Tim Maia e seu sucesso “não não vá embora”. Ao ser informado sobre o novo nome do fotógrafo – Min Maia – Gim teve um acesso de tosse que confundimos com riso convulso.
Acompanhamos pacientemente Min na sua cobertura da procissão, que por alguns momentos teve como gerente de tráfego o solerte repórter policial em avançado estado de decomposição. Por insistência minha, saímos já noite fechada de maneira apressada pois já se avizinhavam algumas barras comuns ao lugar, o que deixava a dupla de criação Gim/Min cada vez mais à vontade. Escaldado na convivência de loucos profissionais da imprensa, que já me fizeram pagar inúmeros micos por infinitos becos, sugeri que fôssemos tomar um cafezinho em casa, o que cumpri em parte, pois tendo tecido maravilhas sobre minha arte de fazer café, acabei galopeando uma água quente e preta servida em canecas inadequadas, o que apressou a despedida desses caros amigos que me salvaram de um sábado mergulhado na mais absoluta mesmice.
Aproveitando minha distração e alegria com as visitas, meu fiel catchorrinho Nick, que até o momento estava sendo monitorado para não despejar sua urina nas rodas do meu carro novo, fez exatamente o que se espera de um animal cockeriano de quatro patas: derramou-se em pneus estalando de novos , o que lhe valeu sérias reprimendas e ameaças de telefonemas para a carrocinha. A família distante, quando soube da arte de Nicholas, limitou-se a ir.
Hoje, domingo, Nick está de castigo e só pode fazer suas estropolias no corredor dos fundos, o que se recusa terminantemente, economizando bexiga para uma nova distração de minha parte. Bem que ele poderia passar uma temporada no Copan, mostrando a Gim Tones o que é bom para a tosse.
2 de maio de 2003
O JURAMENTO
O JURAMENTO
Nei Duclós
O título do terceiro filme de Sean Penn foi traduzido para A Promessa, mas o mais adequado é O Juramento. O detetive interpretado por Jack Nicholson jura pela salvação da sua alma que vai encontrar o assassino de uma menina. A mãe o obriga a isso colocando nos seus olhos a cruz feita pela vítima. O juramento é a garantia de que uma possibilidade, a justa punição, seja concretizada. O jogo perigoso entre ficção e realidade costura o filme e surpreende o espectador, pois esta narrativa clássica da investigação de um crime, apesar de manter intactos todos os detalhes tradicionais, fustra todas as expectativas com um happy end pelo avesso.
O que é considerado realidade – a versão policial do crime – revela-se ficção. E o que é considerado fantasia – as pistas deixadas pela menina e a lógica do detetive – é a realidade que jamais emerge para a credibilidade. Enquanto a verdade é desviada do seu caminho, atropelada, incendidada e esfaqueada, a ficção goza de boa saúde. A fantasia – a verdade sobre o assassinato e as histórias infantis – estão confinadas no mundo dos velhos e das crianças. A exclusão pela faixa etária permite o acesso à impunidade. A verdadeira punição só é feita pelo Acaso, mas esse detalhe ofusca para sempre a verdade.
O resultado é a insanidade de quem apostou sua vida na investigação correta. Por isso o filme não faz brincadeira com ninguém. Baseado em Fury, filme de 1936 de Fritz Lang sobre linchamento, Penn recria a cena das galinhas – que no filme de Lang remete à reproução em massa da versão errada – colocando no lugar uma criação de perus – que além de um resgate visual da homenagem revela a disponibilidae das criaturas para o abate.
O detetive jura reverter esse quadro, impor a verdade como antídoto à injustiça – já que o suspeito é praticamente linchado na delegacia. Mas a ficção enraizada na certeza cômoda das instituições exclui investigador e vítimas para o limbo da falta de juízo.
Nei Duclós
O título do terceiro filme de Sean Penn foi traduzido para A Promessa, mas o mais adequado é O Juramento. O detetive interpretado por Jack Nicholson jura pela salvação da sua alma que vai encontrar o assassino de uma menina. A mãe o obriga a isso colocando nos seus olhos a cruz feita pela vítima. O juramento é a garantia de que uma possibilidade, a justa punição, seja concretizada. O jogo perigoso entre ficção e realidade costura o filme e surpreende o espectador, pois esta narrativa clássica da investigação de um crime, apesar de manter intactos todos os detalhes tradicionais, fustra todas as expectativas com um happy end pelo avesso.
O que é considerado realidade – a versão policial do crime – revela-se ficção. E o que é considerado fantasia – as pistas deixadas pela menina e a lógica do detetive – é a realidade que jamais emerge para a credibilidade. Enquanto a verdade é desviada do seu caminho, atropelada, incendidada e esfaqueada, a ficção goza de boa saúde. A fantasia – a verdade sobre o assassinato e as histórias infantis – estão confinadas no mundo dos velhos e das crianças. A exclusão pela faixa etária permite o acesso à impunidade. A verdadeira punição só é feita pelo Acaso, mas esse detalhe ofusca para sempre a verdade.
O resultado é a insanidade de quem apostou sua vida na investigação correta. Por isso o filme não faz brincadeira com ninguém. Baseado em Fury, filme de 1936 de Fritz Lang sobre linchamento, Penn recria a cena das galinhas – que no filme de Lang remete à reproução em massa da versão errada – colocando no lugar uma criação de perus – que além de um resgate visual da homenagem revela a disponibilidae das criaturas para o abate.
O detetive jura reverter esse quadro, impor a verdade como antídoto à injustiça – já que o suspeito é praticamente linchado na delegacia. Mas a ficção enraizada na certeza cômoda das instituições exclui investigador e vítimas para o limbo da falta de juízo.
1 de maio de 2003
DEUS É CINEASTA
DEUS É CINEASTA
Nei Duclós
Cacá Diegues entrega o ouro quando o fiel escudeiro de Deus elogia o cenário e pede para baixar a música. Nessa cena, nenhuma dúvida sobre quem é de verdade o Ser Supremo.
O Deus Cacá encara a criação do mundo como um filme. O mundo é a civilização brasileira, formatado pelo romance nordestino, as visões do paraíso e a própria obra de Cacá, de Bye Bye Brasil a Chuvas de Verão.
Deus/Cacá tem história e ela é feita de um cenário que está muito acima do nível da humanidade que o habita. O Deus/cineasta vai em busca de um santo, de um justo, e quando o encontra descobre que ele é igualzinho aos outros, ou seja, um descrente (que finge-se ateu), uma pessoa pela metade, que age de maneira dispersa, que tem a fala cortada pela gagueira e se esconde (migra o tempo todo) porque só assim se sente livre para fazer o Bem.
Quem faz o Mal também está em baixa (como é o caso do feiticeiro sem clientes e do agiota que não recebe) e até mesmo a autosuficiência da Divindade (manifestada em permanente impaciência) precisa da superstição para segurar a barra – por isso bate na madeira três vezes e sai pela porta que entrou. O cuidado de Deus é amar suas criaturas, mas não apaixonar-se por elas. Quase acontece. A saída é entregar a noiva ao seu escudeiro e apostar na descendência de uma humanidade que ainda não merece o cenário criado para ela. A humanidade que habita o paraíso está em oposição a ele e o máximo que Deus consegue é que haja uma sintonia, mesmo que de forma contemplativa – ou seja, sem interação de fato (o casal no barco olhando as estrelas no final, e guiando-se pela referência ao Cruzeiro do Sul). O amor é a melhor opção para um lugar que ainda não descobriu a democracia e onde a agiotagem e a violência são as únicas palavras das finanças.
O Brasil de Cacá ainda é o Descoberto, com favelas em cima para atrapalhar. “Espera só o povinho que eu vou colocar lá” diria o Deus da piada pronta ao ouvir reclamações sobre seu excesso ao distribuir suas graças pelo Brasil.
O Deus cineasta tem bom gosto (denuncia a baixa literatura), é onipotente (faz peixe voar), ranzinza (gosta de dizer “não é da sua conta”) e quer férias, ou seja, prêmio pelo muito que já fez por aqui. O Deus empreendedor – que irrita-se com a idéia fixa do povo em relação à tal felicidade - sente falta do Deus que curte. Deus não está feliz e implica com a Queda. Precisa descansar. Se fosse pelo resto do mundo, já estaria na rede. Mas como abandonar o Brasil, sua obra-prima, à falta de sorte dos seus habitantes?
Essa preocupação gera um sentimento de misericórdia para com a terra em descompasso com seu destino de grandeza. O povo, alvo da sua irritação, estragou tudo, mas nem tudo está perdido: a Criação pode ser um magnífico road movie ou simplesmente uma história de amor.
Deus é cineasta e gosta de ser aplaudido de pé.
Nei Duclós
Cacá Diegues entrega o ouro quando o fiel escudeiro de Deus elogia o cenário e pede para baixar a música. Nessa cena, nenhuma dúvida sobre quem é de verdade o Ser Supremo.
O Deus Cacá encara a criação do mundo como um filme. O mundo é a civilização brasileira, formatado pelo romance nordestino, as visões do paraíso e a própria obra de Cacá, de Bye Bye Brasil a Chuvas de Verão.
Deus/Cacá tem história e ela é feita de um cenário que está muito acima do nível da humanidade que o habita. O Deus/cineasta vai em busca de um santo, de um justo, e quando o encontra descobre que ele é igualzinho aos outros, ou seja, um descrente (que finge-se ateu), uma pessoa pela metade, que age de maneira dispersa, que tem a fala cortada pela gagueira e se esconde (migra o tempo todo) porque só assim se sente livre para fazer o Bem.
Quem faz o Mal também está em baixa (como é o caso do feiticeiro sem clientes e do agiota que não recebe) e até mesmo a autosuficiência da Divindade (manifestada em permanente impaciência) precisa da superstição para segurar a barra – por isso bate na madeira três vezes e sai pela porta que entrou. O cuidado de Deus é amar suas criaturas, mas não apaixonar-se por elas. Quase acontece. A saída é entregar a noiva ao seu escudeiro e apostar na descendência de uma humanidade que ainda não merece o cenário criado para ela. A humanidade que habita o paraíso está em oposição a ele e o máximo que Deus consegue é que haja uma sintonia, mesmo que de forma contemplativa – ou seja, sem interação de fato (o casal no barco olhando as estrelas no final, e guiando-se pela referência ao Cruzeiro do Sul). O amor é a melhor opção para um lugar que ainda não descobriu a democracia e onde a agiotagem e a violência são as únicas palavras das finanças.
O Brasil de Cacá ainda é o Descoberto, com favelas em cima para atrapalhar. “Espera só o povinho que eu vou colocar lá” diria o Deus da piada pronta ao ouvir reclamações sobre seu excesso ao distribuir suas graças pelo Brasil.
O Deus cineasta tem bom gosto (denuncia a baixa literatura), é onipotente (faz peixe voar), ranzinza (gosta de dizer “não é da sua conta”) e quer férias, ou seja, prêmio pelo muito que já fez por aqui. O Deus empreendedor – que irrita-se com a idéia fixa do povo em relação à tal felicidade - sente falta do Deus que curte. Deus não está feliz e implica com a Queda. Precisa descansar. Se fosse pelo resto do mundo, já estaria na rede. Mas como abandonar o Brasil, sua obra-prima, à falta de sorte dos seus habitantes?
Essa preocupação gera um sentimento de misericórdia para com a terra em descompasso com seu destino de grandeza. O povo, alvo da sua irritação, estragou tudo, mas nem tudo está perdido: a Criação pode ser um magnífico road movie ou simplesmente uma história de amor.
Deus é cineasta e gosta de ser aplaudido de pé.
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