INFÂMIA E MISERICÓRDIA
Nei Duclós
(www.consciencia.org/neiduclos)
Carandiru é um filme que fala para as trevas – as que ficam do lado de fora da prisão, onde o espectador se encontra. Na câmara escura onde nos acomodamos, olhamos pela fechadura em direção à nossa obra, a prisão dos culpados. Somos "inocentes" porque estamos sentados em cima de uma mentira, a sociedade que deveria ser civilizada. Para nos aproximar do mundo que relata, o diretor Hector Babenco filma a mentira contada pelos bandidos – a sociedade que eles inventam no caos, para continuarem vivos. Cria assim a identidade entre duas ficções e puxa o tapete para ninguém cair no samba.
O que importa não são as histórias, mas as condições da prisão, ou seja, a infâmia. Perto do Carandiru, o cárcere turco de O Expresso da meia Noite é uma estação de férias. E em cada carceragem de delegacia na esquina de nossa casa o mesmo inferno se repete, aqui e agora. Isso parece não incomodar a “sociedade”. O que incomoda é o quanto se gasta com cada preso e a ausência da pena de morte. O cerco da indiferença precisa ser rompido e por isso Babenco apela para o bizarro ao focar as relações humanas.
Ele constrói uma ponte inverossímel entre os personagens, como o casamento de Lady Di com Sem Chance, a espera, sob uma tenda, da filha que não veio visitar o velho preso, a solidariedade fraterna entre dois amigos de infância que acaba em morte num banho de água quente. O que não faz sentido na relação humana realça a crueza do assassinato maior, que é o chão cheio de sangue, os porões mofados de gente, os ferros enferrujados, a lama no pátio, as paredes carcomidas. A realidade física é o verdadeiro centro da trama. O pesadelo do concreto, das grades e da sujeira é que costura a múltipla escolha de histórias pessoais.
Diante do horror, o olhar clínico do médico narrador é a necessária humanização da catástrofe. O sorriso permanente é uma defesa que, no meio dos escombros, denuncia como um retrato a indiferença do espectador. O médico narrador sai ileso como um contrabandista que conta com a confiança da polícia. Mas o espectador sairá ileso dessa experiência?
Babenco radicaliza ao desdramatizar o final colocando Aquarela do Brasil sobre os escombros da prisão, numa gravação antiga, como se pertencesse a um velho filme carnavalesco da Atlântida dos anos 50. É a expressão da brasilidade cinematográfica de Babenco, que trafega entre Glauber Rocha e a chanchada. Glauber é referência explícita quando o travelling dos presos assistindo a partida de futebol reproduz o movimento da câmara sobre os pés dos candangos em Idade da Terra. O casório de Lady Di e Sem Chance liga-se com a cena de Romeu e Julieta entre Oscarito e Grande Otelo.
O gran finale de Babenco em Carandiru serve-se da radicalidade brechtiana, como já aconteceu com José Celso Martinez Correa na sua montagem de Galileu Galilei, quando o final é coroado com todo o elenco dançando ao som de Um Banho de Lua, com Cely Campelo. Aquarela do Brasil devolve o espectador à sua própria realidade, retira-o das trevas por onde esteve imerso por três horas, mas não o isenta da culpa. Como é dito no filme, se houvesse remédio para a culpa, todo mundo iria querer.
Basta sair do cinema, pegar um táxi e ouvir do motorista que não entende porque o governo não mata o Beira-Mar. A infâmia do cárcere jamais poderá ser resolvida com violência. Nem tampouco com omissão. O filme aponta para a necessidade de misericórdia no coração das trevas. Ou a sociedade corta o elo da violência, ou se afogará nela para sempre.
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