31 de dezembro de 2022

RENÚNCIA

 Poema de 2013


RENÚNCIA


Já houve precedente, a divindade

perdeu-se na agonia, abandono

do Pai no derradeiro sangue


Se no deserto a tentação morria

e ao sol outra luz se impunha

na cruz foi demais o peso morto


Deixou-se levar, enfim era humano

o poder que o trouxera se esfuma

os algozes venceram em segundos


Mas no minuto final, feita a sutura

entre a fé e a eternidade em fuga

a passagem inaugura nova vida


Assim há batismo ao sair do trono

água sagrada de radical renúncia

exemplo de inspiração bíblica


Recolher-se na missão cumprida

velar o rebanho solto na mistura

entre a terra bruta e o paraíso


Nei Duclós


(Imagem: Bento XVI se retira)

23 de dezembro de 2022

PRENDA

 Nei Duclós 


Não posso definir o sentimento

Parece bobagem - já disse e sustento


Abri mão do complicado evento

De entender as paredes deste ofício

Para me dedicar ao visgo sem retorno

Do amor e o que ele inventa 


Na margem de reconhecimento 

Facilito o verbo em função do tempo

Que perco pesquisando o embrulho


Nem mesmo a esmola do teu gesto escasso

Vem a mim, rude cachorro 

Sou um sem teto em praça do subúrbio 

Passas ao largo, com ruidosas rendas


Sigo teu andar como torto anjo

Entras no quarto e fechas a porta

Fico no corredor, mastim silencioso

Ermo de ti, inacessível prenda


Nei Duclós

22 de dezembro de 2022

DECISÃO

 Nei Duclós 


A blusa não esconde, antes desenha

A perfeição do busto, arte suprema

Que por falta de certeza sobre a autoria

Atribuímos apenas à natureza


Negamos haver um plano em tão laico ambiente 

Que anteceda a escultura em museu de cera

Maquete da criatura em mãos de mestre


Como se um artista deixasse escapar

Num descuido semelhante deusa

Sem dar chance à fila do gargarejo

Quando ela ocupa o espaço dos desejos


Guardaria para si, com pleno poder

Pois o conjunto é um atentado fundo

Que põe fogo nos olhos, maneja os sonhos

E nos deixa na mão, musa inconteste


Se achas um exagero, fique na sua

Não curta com minha cara de veterano

Nasci 30 anos antes mas valeu a pena

Vou me oferecer como segurança


Quem se aproximar jogarei pesado

Ela é quem decide, quando tiver vontade

Eu distribuo as senhas, mas fique atento

Pode demorar, já que eu vi primeiro


Nei Duclós

19 de dezembro de 2022

VOCAÇÃO

 Nei Duclós 


Precisa ter cuidado no exercício de uma arte

Responsabilidade, pois é de vida longa essa barra

A criação atinge o que o olhar ignora

E se instala na percepção alheia

Como se fosse de nascença 


Não basta o capricho e a qualidade

O esmero do ourives ou do solista 

O autor de palavras perfeitas

O poeta Impregnado de rosas 


É bem maior o poder da atividade

A noção de que a viagem se desdobra

Em infinitas estações e povoados

Cultiva corações, é adotada

E acompanha o amor, seu rebento mais extremo


Não significa rigidez ou falsidade

Assim como não se entrega à pobreza do consumo 

É bem maior o alcance do perfume

Que a flor espalha em toda gente


Precisa dedicar-se por inteiro

Sem trair o sonho ou o desejo


É trabalho no que tem de rude

É missão que a vocação obriga

É tesão, falando sem rodeio


Nei Duclós

ALTAR

 Nei Duclós 


Tiro você de letra

Dez anos depois do adeus

Finjo que a desconheço 

No acaso brutal do evento  


Vens vestida de preto

Noiva de outro alguém 

Sou a dos velhos tempos

Dizes tonta e violenta 


Não me ajoelho porque tenho

Auto estima e o  desprezo

Por todo esse sofrimento


Mostras o anel

Parabéns, digo contente

Pergunto a data e prometo

Roubá-la diante do altar


Montarás em meu cavalo

Nua em pelo


Nei Duclós

17 de dezembro de 2022

PACIÊNCIA

 Nei Duclós 


Sabes que não tenho o cacife dos gigantes

Capaz de levantar pirâmides

E destruir o planeta

Não tenho altura suficiente 

Nem habilidades ou força 

Que existem normalmente quando somos moços 


Não sei onde cavar um poço, rasgar a lavoura

Nem a hora de levantar acampamento


Não pesco, não caço, não monto a cavalo

Não consigo manobrar a diligência 


Por isso me ensinaste o básico 

Orientaste meu arco para o lugar certo

E me presenteaste com o melhor benefício

Pois na hora agá eu conhecia a região 

Situada acima do joelho

Só ignorava a sede do município 


Sou dos encaixes, não da britadeira 

Tens a paciência de esperar teu homem

Para que haja êxtase e não remorso


Nei Duclós

INTENSO

 Nei Duclós 


É bom que não me atendas  

Eu te deixaria na mão logo em seguida

Porque é  de areia minhas demandas

Não se sustentam, eu me conheço 


Não significa falsidade

Apenas mistura de personalidades

Imploro de olho no relógio 

Choro mas chorar tem hora


Assim ficas livre do meu intento

Meu desequilíbrio na performance

Intenso mas sem consequências


É amor, no entanto

Por isso cedes por eu ser um monstro

O pouco que tenho serve como exemplo

Do humano fervor, lava da montanha


Nei Duclós

13 de dezembro de 2022

PERGUNTA

 Nei Duclós 


De onde vem a ventania?

Pesquisei sem encontrar resposta

Ilha submersa, pássaro Roca

Ninguém atina sua origem


Pilha de mistérios

Barriga de velas

Que em naus gerou o Novo Mundo

Ventos alisios, trilha de Colombo

Verga o quintal que o varal escandaliza


É minha pergunta favorita

Quando sopra do norte sul ou leste 

Não tenho o que fazer com a poesia

Dou-lhe o encargo, descubra com um verso 


Nei Duclós

PERDIDO

 Nei Duclós 


Durmo com a fantasia, na falta que me faz tua presença 

Foi-se o dia e a noite alta me condena

Amor perdido é prisão em

domicílio 


Cansei de ter jardim ou ver fotografias

Perdi a memória e o gosto de estar vivo


É a idade, dizem em diagnóstico preciso

Mas eu dispenso semelhante medicina

Você é a cura se acaso existisses


Nei Duclós

A VOZ

 Nei Duclós 


Por mais que se esforcem

Na cama-de-gato e outras armadilhas

Na rasteira, traições, mentiras

No roubo puro e simples, nas calúnias 

No ataque combinado das quadrilhas

Na destruição da tua biografia

Na clonagem dos livros, da autoria

no rombo dos recursos

na pilhagem noturna ou à luz do dia


Por mais que tentem

Apagar o que fazes por inspiração divina

Pleno de si, feliz e  criativo

Por saber trazer do magma o que nos ilumina


Por mais que joguem lixo no que tens de puro

Jamais serão você, mestre asceta que na voz

Profetiza

Com a palavra que mesmo no deserto

Frutifica


Nei Duclós

12 de dezembro de 2022

DETALHE

 Nei Duclós 


Não tenho acesso aos teus cuidados

Que guardas numa foto a sete chaves

O beijo que jamais posso alcançar

O abraço no vazio da tarde 


Não faço parte da humana sorte

Que te cerca de atenção e graça 

Sou o que vê de longe tanto charme


Mas há um detalhe que talvez te escape

É esse olhar sombrio que não disfarças

À procura de algo muito embaixo

O meu amor, talvez, quem sabe

Perdido de paixão louca e covarde


Nei Duclós

SOFÁ

 Nei Duclós 


Proibida

Por ser próxima e distante

Amarra o corpo no olhar mendigo

Por onde passa, cheiro do levante


Mais não digo

Sob pena de cometer um crime

Acre pele de feminino lance

Requebras sem querer e nenhuma chance


Na curva providencio o bote manso

De fera amanhecida no desejo

Ligo os suspiros com sutil arame

Forço a conduta, bruto na vergonha

Finges surpresa, delícia atrás do morro


Ainda caio na tentação do sonho

Enquanto levantas o rosto indiferente 

A me atribuir as piores intenções que escondes

Ao trocar as pernas no sofá de vime


Nei Duclós

10 de dezembro de 2022

EXPOSTA

 Nei Duclós 


Você teve um grande amor e foi intenso

Descubro isso ao ver-te exposta e fria

Como a vingar-se do intimo refúgio 

Que tirou teu teto e conspurcou o ninho


Poderias ter perdoado mas não houve chance

E ficaste à toa sem margem de retorno

Exibes hoje esse amargo esforço


Amor perdido é  como areia no deserto

Ele cega na tempestade e estraga a boca

De tanto gritar por meio do desejo

Depois some mas domina o ambiente


Amor é  fogo, sede e sofrimento

Memória doce que te arranca a roupa


Nei Duclós