30 de abril de 2022

LUZ

 Nei Duclós 


Confinado  no tempo e  no espaço 

Por idade,  complicações, cansaço

Não abro mão da  claridade 

Minha poção de   cura, a cultura

Que cultivo por tradição e liberdade 


Por amor, eu diria, por força de hábito 

O coração é  fogo, iluminação 

Contra a escuridão  covarde


28 de abril de 2022

PASSAGEM

 Nei Duclós 


Por aqui passou o poema

Como vassoura de palha

Deixou estrias no piso

Forçou a porta de entrada


Veio de longe o poema

Do tempo da esferográfica 

Da praia em verões da lata

Das mãos mendigas da praça 

Cadernos espiralados

E de sonhos 

Que já não restam


Passou por aqui, poucas marcas

Revelam sua passagem 

A não ser alguns garranchos 

Nas paredes da tapera 


L

27 de abril de 2022

ERROS

 Nei Duclós 


Só a mim diz respeito

Os erros que cometi

E não foram poucos


Talvez só eu lembre

O Mal com que atingi

Pessoas próximas e distantes

Essa  coleção de desacertos

Que desenham meus remendos


Mas quando me encontro

Com algum contemporaneo

Passamos a borracha

Amores feridos humanos

Memórias flexíveis

Que cabem em nosso vasto coração de abandonos



CEDO

 Nei Duclós 


Faço tudo cedo

Café banho poema 

Não tenho pressa nem medo

Apenas cumpro a agenda 

Escrita pela experiência 


Quem for mais moço  ompreendo

Deixar tudo por fazer

Já fui assim, mas confesso

Que prefiro ganhar tempo


Para estar pronto, liberto 

E aguardar que a fortuna 

Para entrar peça  licença 

E note no meu asseio

O dia acertando o passo 



MAÇÃ

 Nei Duclós 


Provo a maçã de natural promessa

Devo confiar até  na casca

Não há veneno apenas fruta


Imagino  a safra

Até  chegar à  minha mesa

Águas de intensa  clareza

Molham as  macieiras

Mãos de aprendizes

Colhem no ar a doce e vermelha porção da natureza


Mordo a polpa mais perfeita

Sou o alvo dessa prece

Que a terra entre estações inventa


Nei Duclós

AS CARTAS

  Nei Duclós 


Hora de levantar acampamento

Neste .momento de guerra 

Quem dera fosse uma pescaria 

Em que juntar as tralhas era  volar para casa

Com as lições de desconforto do pai

Ferindo os pés

Enquanto  nos dirigiamos para as mãos da mãe


Agora é   batalha

Os pais se foram junto com o País. 

Eu faço a mochila juntando as cartas do meu camarada para a família 

Não há  correio no front

E um tiro selou seu destino

Carreguei-o até a beira deste rio

E sepultei-o entre as pedras 


Se eu sobreviver

Serei carteiro de um herói 

Recebido com lágrimas

Pelos que perderam um filho

Nos  confins da pátria e da memória 


Nei Duclós

19 de abril de 2022

DESPERTAR

Nei Duclós 


Se o ódio por acaso for dormir não o desperte de manhã. Deixe-o ficar lá até ele esquecer de levantar 


Mas desperte  o amor e leve-o para ver o mar


SARJETA

Nei Duclós 


Ficamos sós, eu e o poema

Ofício sem poder no esquema

Ainda riem do que acham inútil 

O varso e o versejador caduco

Ambos sentados na sarjeta suja


Ficamos sós, por nossa culpa

E a lua, sem misericórdia

Vem fazer parte da comédia 

Para ela tanto faz, ilusão ou crime

Poesia é vício da solidão 

Musa distante que o diga


ÍNTIMO JARDIM

 Nei Duclós 


O amor é um jardim sem dono

Que alguém plantou e foi embora

Ele continua produzindo flores

Íntimo da chuva e da terra inóspita


A primavera vem em seu socorro 

Quando o inverno vence a estação dos brotos 

E o clima morto acha que está feito 

O corpo do jardim já decomposto


Ressurge então o amor, supremo rosto

De pétalas azuis por entre o barro

Sentimos de longe, remota montanha

Mas ele está dentro, e diz teu nome

Batismo de seda contra o abandono



17 de abril de 2022

ENCALHE

 Nei Duclós 


Não diga que sou tirano

Porque travo a língua com palavras  pobres

O lixo que recolho serve para o sonho 

Não deixo nada fora no ofício medonho 


É  missão de sacerdote o poeta que sofre

VendO o verbo atirado sem nada que o apanhe

Por isso reza enquanto anima o espólio 

O encalhe das falas e dos relatórios 


Tenho o hábito dos santos apesar de humano

Vivo no pecado das estrofes sem uso

Mas os anjos gostam e devolvem num sopro 

Maravilhosa e inéditos cantos gregorianos


EIXO

 Nei Duclós 


Que coisa boa quando consentes

Que eu toque teu corpo e encontre um  pouso

No eixo que vai do rosto até o ventre 

Teus seios de fogo tua língua  violenta



VONTADE

  Nei Duclós 


Acordo com a poesia

Que dorme comigo

E traz consigo teu perfume físico

Essa rede infinita de vontade e gozo

Essa graça de fêmea,  essa arte  cativa



7 de abril de 2022

A DOR

 Nei Duclós 


Por que sentir dor

Se a dor já cumpriu sua missão de aviso

E em vez de retirar-se no tratamento

Estabeleceu--se no comércio do improviso

E se diverte enquanto morro vivo


É armadilha  contar  com instrumentos

Como a dor, mísero gatilho 

O que parece prático é  oportunismo

Do Mal, esse pacto bandido


Sinto a xor, que   já me tem  como destino

Ao invenlá-la

Alguém disse cace o bicho

Que fez da poesia  seu casulo

Explorem seu amor às letras

E extraiam pelo menos uma estrofe 

Que célebre a dor, sua consorte

No desconforto da pior idade


DANÇA

 Nei Duclós 


Fico extático diante do teu corpo em movimento

Apostas numa dança na varanda escassa do apartamento

Que se despeja sobre meu olhar

O som é qualquer

Importa que teu vestido escorrega prometendo o que não ouso dizer

É de manhã 

Chove o desejo nessa nuvem que nos condena

Ao anônimo abraço irreal 

Sem futuro

Mas só nosso

Ninfa suburbana

JACÓ E RACHEL

Nei Duclós 


Temeroso de perder a noiva prometida

Por um erro de cálculo Ou artimanha

De um sogro idoso que  continha

Como bem mais valioso, a bela filha

Jacó submeteu se ao novo ciclo

Achando seu prêmio garantido


Mas Labão vendeu Rachel às escondidas

E empurrava Lia, a moça bruta


Destruido ao descobrir o fato  novo

Jacó não desistiu, fez se de bobo

E decidiu  arquitetar o astuto plano


Fingiu aceitar a  caçula  mas  de olho

Na primogênita já  casada com outro

E quando todos dormiam despertou o fogo

Para que o  crime fosse o amor e não o ciúme



3 de abril de 2022

SOLDADA

 Nei Duclós 


Esquecida nos relatórios de caserna

Fez a guerra sem vestir o uniforme

Balas  na saia

Ombros de fuzis

Bolsa  com bisturi e mertiolate


Atiradora anônima ,  enfermeira do caos, carreteira em panelas de ferro


Eram tempos heroicos, mulheres que não batiam continencia

Voltavam exaustas, sem soldo, viúvas 

E nas casas preparavam a paz


Escondiam cicatrizes por baixo do pano

Sem jamais amaldicoar a Pátria 

Chão que acoolhe o sangue da família