29 de janeiro de 2021

COLHEITA

 Nei Duclós 


Deus colhe a alma que está no auge

Não faz  por maldade mas por contingência

É a natureza da sua inteligência 

Texto sóbrio, crueza de bicho

Faz  no capricho a vida que tira

E não a guarda no lixo da Historia


Tudo de si tem o tom bíblico

Que vem dos profetas e do armistício

Fazem a guerra e não lhe perguntam

Por isso ele colhe com esmero de artífice


Nem Ele suporta tanto mistério

Leva para longe os pais e o filho

E fica sozinho como ave no ninho

Asa ferida por seu desperdício 



27 de janeiro de 2021

CABANA

 Nei Duclós 


És o que me falta, gentil pastora

Motivo dos meus dias, régia doçura 

Estou no teu rebanho, fonte da montanha

Banhas tua pele de mel e neblina


Quem vê acha que estou delirando

Preso na armadilha do pesadelo urbano 

E que não há natureza no entorno bárbaro 

Muito menos a musa, fervor de devoto


É que, como tu, tornei-me  invisivel

Enxergam a ruína, e não  a cabana 

Onde moramos,  no reino remoto

Na cordilheira onde Deus bebe água 


26 de janeiro de 2021

GRUTA

 Nei Duclós 


Sou como a sombra da lua

Que te acompanha inseguro 

Amor que não tem sossego

Medo que a nuvem te cubra


Sou eu que vejo  no escuro

Quando a noite é  teu refúgio 

Para escapar dos amantes

E confundir as estrelas


Quero o que  não alcanço 

Seguindo a pista da musa

Liberta do meu desejo

Convicta em viver reclusa


Só uma porção do teu sonho

Posso acessar sem prejuízo

É quando sobras na Cheia

E tira o corpo da gruta



25 de janeiro de 2021

EXPOSIÇÃO

 Nei Duclós 


Tudo é  denúncia no poema

Quando digo tudo

Quando fantasio que ficas comigo

Exponho tuas culpas

Aponto os desejos


Foges para baixo da cama

Tarde demais, peregrina 



CLASSICA

 Nei Duclós 


Palavra é prisão 

Quando a teimosia 

A repõe  como um susto na lógica 

Nada avança se não cede

A falsa produção de pensamento


Aceite a palavra porque é  nova

Sem novidade

Com seu clássico sentido

De claridade 



24 de janeiro de 2021

EXISTIR

 Nei Duclós 


Não sei direito como te chamas

Como se pronuncia teu nome

Como és conhecida por quem te rodeia 

Se tua voz é  suave ou gritas

Para ser ouvida


Não te conheço, amiga

E quando me afasto não reclamas


Essa é a vida em que estamos próximos e divididos

E o único vínculo é  a poesia

Que faço para permanecer à  tona

E escutas porque esse é   o único amor possível

Neste mundo sombrio de solidão 

Em que não abrimos mão 

De existir, mesmo depois de ter perdido

Tudo 

 


22 de janeiro de 2021

REDOMA

Nei Duclós 


Sei você de cór

Simples beldade 

Repetida flor


Já te vi com meu olhar à toa

Flues generosa

Do alto da montanha

Multiplicada diante do sol

Que mergulha no mar

À tua procura


Cisco no escuro leito do oceano

Todos os corais são tua redoma


Fico exausto de tanta criatura

Torne-se só uma

Para que eu te descubra Chance única 

De eu ser feliz

19 de janeiro de 2021

GUARDADOS

 Nei Duclós 


Já tenho tudo dela 

As fotos de praia

Alguns objetos

Bibelôs do Nordeste

Roupas que não veste

Um par de sandálias

Que esqueceu no carro


Tenho as cartas os ingressos de shows e teatro

Faço coleção dos brilhantes falsos

Que usou nos eventos e jantares


Com tudo isso me distraio 

Enquanto ela não chega de viagem


Foi para o mar

Sem nada

Aguardo no cais lotado

De badulaques



18 de janeiro de 2021

APELO

 Nei Duclós 


Amar é  pertencer

Sem ser propriedade

É  submeter-se

Sem ser escravo

É ceder

quando há coragem

É servir

No jugo solidário 

Carregar

A doce bagagem


Amar é  quando ela está na pista do aeroporto

Pronta para embarcar e atende o telefone

E escuta tua voz

Tardia mas ainda a tempo

a dizer o que esqueceste todos esses anos

O apelo do sentimento soberano

A vibrar  com o motor do aeroplano ainda no chão 


Fica amor

Eu te amo



13 de janeiro de 2021

TALENTO

 Nei Duclós 


E preciso pernas para aparar o golpe

Peito para pousar o bruto

Boca para sorver o monstro

Mãos  para socar o trote 

Pés para chutar a cama

Corpo para mexer-se toda

Goela para berrar o crime


E depois talento para dizer que não foi só prazer e loucura

Foi também  amor

12 de janeiro de 2021

RUDE

 Nei Duclós 


Tenho medo de perder, tendo já perdido 

O lance do prazer do amor contigo

Acordar com teu corpo amanhecido


Tenho medo de  cair no desperdício

Repetir o que me faz solito

No sítio que arranjei no pampa escuro


Domo cavalos

No tempo chucro

Longe de ti, floração madura

Sou de natureza rude 

Mormaço e chuva, rasgo na campina 



10 de janeiro de 2021

CONQUISTA

Nei Duclós 


Abandonaste o trono de rainha

Desconfias do que sou, teu súdito

Preferes a certeza do exílio do que a dúvida

a de ser só  minha


Exerces fora do reino a cidadania

Eu obedeço a decisão, a majestade 

Exige esta celebração à  revelia

Sou guiado pelo amor, único titulo


No duelo venço a parada e deposito

A teus pés a flor, 

Para que sintas

O quanto sou capaz, doce tormento


Amar é  conquistar o teu castelo

Depois de um esforço tremendo

E descobrir no vestíbulo vazio

que foste embora para sempre



9 de janeiro de 2021

IDÊNTICOS

Nei Duclós 


Aos poucos adquirimos o mesmo rosto

Que mostramos com o verniz dos algoritmos

Que confundem as idades

Como se tivéssemos todos nascidos hoje


As diferenças se foram para as memórias e o sonho

Lidamos idênticos sem nenhuma  chance

De existirmos fora desta redoma


Somos o espelho do mundo novo

Enquanto o tempo devasta os contemporaneos

Quem acabou de ir embora?

Talvez o amor, talvez a infância 



VIDRO

Nei Duclós 


Você não acredita

Por achar que facilito

Na arte da palavra dita

Ao teu ouvido


Mas não aduvinhas

A solidão deste ofício

Ao lidar com a beldade

Do abismo


Caio enquanto tento o equilíbrio

Não escutas o estrondo 

Provocado por tua indiferença?

Não recolhes os pedaços 

Escultura de ombros 

E olhar de vidro?



CONFISSÃO

 Nei Duclós 


Tenho palavras profundas para a tua dor

Que tocam músicas de um altar

Tiro de ti quando me confessas

O que guardas de amor em teu lugar


Tenho um coração  que te ouve chorar 

E aguarda que voltes de manhã 

Quando Deus sem saber o que dizer

Te deixa ir em minha direção 



8 de janeiro de 2021

BAGAGEM

Nei Duclós 


Tudo comigo fica para sempre

Bilhetes de amor, chapéus de feltro

O quintal que grudava no rio

Os acampamentos


Tudo permanece  apesar do tempo  

As perdas, estudos, amizades


Guardo bagagem  para embarcar um dia

No navio onde serei capitão 

Na direção do destino, o vento.



5 de janeiro de 2021

A MÃO INTELIGENTE

 Nei Duclós 


O vento a  chuva o tempo

Não são escultores 

O acaso não constrói templos

As pedras em forma de gigantes

Nao são obras aleatórias

As águas canalizadas no deserto 

E que escorrem há milhares de  anos

Não são naturais, como a noite


A mão inteligente plantou florestas

Esboçou montanhas

Criou grutas com pilares e paredes

Como obras de arte

Desenhou calçadas que margeiam a devoção até  o topo

Que se debruça sobre o mar e o horizonte


Tudo isso está exposto 

Como se fosse um segredo 

Mas são apenas as tábuas da lei

Da nossa gênese



1 de janeiro de 2021

ATERRO

 Nei Duclós 


A palavra gera a violência

Que dela se alimenta

O  verbo é  o berço do gesto que mata


Não me diga nada 

Se quiseres que eu viva 

Não fale, como as ervas 

Reze no interior da pedra 

Cante sem letra

Escreva no vazio do berro 

Leia no raso

Viaje ao mudo aterro