31 de março de 2016

TESTEMUNHO



 Nei Duclós


Arte que se ergue da miséria
coroa de louros sobre a maratona
o suor conspurca o trono ou o liberta
para além da vida e do abandono?

Escrevo no aperto de uma obra
que talvez não sobreviva ao outono
Deverei fazer justiça à realidade
ou cobri-la com a versão do sonho?

O autor caolho ou cego de nascença
tinha noção da glória que criava?
Sabia que era a falso o testemunho
dos ciclopes, moinhos ou cruzadas?

O lúcido sereno não se aguenta
e refaz o cozimento da verdade
mente ou simplesmente inventa
prefere o Olimpo ao deserto bravo?

Não era tanto o meu consentimento
ao abordar assunto tão escravo
somos reféns do velho labirinto
o fio salvador é o risco que se apaga

Gero divisórias no quarto sóbrio
onde se debate a donzela e a fada
sou o pintor que fala pelas costas
toureiro de uma brisa sobre a capa



29 de março de 2016

QUANDO CHEGAS AO PONTO




Nei Duclós


Quando chegas ao ponto
bem no miolo do Tempo
atraindo alto retorno
mesmo por um momento

sempre haverá carona
do olhar excludente
Marcados pela Queda
somos abatidos no voo

Parceiros do sonho
pousamos silentes
Pássaros entendem
eles são do ramo

Antes que digam água
a palavra vem da fonte
ave que não se esconde
flor que não morre cedo


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Van Goch.

26 de março de 2016

E LA NAVE VA: O SOLENE RISO DO GÊNIO



Nei Duclós 

E La Nave Va, de Federico Fellini, é um longo funeral turístico e marítimo da ópera: ao mesmo tempo que celebra a era de ouro do bel canto, decreta seu fim, por meio da entrega das cinzas de uma grande intérprete ao mar. A cerimônia é promovida por povos irmanados pela arte ( o nobre austríaco e sua entourage convivendo com toda a fauna italiana dos palcos) que acabam se confrontando e se dividindo para sempre com o início da I Grande Guerra.

A narrativa fica a cargo de um jornalista, que fala direto para a câmara e no desfecho do filme é revelado em toda a sua representação, com o surgimento na tela da equipe que faz o filme. O cenário é de uma grande produção operística vista em seus bastidores, com a presença do pedófilo, do homossexual, da ninfomaníaca, do traidor do príncipe, da cantora invejosa da fama da homenageada etc. Como diz uma personagem, quem interpeta não sabe de onde vem a voz. Cantores são apenas instrumentos, com a respiração, a garganta, o timbre.

Os artistas notam que não estão sós no clima aristocrático do navio de luxo, pois o capitão recolheu náufragos sérvios foragidos da guerra, cumprindo assim os ditames do Código Naval, de prestar socorro aos que estão á deriva em alto mar. O gesto humanitário é visto com desconfiança pela nobreza austríaca a bordo, mas os italianos acabam se misturando à arte popular trazida por acrobatas e dançarinas existentes entre os imigrantes. A Itália não é de confiança, dizem os buldogues e isso diverte Fellini, um pândego de gênio, que focou toda sua obra na indústria do espetáculo. A representação artística, da qual o cinema é mais do que a soma de todas as artes, mas também sua transcendência, seu rebento original. ocupa Fellini na exposição do mistério exibido pelo talento.

E La Nave Va, ou seja, o show deve continuar, como dizem os americanos. Fellini coloca uma situação terminal da ópera, que morre junto com a civilização dos tempos de paz e dali em diante vive da memória, pois essa arte estacionou no tempo e é sempre revisitada sucessivamente por todos os séculos. Foi a guerra que colocou um ponto final. Dali em diante não se podia mais chegar á altura do que se produziu anteriormente. Mas isso não chega a ser uma tragédia, é mais um drama com lances de comicidade.

Fellini nao iria conspurcar sua obra com a falsa seriedade dos medíocres. O gênio ri, enquanto chega, por sua vez, ao épice de sua arte, como o que consegue mostrar em relação às outras, inclusive ao próprio cinema (como em 8 e meio). Vale-se da memória, que é a História contada pelos avós às crianças. E do vento, solene, permanente, que está em Amarcord e tantos outros filmes seus, e que se refere sempre ao fluxo do Tempo, cíclico, eterno e ao mesmo tempo provisório, passageiro, humano.


25 de março de 2016

FUGA DO HORIZONTE



Nei Duclós

Hoje sou antigo
antes tinha tempo
O rosto que servia
não pode ficar pronto
Invento desperdício
na fuga do horizonte

O corpo é alegoria
papel crepom do canto
desfaz-se no convívio
borrão sujo do forro
Cumpri a profecia
parábola e confronto

Hoje estou acima
do que me fez intenso
mãos sem dar um grito
cair fora do cerco
Dispersa é a poesia
amor fora do porto

RETORNO - Imagem desta edição: Sylvia Hoecks.

CINEMA É O MELHOR LANCE




Nei Duclós

Cinema é uma falsificação, mas isso não significa que não exista como obra original. Faz parte da realidade, embora mostre personagens imaginários, cenários desenhados e construídos em estúdios ou manipulados em softwares, situações inventadas, diálogos que jamais existiram, histórias criadas por escritores e diretores, além de todo o aparato de marketing que se impõe ao olhar do espectador, fazendo sua cabeça inclusive antes de o filme ser lançado.

Mesmo quando o filme é “baseado em fatos reais” trata-se de uma versão, como notaram uma vez os irmãos Cohen, que debocham desse jargão muito comum na Sétima Arte. Paradoxalmente, o cinema das falsificações produz obras originais. É o rebento único da criatividade humana, que deixa de ser apenas a soma de todas as outras manifestações – teatro, pintura, escultura, música, História, memória – para existir como criatura à parte.

Giuseppe Tornatore, que aos 32 anos, em 1988, deslumbrou o mundo com sua obra prima Cinema Paradiso, mostra como o cinema é pura manipulação e como nos encanta por driblar nossa percepção. O que não é exclusivo da arte, pois a chamada realidade é também um truque da percepção. Cada um tem na mente o mundo que constrói em seu imaginário, e esse mundo some no desfecho da vida. Sobrevivem as outras versões, dos que permanecem em pé (não por muito tempo). No seu filme de 2013, O Melhor Lance, ele joga com essa dupla face da ficção, que é real pelo que falsifica, e falsa pelo que tenta reproduzir da realidade.

O leiloeiro milionário e bem sucedido interpretado por Geoffrey Rush é um falsificador. Arremata por uma bagatela telas que valem milhões (com ajuda do parceiro Donald Shutterland), cultiva uma castidade perversa ao colecionar centenas de quadros famosos de mulheres, usa luvas para não ter contato com tudo o que existe fora dele, especialmente o corpo feminino. O celibatário que esconde um tesouro na sua casa/hotel é o alvo favorito dos especialistas em falsificações, que procuram desmascará-lo atraindo-o para uma armadilha. Ele comete um erro: confia no que jamais acreditou, amizade e amor. Paga caro por seu equívoco, descobrindo-se solitário depois de ter provado o alvo predileto do seu pânico, a mulher.

A bela Sylvia Hoecks cumpre seu papel de sedução, fazendo-o acreditar que aparência, idade, taras, medos e raiva não contam quando duas pessoas se apaixonam. Nada mais falso do que a identificação espiritual, insumo do romantismo, território clássico do equívoco fatal, o que leva à morte nas paixões não correspondidas. O amor é exigente e cobra a conta. É cego para quem despreza suas evidências. Pelo menos nesta história, em que não há surpresa na disparidade entre os amantes.

Tudo o que parece verdadeiro revela-se falso ao virarmos um quadro para ver o que há no fundo dele, na assinatura que o falsificador imprime na imitação perfeita, na visão técnica de obras produzidas para provocar assombro. A mulher que vive confinada em frente à mansão onde se desenvolve a trama é uma autista obcecada por números. Ela ajuda a decifrar o nó que enredou o especialista. Mas é desprovida de graça. A chamada “realidade” não vale a pena, por isso a falsificamos. Ou talvez não tenha o cacife diante da sua concorrente, a imaginação.

Tornatore é do ramo. Seus filmes, como todos, são sobre cinema: o que vemos na tela não é só uma história de amor e suspense, é também e principalmente a composição de elementos audiovisuais para nos convencer que há um abismo entre o que existe e o que percebemos, mas que é irresistível nos entregar a eles. Fazemos a melhor oferta: queremos conquistar o sonho, o alvo do nosso desejo, mesmo que para isso sacrifiquemos a realidade, essa voyuer obcecada por algaritmos sequenciais e que fica de fora do melhor lance, o sentimento.