Nei Duclós
Cinema é uma falsificação, mas isso não significa que não
exista como obra original. Faz parte da realidade, embora mostre personagens
imaginários, cenários desenhados e construídos em estúdios ou manipulados em
softwares, situações inventadas, diálogos que jamais existiram, histórias
criadas por escritores e diretores, além de todo o aparato de marketing que se
impõe ao olhar do espectador, fazendo sua cabeça inclusive antes de o filme ser
lançado.
Mesmo quando o filme é “baseado em fatos reais” trata-se de
uma versão, como notaram uma vez os irmãos Cohen, que debocham desse jargão
muito comum na Sétima Arte. Paradoxalmente, o cinema das falsificações produz
obras originais. É o rebento único da criatividade humana, que deixa de ser
apenas a soma de todas as outras manifestações – teatro, pintura, escultura,
música, História, memória – para existir como criatura à parte.
Giuseppe Tornatore, que aos 32 anos, em 1988, deslumbrou o
mundo com sua obra prima Cinema Paradiso, mostra como o cinema é pura manipulação
e como nos encanta por driblar nossa percepção. O que não é exclusivo da arte,
pois a chamada realidade é também um truque da percepção. Cada um tem na mente
o mundo que constrói em seu imaginário, e esse mundo some no desfecho da vida.
Sobrevivem as outras versões, dos que permanecem em pé (não por muito tempo).
No seu filme de 2013, O Melhor Lance, ele joga com essa dupla face da ficção,
que é real pelo que falsifica, e falsa pelo que tenta reproduzir da realidade.
O leiloeiro milionário e bem sucedido interpretado por
Geoffrey Rush é um falsificador. Arremata por uma bagatela telas que valem
milhões (com ajuda do parceiro Donald Shutterland), cultiva uma castidade
perversa ao colecionar centenas de quadros famosos de mulheres, usa luvas para
não ter contato com tudo o que existe fora dele, especialmente o corpo
feminino. O celibatário que esconde um tesouro na sua casa/hotel é o alvo
favorito dos especialistas em falsificações, que procuram desmascará-lo
atraindo-o para uma armadilha. Ele comete um erro: confia no que jamais
acreditou, amizade e amor. Paga caro por seu equívoco, descobrindo-se solitário
depois de ter provado o alvo predileto do seu pânico, a mulher.
A bela Sylvia Hoecks cumpre seu papel de sedução, fazendo-o
acreditar que aparência, idade, taras, medos e raiva não contam quando duas
pessoas se apaixonam. Nada mais falso do que a identificação espiritual, insumo
do romantismo, território clássico do equívoco fatal, o que leva à morte nas
paixões não correspondidas. O amor é exigente e cobra a conta. É cego para quem
despreza suas evidências. Pelo menos nesta história, em que não há surpresa na
disparidade entre os amantes.
Tudo o que parece verdadeiro revela-se falso ao virarmos um
quadro para ver o que há no fundo dele, na assinatura que o falsificador
imprime na imitação perfeita, na visão técnica de obras produzidas para
provocar assombro. A mulher que vive confinada em frente à mansão onde se
desenvolve a trama é uma autista obcecada por números. Ela ajuda a decifrar o
nó que enredou o especialista. Mas é desprovida de graça. A chamada “realidade”
não vale a pena, por isso a falsificamos. Ou talvez não tenha o cacife diante
da sua concorrente, a imaginação.
Tornatore é do ramo. Seus filmes, como todos, são sobre
cinema: o que vemos na tela não é só uma história de amor e suspense, é também
e principalmente a composição de elementos audiovisuais para nos convencer que
há um abismo entre o que existe e o que percebemos, mas que é irresistível nos
entregar a eles. Fazemos a melhor oferta: queremos conquistar o sonho, o alvo
do nosso desejo, mesmo que para isso sacrifiquemos a realidade, essa voyuer
obcecada por algaritmos sequenciais e que fica de fora do melhor lance, o
sentimento.