31 de março de 2015

FÁBULA DO MÍNIMO SOM



Nei Duclós

A linguagem é como o tanque de guerra herdado pelo filho do colecionador.
Como o objeto é um despropósito, um excesso diante das necessidades,
o herdeiro entrega o monstro para um ferreiro transformá-lo numa caçamba.
Mas o trabalho fica defeituoso e a solução é aproveitar o material restante.
Quem sabe um carrinho de mão daqueles de ferro? propõe o profissional.

Idêntico resultado. Transtornado, o cliente exigiu reparo e foi informado
que poderia pelo menos dispor de um pé de cabra com as sobras.
Mas até isso deu errado. O que restaria fazer então?
Só posso agora fazer um chuá, disse o ferreiro.
E o que vem a ser isso? pergunta o desesperançado cliente.
O ferreiro vai até o forno, esquenta o pedaço de ferro que restou,
até ele virar brasa. Com uma pinça, mergulha o material ardente
numa bacia de água, que se espalha por todo o lado, fazendo chuá.

Assim também o poema. De um material gigantesco, a língua
em sua estrutura e acervo, nos resta apenas um mínimo som
que se esvai no primeiro minuto em que é ouvido.
Depois nos retiramos, arrependidos talvez do desperdício,
do tempo perdido até chegar à surpresa de descobrir
a essência da palavra, a que dorme soterrada
em nosso porão de badulaques, que jamais consultamos.


 RETORNO -Imagem desta edição: A Forja de Vulcano, de Luca Giordano

29 de março de 2015

TELHADO DE VIDRO



Nei Duclós

Agora que está frio e estou perdido
repetindo o verbo e sem ofício
incapaz de te buscar, mulher difícil
o tempo desistiu do compromisso

Nada fica, teu rosto sobre o linho
a mão que pinta a tela magnífica
a voz que no alto o poema dita
o corpo adaptado ao menor conflito

Os dias colhem teus olhos inúteis
perdidos de mim e do nosso risco
no limo sílabas que não combinam

Cultivo o coração, fonte de um milagre
teu beijo de chuva em telhado de vidro
quebras a tarde com a solidão em riste


24 de março de 2015

AS DUAS MORTES DO POETA



Nei Duclós

Notícias superpostas me levam ao equivoco
teria o poeta morrido no acidente do avião
que saiu de Barcelona para a Alemanha
e caiu de bico no sul da França?

Teria o céu se partido para o chão devorar
o poeta nascido em 1930? Estaria junto
às crianças, tripulantes, adultos
colhidos pelo mesmo destino?

Teria subido ao céu ao lado de todos
mas tendo na asa a marca do poema redivivo
o que ressuscitamos a cada leitura?
Teria sido esse o desfecho da investidura

Os brasões da língua, o cânone seguro
a liberdade de criar outros países
no universo português que nos une
Teria mergulhado em pleno noticiário?

Mas em seguida me corrijo
o poeta morreu em Cascais, de causas
desconhecidas. Talvez de longa poesia
a que levanta voo fora do radar e da escuta

Notícias nos confundem, lemos por cima
como se o mundo fosse sempre o mesmo
em ordem de dicionário. Não fosse o poeta
não seríamos a eternidade, a literatura

RETORNO - Imagem desta edição: Herberto Helder (1930-2015)

23 de março de 2015

THE LAST TYCOON (1976): AULA SOBRE CINEMA



Nei Duclós

O ultimo filme de Elia Kazan, The Last Tycoon (1976) é um filme sobre cinema não porque aborda a indústria cinematográfica e seus principais protagonistas. Seria óbvio demais. É sobre cinema porque, sendo sobre cinema como todos os outros filmes, é uma obra plenamente consciente dessa máxima: o produtor Sam Spiegal, o diretor Kazan e o roteirista Harold Pinter sabem que isso é verdade e explicam porque o cinema nasce de um roteiro, do script, que é completamente diferente de um livro literário. A história narrada por Scot Fitzgerald é adaptada para o mundo do cinema para nos explicar como funciona um filme.


Funciona assim: você está sozinho no escritório,exausto dos duelos do dia. Recolhe-se a um canto da sala e cobre o rosto. Entra uma mulher que não o vê. Ela despeja o conteúdo da bolsa sobre a mesa. Tem um par de luvas, uma caixa de fósforos , duas moedas de dez centavos e uma de cinco. Ela põe de volta as moedas de dez, pega as luvas e os fósforos e vai acender a lareira. Você fica observando a mulher. De repente toca o telefone. Ela atende e diz: Nunca tive um par de luvas pretas. Ela volta para a lareira e então entra na sala um homem.

E o que acontece com a moeda de cinco centavos? pergunta o roteirista que estava assistindo a lição. Não sei, diz o tycoon, interpretado por um razoável Robert de Niro (que foi bem enquanto na mão de bons cineastas, mas decidiu ser um grande ator e só fez caretas desde então). Eu estava apenas falando sobre cinema, diz De Niro. Essa aula de cinema é dado pelo tycoon a um roteirista que tinha vindo da literatura, um retrato do próprio Pinter. Eu não entendo desse negócio, diz o roteirista. Entende porque perguntou sobre a moeda de cinco centavos, responde o tycoon.

O filme é dividido entre as cenas em preto e branco dos filmes que estão sendo produzidos pelo estúdio onde De Niro impera(principalmente na sala da ediição,onde acontece verdadeiramente a definição do produto) e as cenas em cores da vida complicada do tycoon (seria hoje um CEO, um superexecutivo, mas nunca um “magnata” que no Brasil tem outro sentido, de ricaço que não bota a mão na massa, bem o oposto de um tycoon americano, o self made man). O preto e branco mostra filmes interessantes, de final feliz, com grandes astros, conhecidos e cheios de charme. O de cores mostra um insosso big chief (o gigante Robert Mitchum), um cínico lider dos roteiristas (Jack Nicholson, cruel e perfeito), um decadente diretor (o detonado ex-galã de Laura, Dana Andrews), E as mulheres, uma que corre atrás (Thereza Russel) e outra que foge do conquistador Ingrid Boultin, na foto com De Niro, que colocava quem quisesse na tela.E Jeanne Moreau, a estrela decadente que se acha jovem, numa citação explícita de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses.

Entre os filmes produzidos sob a ótica dos negócios e uma vida “real” cheia de violência e desilusão, Elia Kazan nos dá uma aula sobre cinema. O que funciona num roteiro e o que não funciona. Personagens que são desnudados no gap entre vida de verdade e vida nos filmes. Vidas privadas que são apenas esqueletos de sonhos, como a casa em construção à beira mar do tycoon. Poder imposto pelos grandões do estúdio, mesmo contra o jovem gênio, que tem como modelo o garoto de ouro da indústria, Irving Thalberg.

Kazan se amarra na Queda, quando mitos se tornam humanos. Apresenta-os crus, nus, diante das câmaras. Tony Curtis como o big star impotente e que se expõe ao deboche do tycoon. Robert Mitchum sse vingando da inveja de ter criado um concorrente. Em “On the waterfront” o ex-pugulista que se arrepende de ter se vendido. Em "America America", o migrante que morre vendo a estátua da Liberdade. Kazan é hard.


22 de março de 2015

POEMA NÃO SE ESPARRAMA



Nei Duclós

Poema não se esparrama, não monta a cavalo na palavra. Poema é o que dizes sem pensar em outra coisa. Na lata, como pergunta de criança

Choro ou riso não fazem parte do poema, que está circunscrita em sua arena, o verbo em rodízio como bicho de carrossel.

Poema é pedra, não suspiro. É barro, sem o sopro da alma imortal. Datado, morre na praia da tua falta de cuidados com a linguagem. É o tempo, indiferente ao próprio destino. Faça um poema. O resto jogue fora.

Lindo é o teu olhar, não o poema. Bicho assustado, ele foge pelo matagal. Perdes de vista seu rosnado.

O poeta é o espantalho no milharal. Alvo de atiradores de estrada. Veste a roupa dos mendigos. Os corvos, palavras, devoram seu chapéu de palha.

Não dê esperança ao poeta. Ele rola pelas ruas varridas de sentimento. Vai pegar um navio que já se foi, levando seu grande amor.

O corpo atrapalha o poeta, feito de lãs ordinárias. Ele se dá bem nas estradas vicinais, onde ainda passam carruagens.

Peça para o poeta voltar. A tormenta passou, levando de roldão as violetas que o esperavam na parada rústica de um ermo qualquer.

Não te amo, diz o poeta, porque essa é a única frase que lhe resta. Todas as outras foram sequestradas pelas pessoas apaixonadas.

Se quiseres paz, não convoque o poema. Ele te tira da cama, como os aventureiros que carregam continentes no bolso.

Fui dormir, disse o poema. Vê se me acorda quando o dia sonhar com as estrelas.