21 de fevereiro de 2015

GOTA MÍNIMA



Nei Duclós

O vento varre os dias para debaixo do tapete, a memória.

A chuva, a semente, a fruta, o vento: vida em oposição ao deserto.

Encolhi o verso até a gota mínima. Serviu de lágrima para corações pequenos.

Desfilei com meu acervo e só havia tu na avenida. Repartias teu olhar com a Lua.

Mais distante do que a Lua, amor do lado oculto da vida, quando emerges me iluminas ainda mais

És a paixão das palavras. Elas te amam e fazem fila para pousar em ti. São pássaros de seda que eu celebro com o vinho do verso

Vives em mim, no meu sonho. Parece superficial essa fantasia mas é a força do querer que comanda

Falo da boca para fora. As palavras depois pulam de volta. É quando te encontram, flor na última camada.

Acordaste sedenta, fonte seca à espera da chuva, o beijo.

Passas por mim como a caravana no deserto. Carregas água em teu dorso mas não ousas subir na alta pedra onde me encontro, batido pelo vento

Estavas vazia até encontrar o ouro do poema. Nem desconfias que a palavra é tua, suprema.

Só uma porção do teu rosto se revela. Economizas imagem para os momentos anônimos.

O verso custou a ocupar o espaço que o destino lhe reservara. Amargou o exílio antes do abrigo.

Esqueci o que procurava. Voltei ao leito da minha viagem. Nenhuma margem me afasta de ti, tímida barca.

Não sinto saudade. Queria apenas um pouco de nós sobrevoando o tempo e chegando agora de uma longa viagem.

Te arrependeste de citar meu verso. Não importa. Vale tua lembrança, envolta em papel de seda.

Foi só uma vez e foi para sempre. O canto repetido da surpresa, quando súbito nos atracamos. Depois o laço se desfez, mas ficou a marca do teu sonho em meu espelho.

Rede social é a utopia do relacionamento. Uma situação que não se sustenta, a não ser pela vontade do acerto. Um treinamento para que a realidade ceda.

À MARGEM

A palavra nada pode com tanta imagem e ruído.
É prima pobre à margem de quem resolve tudo.
Iluminações de um palco isento de conflitos.
Palavra é encrenca, amor que não se conforma,
quando alguém vai ser feliz batendo a porta.
Palavra não se controla, chuta o balde digital
da aurora e rompe o selo que exige senha
Palavra é manha, perfil de pele sem pintura
Gata em telhado de vidro, machado cego
toca um tambor que só ela acompanha

AINDA DORME O DESEJO

Ainda dorme o desejo
Não acorde com teu beijo
Cuide da pele diante do incêndio
É possível que haja flor onde flutuas
De ti vem a água que me inunda
as curvas da fantasia, do trêmulo respirar
Mel espesso, feminina até o último
sol do universo, até nos civilizar
no encaixe perfeito

SOPRO DE AVENTURA

As palavras fazem fila para ir embora
Tomam assento no poema e se mandam mar afora
Conversam entre si fazendo barulho
Escrevo no pano das velas até anoitecer
quando desce o silêncio sobre as dunas de sal e água
Não são as galés que comandam este navegar
os remos ficam à toa e os braços repousam no convés
há sinais de aves próximas à proa. É a terra que se avista:
o coração de quem lê, coberto de musgo, a oferecer continentes
habitados por nações que desconhecem o rumor das guerras

SEM RETORNO

Namoro sem retorno,
segredo em ponto morto,
rejeição no comando,
flor no sumidouro,
trigo que não se colhe
carta fechada em sótão,
pele perdida à toa
solidão erma de esporro,
comunhão só com o espelho,
amargor que não termina.
Por que então persiste o amor,
lampião de gás que não ilumina
estranho luar na última esquina
porta fechada em ruas de exílio
corpo caído em redemoinho
surto de sonho, enredo, conflito
espera tardia de renascimento
começo do dia jogado no lixo
semente teimosa fora de rumo
toque da sorte na dor do destino?

VIAJANTE

Estavas no rio, de águas marrons,
em dia tempestuoso
na véspera de uma viagem.
Te despedias com todo o corpo
da solidão, tua companhia,
pois decidiste que voltarias a mim.

PALCO PERFEITO

Presente que concentras em ti
dorso sobre a saia rodada
onde cultivas momentos
que viram folhas
Palco perfeito de uma luz
que geras dentro
enquanto ouço suspenso
o encanto do próximo gesto



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