30 de setembro de 2024

TUDO CONTIGO

 Nei Duclós 


Tudo o que você faz eu gosto

Tudo o que você é eu curto 

Tudo o que você diz escuto

Tudo o que você sonha abraço 

Tudo o que você esquece passo 

Tudo o que você lembra assumo

Tudo o que perde procuro

Tudo o que você acha encontro

Tudo o que você joga apanho 

Tudo o que você quer eu tenho

Tudo o que você nega esqueço 

Tudo o que come eu sirvo 

Tudo o que você sofre apago

Tudo o que você ganha eu somo

Tudo o que você toca eu tremo


Nei Duclós

27 de setembro de 2024

FATURA

 Nei Duclós 


Flagrei-te moça enquanto eu veterano 

O tempo congelou teu rosto

E em mim escavou um reino

De vestígios sem importância 


Não importa, tudo é virtual neste século torto

Vivo no troco depois de pagar a conta


Minha esperança é namorar-te primeiro

Apagando a fatura do nosso desencontro


Nei Duclós

26 de setembro de 2024

 Quando partimos, deixamos o coração na chuva. Ele é anfíbio, respira por memórias.

Nei Duclós 

AMOR É VONTADE

 Nei Duclós 


Teu encanto é uma fina camada 

Que não sai com a roupa ou a maquiagem

Gruda como segunda pele

E assim permanece resistindo ao assédio 


Desperta contigo intacta

Apesar do gigante ao teu lado

Que não vence no auge do amasso

Se entrega, e o encontro dá certo


Amor é vontade

Tua essência é o que te cobre

Esse véu, segredo de seres tão bela


Nei Duclós

ACASO

 Nei Duclós 


Escapa de ti o que pensas ser destino

Algo substitui

Um susto, um desvio, uma sílaba 

Vida é o que o Acaso apronta

Quando atiça


Nei Duclós

21 de setembro de 2024

EM SEGREDO

 Nei Duclós 


Selecionei um trecho da tua imagem. Aquele em que te entregas em segredo.


Eu ia dormir, mas pensaste em mim. Não resisto a um chamado em voz alta.

    

Queres dar um tempo? Me passe alguns anos.


Como sou gigante, me tornei exilado da doçura. Então surgiste, flor de seda pura.


Agora sim, durmo contente. Fiz versos para povoar teu sonho.


 Como na tua mão, fada de outro mundo. Sou tua criação, ser errante.


Crio a esmo. Trigo com ervas do campo. Depois não colho, porque cansa muito.


O tempo nos reserva uma surpresa. Viajamos sós e nos reconhecemos no convés, depois de um cinema.


Você é tão adorável, estrela cadente.


Não sei o que estou pensando. Não costumo olhar o rastro do meu barco a remo.


Tens aquela postura de ter desistido. Mas te empinas para a frente, perfil de seios. Assim te entregas quando recitas o poema.


Não tenho profundidade, tenho cataventos.


Quando me conheceste, eu era outro. Agora que és outra, descubro que sou aquele.


Sou feito de abandonos. São tantos, espalhados por toda parte, que fácil me encontras.


Para não esquecer, me beije. A memória mora nessas besteiras.


Faça outra coisa. Que eu farei o mesmo.


Vou te mostrar minha coleção de borboletas. Só que todas voaram.


Todas as fotos são antigas. Somos um álbum de retratos.


Digo coisas sem sentido porque assim me sintonizo com vibrações fora do circuito.


Se és amor, levante a mão. Eu aponto em meu caderno de esperanças.


Nossa palavra é limitada pelo que somos fisicamente. Para extrapolar é preciso jejuar e só depois de 40 dias comer alfinetes.

 

Não somos objetos. Somos sujeitos ao desejo.


Mas vai piorar. Agora vou aparecer gigante sobre a cidade, como Godzilla cuspindo fogo. Saia do cinema correndo.


Também não gostei quando alguém me apresentou dizendo meu nome para mim mesmo. Achei over.


Perdeu a graça quando me viste. Faltava o rosto imaginado. Deste as costas e eu lá estava, imagem configurada pelo teu espelho.


É uma pena seres minha amiga. Poderíamos exercer o vale tudo da luta livre.


Vão rir de ti, não revide. Há mais graça na planta que imaginas florir do que na falsa armadura da razão e seus convites


Manténs distância lendo poesia. É um truque do teu não, lisinha.


Se perguntarem quem és, diga: solidão. Não vão acreditar, estrela do mar.


Fui rei para te fazer a vontade. Depois abdiquei, quando viraste voluntária na colheita do trigo.


Venci a guerra mas não ocupei o trono. Fiquei contigo, desvio de um exército.


Diga ai que eu fico. Não resisto ao teu capricho.


Lembre da beleza quando eu for embora.Peguei emprestado de tuas asas.


Aguardas, soberana, que eu me desperdice. Depois me acolhe, aos pedaços, em suas asas de espuma.


Meu poema reza no crepúsculo.


- Sou muito perigoso, disse ele.

- Morres de medo de ti mesmo? disse ela.


Nei Duclós

19 de setembro de 2024

COFRE

 Nei Duclós 


Guardo o que descubro pois não vale a pena 

Anunciar os segredos mais profundos

Não se percebe o que muda o mundo

Ou então há medo na imobilidade


Acumulo insights que bem poderiam

Fazer a diferença em vários assuntos

Pode ser soberba, penso usando o freio

E me calo no calor dessas verdades


Há também a chance de outros dizeres

Que acertam o ponto que vislumbrei sozinho

Melhor então deixar que o vizinho 

Ganhe o crédito que jazia abandonado


Assim me manifesto, recolhido a tempo

Sem usufruir de inúmeros presentes

Passo pela vida anônimo e frio

Meu único prêmio é manter a fonte

Das revelações dentro de um cofre


Nei Duclós

18 de setembro de 2024

TROCA

 Nei Duclós 


Quero voltar, só o tempo é seguro

Porque está feito como um fruto maduro

Dia perfeito em que tínhamos margem

Para o certo e o erro que enfim sobreveio


Quero voltar estendido no pampa

Lençol onde dormem os planos do vento

E o fogo se aquieta na boca da noite

Barulhos de bichos nas dobras da sanga


Sei que é mesquinho o desejo de infância

Depois que perdemos as amarras da terra

Prometo uma prenda ao chegar de surpresa

Em troca o perdão e o amor em sossego


Nei Duclós

ESQUECIDOS

 Nei Duclós 


Tudo o que vemos jogamos fora

Não no esquecimento

mas na memória

Guardamos o tempo sem serventia

Damos adeus todos os dias


Tudo se repete, daí a indiferença 

Minha tia deixou um estranho legado

Pilhas de caixas e vidros amontoados 

Tinham tampa, se justificava

Poderia precisar em determinada hora


Nunca usou tantos guardados 

Era una forma de grudar momentos

Que no fim se foram, como sempre


Dizem que no desfecho passa um filme nos olhos

Toda vida em capítulos de uma série única

Talvez nos reservem algo inédito 

Imagens que perdemos e que um dia voltam

Para nós, os esquecidos da miséria 


Nei Duclós

16 de setembro de 2024

RELENTO

 Nei Duclós 


Dormimos ao relento de um amor no começo. Complicado jogo de cobertas. Acordamos em alto mar, mortos de espanto.


Domar a vontade de perder-me. Mergulhar na luz que te desenha


Venha dizer, maçã e gerânio. Sopro macio, que cruza o oceano.


Nei Duclós

ESCUTO FLORES

 Nei Duclós 


Escuto flores ocultas na estação

Esperam passar o fogo nos jardins

Sabem que morrem se emergirem inseguras 

No mundo cultivado pela dor


Mas não suspiram nem gemem na opressão 

Das grutas sobre as nuvens invisíveis 

As que tardam a chuva


Dão voz ao vento com tontos perfumes

Convidam o céu no rumo do futuro

Possuem as palavras há tempos esquecidas

Paz, prazer, reflexão e vida


Só se concentram no frágil existir 

E isso é música composta na mudez

Parece estranho mas é assim que funciona

Mesmo na loucura e a insensatez


Eu ouço porque lembro como era

Na minha infância a doce primavera

E hoje na idade adulta ainda procuro 

onde estarão no tempo terminal


Elas se situam no meu pobre coração

Firmes no sonho apesar de todo o mal


Nei Duclós

DECISÃO

 Nei Duclós 


O que pode a palavra diante do assassinato?

O que pode o verso sem nenhum aparato

A não ser o poema e seu passo em falso?

O que pode o amor diante da fraude?

O poeta em adiantada idade?


O que pode a verdade se não acontece

Na mente do próximo e na vida afora?

O que pode o sonho em meio à catástrofe?


O que pode a oração sem a fé que a sustente?

Pobre coração que no tempo sofre

Quem virá em socorro se meu gesto tarda?


Devo uma resposta e para isso preparo

Não uma guerra mas algo mais forte

Minha decisão de não ser covarde


Nei Duclós

15 de setembro de 2024

ORAÇÃO DOS MELHORES DIAS

Nei Duclós 


Que o Senhor nos proteja da tristeza

Nos proteja do pânico 

Da desesperança 

Nos proteja do remorso e da raiva


Que nossa fé não seja credulidade

Que o amor não ceda à indiferença 

Que o crime se afaste

Que a vida se transforme 

Que o hábito não vire rotina

Que possamos exercer a arte

E viver da excelência do nosso ofício

E que nossas ações sejam livres e solidárias


Que o desejo não nos transtorne

Que o sonho nos ilumine

Que os dias sejam nosso avanço 

Em direção ao humano destino da salvação 


Assim seja


Nei Duclós

13 de setembro de 2024

SUMIDA

 Nei Duclós 


Faz o oposto do que digo

faz por gosto, faz por birra

me condena a ver navios

Some quando mais preciso


Nei Duclós

12 de setembro de 2024

VIVO

 Nei Duclós 


Vivo porque resisto e é bom

Porque tenho o dom

De ficar vivo


Da fase terminal desisto

Não quero dar o exemplo do final


Não que escolha o riso 

Como antídoto da dor

Todo drama é comédia 


Vibro na trama desta peça 

Sem valor

O que parece acabar começa 


Vivo porque a vida é um sopro

Como no tango Volver


Nei Duclós



PRESENÇA

 Nei Duclós 


Chegou sem pedir licença 

Com os ventos da manhã 

E ficou para sempre 


Não é apenas mulher

É um tormento

Quem pode com tua presença?


Passas a limpo

Meu pobre universo


Nei Duclós

PRISÃO

 Nei Duclós 


Ela me ensinou a cantar

A escrever versos de amor

A dizer, mesmo que doa

A sonhar sem ter vergonha


Depois foi-se embora

Pássara migratória 

Deixando-me só 

Com as lições aprendidas


O que faço com o que sei?

Aluno expulso da escola

Não há serventia

Para quem perde alguém 


Uso na poesia

O que ficou de refém 

Esse coração condenado

À prisão da liberdade


Nada possuo

Além da verdade


Nei Duclós

8 de setembro de 2024

DOMÍNIO

 Nei Duclós 


Não pense mais em mim, desista

Sei que é dispensável este aviso 

Detonamos a relação, deu tudo errado

A idade me expulsou do paraíso 


Não pense que direi meu endereço

Para vires me consolar na mocidade

Dar tapinha no ombro com a mão cínica


Tenho dignidade, fico na minha

Aprendi a dominar a tempestade 


Nei Duclós

TODA TROVA

 Nei Duclós 


Todo poema é de amor

Todo verso beija a boca

Toda dor vem do deserto

O sol é meu professor 


Navego em campo aberto

No corpo nasce uma flor

Amansei todas as feras

Antes de pedir-te a mão 


Escrever não é a meta

Mas viver ao teu comando

Planto trigo onde há pedras

E só canto sem motivo


Não é fácil ser cativo

Da mulher ou vocação 

Ao mesmo tempo ser livre

Escolho o que molha o chão 


Nasci num sopro de brisa

Nas sombras de uma floresta

Fujo do que não presta

Toda trova tem valor


Nei Duclós

TOBOGÃ

 Nei Duclós 


Fiz um monte de loucuras 

Não sentia dor nenhuma

A idade me curou:

Adicionei uma artrite 


Dormi em delegacia

Cabine de caminhão 

Desviei do meu caminho

Por obra da poesia 


Diziam corte o cabelo

Estavam com a razão 

Hoje corto gurizinho

Sou candidato à calvície 


Do topo para a planície 

A vida é um tobogã 

Abracei dura rotina 

Por sorte sobrevivi


Nei Duclós

3 de setembro de 2024

TORTO

 Nei Duclós 


Se o poema nasce torto

Por força da escuridão 

Rebento sem nada em torno 

Faca cega, mudo esporro 


Ele depende da sorte

De ter sol em sua espera

Que tenha leste no norte


Que encante, mesmo ferido

O parto o torna mais forte

A vida tem perna curta

Furta cor, um pobre sopro


Dizem não sobrevive

Não contam com o poeta 

Pé quebrado, intacto corpo


Nei Duclós

28 de agosto de 2024

POR FORA

 Nei Duclós 


Abandonei as notícias

Deixei-as longe de casa, acima do muro


Espero que sejam felizes

E se desenvolvam e se sustentem

Com suas cargas de fantasias

Diagnósticos , sinucas de bico

E ressuscitem para continuarem vivas


Eu prefiro ser o xingamento favorito dos meus pares 

O de ser um jornalista mal informado

O cara do copy

O pauteiro sem futuro

O sujeito que não soma

Apenas faz número no circuito sagrado das pensatas e redações prestigiadas 


Sou o cara das atas

Que reporta as reuniões dos pássaros


Nei Duclós

26 de agosto de 2024

SELFIES

 Nei Duclós 


Essa felicidade em grupos ou solitária 

Exposta como carne ao sol

Não desejo nem admiro

Deixo estar senão complico

Não tire o mimo do colo alheio


Não quer dizer que implico por prazer

Talvez seja o repeteco em tantos perfis

E cada vez mais raro o hábito de não sorrir 

Por qualquer falta de sentido 


Não significa que toda a felicidade seja ilegítima e absurda

Tudo pode ser

Só que descobri

Que a verdade tem perna curta


Nei Duclós 

CASCA VAZIA

 Nei Duclós 


A casa é uma casca vazia

Quando os filhos se retiram

E ficamos sós 

Com nossa vida mínima 


Fazer a comida, varrer o piso

Conversar sobre as notícias

Usar todas as roupas em dias de frio

E temer a noite 

Canteiro da memória 


Vivemos então o futuro tão anunciado

Quando achávamos que se mantinha uma porção da realidade

A mesma que nos criou e hoje é passado


Dizem que tudo é ilusão

Mas não é verdade

O mundo é feito de granito

Agora, amanhã ou antes

E não de vento


Somos formigas

Sob os pés do gigante

O Tempo


Nei Duclós

NO CHÃO

 Nei Duclós 


Terceira idade é catar coisas no chão 

Que escapam da frouxa mão 

Do pé indeciso, do corpo em torção 

Da falta de alcance, da pobre visão 


Mesmo sem pressa tudo fica liso como um sabão 

Foi-se o tempo dos dez braços em ação 

Agora é um por vez, como na fila do pão 


Não se abaixar não é opção 

Deixar como está, melhor não 


Nei Duclós

24 de agosto de 2024

PRENDA

Nei Duclós 


Faça de mim a sua diferença 

Venha, rosa e avenca

Dupla dosagem de espanto

Pele e perfume 

Flor de presença 

Prenda-me

Prenda


Nei Duclós

GOTAS

 Nei Duclós 


Tenho pouco conteúdo

Vazo o que acumulo

Fonte inversa de água da chuva

Transbordo em jarro miúdo


O que resta são poemas

que jazem no fundo

Gotas com reflexos da lua


Nei Duclós

MISTURA

 Nei Duclós 


Queria ser feliz, destino amado

Ou pelo menos contente, muito obrigado 

E não partir sem sair de casa

Ou buscar o tom desesperado


Afaste-se de mim, amigo certo

Nada tenho a dizer, não fique perto

Erro por viver tamanho escravo

Ando como alvo no deserto


Pode parecer dor em excesso

Mas não sinto nada, apenas passo 

Ninguém me convence do contrário 

Escolhi meu lado e ele arde


Queria ser feliz, sou machucado

Mas não se impressione com a voz bizarra

Aprendi a misturar tantas palavras

Cante que talvez eu pare 


Nei Duclós

23 de agosto de 2024

ÍNTIMA

 Nei Duclós 


Secreta flor que me devassa

Sem se mostrar, fechada gruta

Que não pergunta nem se cala

Muda borrasca obscura 


Quem dera fosse explícita 

Posta em chapéu na carruagem 

E não esse jogo que adivinha

Nenhuma chance para o meu laço 


Mas és coberta por palavras

Difíceis de dizer em testemunho

Juras de amor, vazia praça 

Estátua de sal, doce ressaca


Neste jardim entro com o barro

Húmus sem dor, fronte de cal

Não vês que a pá debalde cava

Busco o tesouro, raiz e haste


Íntima flor, perfuma a graça

Por tua causa aguardo a balsa

No rio perfeito da nossa lágrima 


Nei Duclós

22 de agosto de 2024

VIDAS PASSADAS

Nei Duclós 


Vidas passadas são as que vivemos em anos anteriores à terceira idade

Puxamos as cenas pela memória, hipnose do tempo sem misericórdia


Não fomos reis ou vassalos nos séculos ancestrais

Mas criaturas datadas 

Nas mãos frágeis e poderosas dos nossos pais

Anjos humanos da providência da terra


Deus não interfere na guerra

Deixa que se matem

Depois recolhe quem lutou sem chance de sobrevivência 


Pergunte quem sou

Sou a criança que se fez homem

E hoje lembra

Minha lição permanente de esperança


Nei Duclós

16 de agosto de 2024

O MAR INVADE A PRAIA

Nei Duclós 


O mar quer de volta o que perdeu

E também um pouco mais, e muito além 

O abuso que alargou todas as praias

É a ambição que ofende Poseidon


O mar cedeu a Terra ancestral

E impôs areia na espaço terminal

Hoje invade as cidades forasteiras

Não pisoteie o sagrado e seu poder 


Talvez não seja vingança do gigante 

Mas amor por teu corpo de esplendor

Quer tirar teu maiô, por isso expande

O namoro que cultivas ao redor


Nei Duclós

15 de agosto de 2024

TODOS SE FORAM

 Nei Duclós 


Todos se foram e fechamos a cidade

Cuidaste dos jardins eu das ruas largas

Aviões inimigos nos espionaram

Mas sumiram depois de bombardear as águas


Foi ideia tua permanecer na casa

Tínhamos um terraço aberto para a mata

Hoje tudo é cinza, menos tua palavra

A que recitas em forma de parábola

Inclui a profecia da paz ainda nas fraldas


Faço a ronda até o limite da estrada

Mantenho longe os predadores, lobos e águias

Pões o véu e visitas a Igreja no fim da tarde


Lá nos casamos, doce resistência da coragem

Que seria de mim disperso em qualquer front

Despedaçado pela despedida?


Por isso mantenho posição

Enquanto o vento bate no campanário

O som é de solidão mas somos a vigília


Nada poderá contra teu rosto grave

O olho no horizonte, a mão que acena ao longe

Para a visita de um milagre, a liberdade


Nei Duclós

13 de agosto de 2024

PERMISSÃO

 Nei Duclós 


Permita-me sonhar, destino mau

Já me comportei em teu curral

Nunca me queixei, porque é normal

Querer ser rei do meu quintal


Agora posso, vi um sinal

Do que chamei ressurreição

Reparto o pão, pobre maná 

Na multidão que não virá 


Não importa a solidão do meu olhar

Era um deserto o que esperei 

Anjos libertam lenços ao céu 

Acenam para essa desesperança 


Deixa eu sonhar, portal eterno 

É terminal tanta certeza

Depois as sobras vire do avesso

Pois cumprirei meu sacrifício 


Não ser lembrado

É só o que peço 

Farei segredo desse desfecho

Volte para o mar onde começo


Nei Duclós

12 de agosto de 2024

CÂNONE

 Nei Duclós 


Idade provecta, tempo de soneto

Acesso ao cânone de assombroso espectro

Clássico acervo de um fazer completo

Barco pleno no navegar do gênio 


Conjugar Camões do século quinhentos

Esquecer lições de Cabral de Melo Neto

Recolher o sumo de antigo vinhedo

Ser de outra espécie, perfil de estátua grega


Sempre e qualquer arte cuida de si mesma

O ofício prende o ourives no segredo 

Não se descobre o truque, a não ser o próprio monstro


Ninguém dá bola mesmo para o palimpsesto 

Deixam que se cale o artífice imodesto

Que só expõe o ouro quando já vai tarde


Nei Duclós

6 de agosto de 2024

ESPÍRITOS NO JARDIM

 Nei Duclós 


Espíritos sentam nas cadeiras vazias do jardim

e lançam para dentro de casa olhares limpos

noto que não se importam com o sereno

e ficam imóveis em vestes brancas de linho

algodão que cobria o açúcar nos cotonifícios


Reconheço aquela antiga tia, a avó que nunca vi

parentes remotos de mundos perdidos, brasis

varridos pela chuva e submersos nos quintais

com nomes hoje improváveis como Zaida, Tita

e aquele que recitava os Sertões para as visitas


Nada lembro de ti, ancestral da minha origem

por isso meus descendentes vão se confundir

achar que a família começou comigo

Serei uma espécie de patriarca sem prestígio

nascido entre quinquilharias urbanas e telecines


Nada daquele perfil bíblico dono de sesmarias

que apascentava populações com um só grito

mas alguém que usava calça brim coringa

e brincava de mocinho sonhando com estrelas

sem prestar atenção nas heranças de sangue


Serei como o fundador de uma nação vazia

sem História suficiente para alimentar os mitos

a não ser que eu desenterre as estátuas de vidro

que se quebraram na avalanche de avenidas

e retome as histórias narradas ao redor do fogo


Serei eu então o espírito a ocupar lugar no jardim

a lançar o olhar sem mácula para a casa do futuro

onde crianças verão uma sombra entre relâmpagos

vou contar o que vivi na fantasia, já que a vida

só teve graça quando fantasmas visitavam o menino


Nei Duclós  



5 de agosto de 2024

SINAIS

 Nei Duclós 


Dois quero quero aos berros

Na praia que oculta o mar

O que diz seus desesperos

Quais sinais riscam o ar?


Os generais dos romanos

Pediam para decifrar

O voo dos passarinhos 

Só depois iam lutar


Espero boas notícias 

Enfim assinem a paz 

Que partirei de fininho

Não estou mais, irei sestear


Nei Duclós

SONHOS

 Nei Duclós 


Tenho sonhos que não gosto de lembrar

Edifícios vazios à beira mar

Com encontros 

que mal me cumprimentam


Situações recorrentes de um lugar

Nenhum aviso ou profecia a se cumprir

Sem poderes a não ser me carregar

Para vidas paralelas sem sentido


Prefiro deixá-los onde estão 

A dizer o que não ouço ou esqueço 

Com segredos que talvez tenham guardado


Já basta a vida e seus espinhos

Com tanto rio a invadir as margens

Pontes que caem, guerras sem fim

E as notícias cada vez mais impossíveis 


Saio da cama e enfrento o vento frio

A mente retorna do tempo que perdi

Criando histórias em vez de descansar

Sou um autor perdido entre roteiros

Dormindo filmo, depois jogo no lixo 


Nei Duclós

4 de agosto de 2024

CONVERSA

 Nei Duclós 


Não interrompa meus pensamentos

Disse a nuvem para o vento

Estou escrevendo, seu nojento

Vou chover no balanço que fazes no arvoredo


Vou aparecer no céu encoberto

Espairecer enquanto sopras a esmo 

Sem ninguém saber a origem dos teus movimentos


Eu reflito, mesmo passageira

Digo coisas no crepúsculo 

Enquanto tu varre a terra incomodando o tempo


Ninguém te vê, duende

Enquanto eu sou pintura e espanto

Tenho um corpo, mesmo evanescente quando chegam perto


Não gosto se me dispersas

Prefiro se me concentro

Tenho presença, e nada serias se não fosse eu a servir de palco 

Para o vendaval da tua tormenta


Nei Duclós

PROJETOS

 Nei Duclós 


Não levei adiante nenhum projeto 

Ficaram todos no ovo de antigos ninhos

Não levantaram voo nem se reproduziram

Restaram apenas ruínas e alguns remorsos 


Só o que vingou foi o poder do Outro

Que roubou ideias para jogar fora

O Mal com método tem permanência

Somos dispersos,  criação suspensa


Pior que não cabe qualquer lamento

Eu costumava  chorar, hoje não ligo

Pairo acima da minha ionosfera

Preparo cataclismas com meus restos


Nei Duclós

1 de agosto de 2024

REBENTO

 Nei Duclós 


Seleciono o poema dispensando o resto

Não a gordura, o lixo, o que não presta

Mas o resto do poema se ele fosse feito


Um drama, uma comédia, um sentimento

Remorso, memória ou sonho morto


Fica assim livre da sua essência

E pode sobrevoar em outra esfera

A palavra viva no pátio do colégio


O olhar impregnado de fagulhas

O orgulho de um rebento siderado

O poema, esculpido no granito

Desaforo que solto na cidade


Nei Duclós

31 de julho de 2024

CORRETA

 Nei Duclós 


Se eu pintasse tua imagem com as cores da época 

Nos moldes que todos consideram correta

Onde destacaria teus virtuosos aspectos

Afeto aos animais e caridade convicta 

Além da atitude diante dos atos maléficos 


Então eu poderia ser aprovado na certa

Dono de uma fama de igualdade diversa

Respeitoso varão de elegante postura


Deixaria de ser esse asqueroso duende 

Que não se comporta nem que a vaca tussa

Primeiro conviva devorando a festa

Um bruto terminal ďe sebosas vestes


Sem esse expediente serias tu mesmo

Assumirias teu perfil sincero

Sem frivolidades de madame de porte

Pegando o que não deve nas vernissages

Tropeçando no salto bem miserável


E se eu contigo escolhesse o erro

Deixariamos de ser humanos, casal sem futuro

Recolhidos no sótão com uma pizza vencida

Sobrevivendo só de amor e de brisa 

Longe da política e da vil estratégia 

Nos braços da noite com lua e estrelas 


Nei Duclós

30 de julho de 2024

IRONIA

 Nei Duclós 


Ironia é planta estranha de raiz profunda

Que medra em terreno de úmida procedência

Fatos, graça, vingança 


Para entender não basta os sentidos

Mas uma predisposição nascida na tradição

Ou na captura de superfícies lisas da imaginação 


É quando a estranha planta produz flor, o riso

Barulhento ou mudo

Mas de natural percepção humana 


Nei Duclós

NO MEIO DO TEMPO

 Nei Duclós 


Aos 75 acham que estás velho

Por ter ultrapassado a meia idade

Mas não te sentes na terceira fase

Da vida que se encerra antes da hora 


Também não ficas preso no caminho

Entre a eternidade e a memória 

A lógica te escapa

Como farol de carro que some na neblina

Observas o mundo, agora pelo avesso

Como roupa fina posta às pressas

Antes da catástrofe 


Não tens certeza sobre o desfecho dessa trama 

Permaneces na cama, precoce aposentado

Sonhas acordado, como alguém de véspera 

Em longa data na espera de um tempo inédito 


Nei Duclós

29 de julho de 2024

SUSTO

 SUSTO


E se por um decreto não houvesse mais amanhecer?

Um poder secreto não deixasse o sol nascer?

O mundo quieto sem poder mexer um dedo

O Tempo imóvel do avesso e com medo 


Para onde iria a comunhão da antiga aurora?

Seria ficção de uma História marginal

Ou lutariamos para erradicar o Mal

Que seleciona sem nos abastecer

E que nos tira alegando ser destino 

Nos convencendo que sempre foi assim

E se não foi melhor que se combine

Essa nova eternidade

De imposta rebeldia


E não adianta gritar para o Divino

Porque a Luz migrou feito um peregrino

E não teremos mais canto de passarinhos 

Anunciando o que deixaria de existir


Mas duvidamos que isso possa se abater

Em nossa vida que não cansa de sofrer

Basta esperar que a noite amadureça 

E não se esqueça da vocação solar

Que toda treva tem no ventre e na cabeça 


Eis que veio a estrela depois de se esconder 

E nos dar um susto fingindo não voltar

Só para que a gente confesse nosso amor

Pela iluminação que verte do Senhor 


Nei Duclós

27 de julho de 2024

TORMENTA

 Nei Duclós 


A semana passou voando

Nem me dei conta de tanto

Precisei mudar os planos

Para que caibam no tempo


Achei que eu estava atento

Aos dias que se acumulam

Na estante em movimento

Mas era só um engano


Quando vi já era tarde

Diante do bate-pronto

Em vez de agir me recolho 

E noto o trem se apressando 


Moro na estação antiga

Com um relógio suspenso

Um sino que já não vibra

E multidões esperando


O tempo voa para longe

Com seus motores de fogo

Nós ficamos sem apoio

Nas madrugadas de sombras


Passou depressa esse lance

De não viver para sempre

Existimos sem descanso

Fixos numa tormenta 


Nei Duclós

26 de julho de 2024

NAMORO

 Nei Duclós 


Tropeço só para atrair mulher bonita

E pegar da mão com um ar aflito

O momento em comum transmite o mimo

Que o terno coração solfeja vivo


Você finge que acredita na armadilha 

E sorri compactuando ajuda

Para a plateia de desconhecidos

Que admiram o casal de improviso


Estamos namorando firme, bem campantes

mas ainda não somos amantes, digo num aviso

no almoço festivo das familias

Garanto, entretanto, que está a caminho

O amor que procuro ao andar sem aprumo


Nei Duclós

24 de julho de 2024

NA RODA

 Nei Duclós 


Não leve a mal o que eu digo

Falo no bom sentido

Não se sinta ofendido

Palavras tem seus caprichos


ÀS vezes um elogio

Com pitadas de ironia

Só para tirar a pompa

Da homenagem ao amigo

Pode ferir sem querer 

Basta perder-se no estribo


E não adianta escolher

A mais direta assertiva

O verbo gosta de luxo

E adora ser preferido


Nem devo achar que a trova

Por mais enxuta e sem brilho

Esteja a salvo das manhas

De um repente nativo


O certo é  ficar nas pilchas

Sem querer romper a roda

Passar em silêncio o amargo

Atiçando quieto as brasas


Assim nos entenderemos

Como compadres na aurora

Se preparando para a lida

Do rodeio lá de fora


Um guasca nunca se afoba

Sabe que chega a hora

Em que a adaga do inimigo 

Pode atingir a carótida 

Então vou gritar em guarda!

Para marcar um aviso

E te deixar com recurso

Diante do sacrifício 


E tua resposta será 

Depois de todo o perigo

Um aceno na cabeça 

Que agradece sem ruído 

Sem precisar testemunha


O valor de ser conciso

É o que tem mais qualidade Nenhuma literatura 

Ganha da nossa amizade 


Nei Duclós

PULSO

 Nei Duclós 


Não me preocupa o acesso à grande arte

Ele estará aberto e por toda parte

Não secará o canal que aponta o norte

Na bússola do verso ou mapa de estrelas


Não sinto medo de perder-te, portal do tempo

Posso passar ao largo por ser disperso

Mas sempre acharei um meio de cruzar o espelho


Falo por amor, não por soberba

Saber que fica além dos nossos termos

Algo maior que nos alimenta


É a certeza de termos pulso nesta tormenta

Sem fôlego, mas o coração a pleno


Nei Duclós

22 de julho de 2024

UM PASSO A MAIS

 Nei Duclós 


Um passo a mais faz diferença 

Quando caminhar é uma proeza

Ando sem pressa dobrando os joelhos

Penitente fisioterapeuta


Economizo espaço nos atalhos

Para evitar cair ou ter cansaço 

Já sei onde tudo fica pronto

Sobre a mesa ou dentro do armário


Difícil é localizar as prendas

Par de óculos ou frigideira

Quando elas somem e reaparecem

Fixas no lugar de sempre


Aprendi a memorizar o ponto

Onde se situa o que estou querendo 

Como aprendi tudo na decoreba

Basta perguntar aonde


Todos apontam o que deixei disperso

Nesta vida cheia de mistérios 

Digo então que não estou surpreso 

Eu já sabia, faltava mais um passo


Nei Duclós

ESCONDIDA

 Nei Duclós 


Se escondes teu rosto com flor 

Para disfarçar a beldade

É porque és meu amor

E não quer que ninguém saiba


Como eu nesta jornada 

Que evito mostrar a cara 

Não digo o que faço quieto

A identidade raspada


Se um dia me procurarem 

Estarei fora da área 

Junto à flor que te resguarda 

Canteiro em beira de estrada 


Nei Duclós

PERTENÇA

 Nei Duclós 


Não sei o que sinto ou penso

Por isso acho que escrevo

Quando no fundo me fecho


Não tenho a chave do cofre 

Onde guardo meus segredos

Na contra-luz adivinho

Oculto palimpsesto


À confusão eu pertenço

Mudando o perfil do verso

Escapo quando perguntam

Se sou eu esse de fato


Sou eu mesmo mas disfarço 

Uso máscara de gesso

Atravesso as geleiras

Sem cobertor ou choupana


Por que confesso meu erro 

Sem olhar as consequências?

Melhor seria manter-se 

Remando em água corrente


Mas a verdade convence

Ao levar-me sem descanso

Que ninguém sabe ao certo 

Por que raios nós vivemos


Nei Duclós

QUINTAL

 Nei Duclós 


Na frente tenho um jardim

Nos fundos tenho um pomar

Planto babosa e jasmim

Colho laranja e romã


Se depender de mim

Não saio deste lugar

Ainda sou um guri

Que brinca sem reclamar


Não devias ser assim

Dizem para me chatear

O mundo é o seu destino 

Não perde por esperar


Minha vida é aqui dentro

Lá fora, outros quinhentos

Prefiro ficar no centro

Nasci para ser semente


Nei Duclós

20 de julho de 2024

MISTURA

Nei Duclós 

Troco a noite pelo dia
Durmo na hora do almoço 
Acordo perto da lua

Vou trabalhar na madruga
Visto pijama na esquina
Puxo coberta às duas
Da tarde fria sem nuvem 

Um hábito tão bizarro
Surgiu sem nenhuma culpa
Talvez seja o meteoro
Ou as mudanças do clima

Todos notaram mas calam
Respeitam o louco da rua
Tomo banho de caneca
Quando bate a ventania

Depois volto para casa
Cumpro rígida rotina
Bato relógio do ponto
Na cama onde fantasio

Sou o próprio vagabundo
Na cidade dos distintos
Todos jantam no crepúsculo
Eu lancho na Ave Maria

Café preto com torradas 
Num avesso de alvorada
Meu corpo é roupa de gala
Minha sesta é  a poesia

Nei Duclós

19 de julho de 2024

REBENTO

 Nei Duclós 


O Tempo é pura maldade

Te ilude na mocidade

Apronta no fim da tarde


O Tempo é só conversa

Promete quando começa 

Cumpre na terceira idade 


O Tempo inventa a memória 

Depois esquece

Desperta a porção de fera

Numa hora de doçura 


Ele só teme o poema

Que lhe aplica um flagrante

E explica porque fabrica

Depois que tudo acontece


O Tempo começa antes 

De existir nascimento

Rebento que se desenha

No vento que mexe a saia


Nei Duclós

17 de julho de 2024

JURAMENTO

Nei Duclós 


Não é sincero o amor que se declara

Ele sente vergonha quando forçam a barra

Pedindo que registre o que o peito esconde 


Amor é bonde que escolhe a liberdade 

E trafega fora dos trilhos, águia sobre o monte

Anda de banda sem tocar o banjo

Cantor solo de blues, longe do público 


Rosna quando ouve um eu te amo

Sabe que é falso porque amor não fala 

Cala o que mata num relance 

Quando me olhas perdida no horizonte 

Silvo de cobra, mudo juramento 


Nei Duclós

14 de julho de 2024

VIZINHOS

 Nei Duclós 


Prefiro não entrar no teu aprisco

Onde cultivas espécies adventicias

Plantas invasoras, bizarro paisagismo

Espadas e espinhos entre flores carnívoras


Prefiro tua companhia num espaço comum

A rua do fim do bairro

A praça que já não existe 

Lá jogamos futebol ou assistimos a retreta

E não discutimos política 


Somos lados opostos a mercê dos facínoras 

Os que nos querem divididos 

E não vizinhos de muro baixo

E almoços de família nos domingos


Nei Duclós

13 de julho de 2024

SESTA

 Nei Duclós 


Não importa que eu esqueça tanta coisa

Cenas, detalhes ou poemas

Agua da montanha deixa à parte

algumas correntes distraídas 

Que se perdem no trajeto do oceano


Gotas desse desperdício 

Servem insetos e flores que não duram

Ou então deslizam pelas pedras 

do mais puro esquecimento


Foram deixadas de lado mas não se ressentem

Carregam as nuvens em dias quentes 

Lá encontram outra identidade

Para chover no que resta das lembranças

Alimento de versos sem sentido

Que não descobrem de onde vem a arte


Vem da perdição e da preguiça

Que o mundo tem na sesta das vontades


Nei Duclós

12 de julho de 2024

PRINCESA

 Nei Duclós 


Quando chega a noite acordo com as estrelas

E exerço a voz sem compreendê-la 

Porque vem de outro céu a semente do poema

Que não se revela na sua natureza


Digo que são anjos mas pode ser o vento

Broto de uma planta, fruto ainda verde 


Tudo me ignora na hora suprema 

Mas tenho Deus olhando a porta

Por onde entra a arte, vestida de princesa


Nei Duclós

9 de julho de 2024

ADEUS À MOCIDADE

 Nei Duclós 


Leio assustado sobre o esforço que alguns bilionários fazem para rejuvenescer

Eles tem medo de ficar velhos


Eu ao contrário tenho medo de voltar a ser jovem

Incomodar os pais

Falar merda colocando pessoas próximas em risco

Ir a eventos exibindo com orgulho um aspecto deplorável

Fazer desaforo nos empregos que joguei fora

Fugir dos compromissos

Descuidar da própria literatura

Esnobar amizades verdadeiras

Deixar passar as oportunidades

Desperdiçar talento achando que é coragem


Por isso sem nenhum esforço 

Envelheço devagar com uma sensação de alívio

Não que esteja totalmente curado

A qualquer hora posso voltar a cometer uma bobagem

Esquecendo meu adeus à mocidade


Nei Duclós

ACENO

Nei Duclós 


Chamam sedentário quem não sai de casa

Preso a rotinas de sufoco

Mal sabem que o Tempo nunca é o mesmo

E nele trafegamos sem retorno


Nenhuma terça-feira se equipara

Ao acúmulo de memória nesse dia

Ela inaugura, esse é o seu costume

Também não tentamos ser idênticos

Ao que fomos na última quarentena


Conversa, costumam dizer

Você só justifica sua preguiça

Vá passear, seja um contemporâneo 

E não esse arremedo de pontífice 


Pode ser, admito, mas lembro 

que cruzei o pampa de carona

E trabalhei em jaulas de leões

Em muitos anos de puro atrevimento

No veloz rodízio dos peões 


E hoje, fixo, pensativo

Assistindo todos os assuntos

Não troco meu sedentarismo

Pela conquista do Himalaia


Moro no solar da poesia

Onde o Tempo chega de viagem

E descansa perto de uma praia

sabendo que ainda continua

Como as árvores com raízes e seus frutos

Que não saem do pomar da fantasia

mas acenam para os anjos que o convidam

Para a vida em qualquer procedimento


Nei Duclós 

7 de julho de 2024

RESPIRAR

 Nei Duclós 


Leve uns versos para viagem. Não são para ler, mas para respirar.


Posso te tocar? Se deixares, me tocarás.


Te quero tanto que te pus no bolso. De vez em quando tiro para ver teu rosto. É idêntico ao presente que me deste, um doce.


Tudo é para ti, essa arte que extraí do meu silêncio, melodia que compus contigo dentro.


Não domino mais o curso dos versos que lancei ao mar. Eles aportam em ilhas do teu olhar.


Reserva um tempo para outras coisas, disseram. Eu reservo. Mas o amor é como criança, sempre se mete no meio.


A liberdade é uma prisão sem ti.


Passei rápido por você. Deixei a seus pés, como sempre, tudo o que sou, nessa passagem.


Preciso me atualizar. Vou ler tuas páginas.


Dividi a cama contigo. Te amontoaste em busca de abrigo. Depois partiste porque estavas perdida. Mas deixaste tua blusa cinza, para vir pegar em seguida.


Sabe quem te ligou? Alguém. Não disse o nome, só chorou um pouquinho.


Preciso de um coração novinho, disse ela. Aquele perdi, quando me deste o fora.


Você não cansa disso? perguntaram. Sim, mas quando descanso volta tudo, disse ele.


Meu tempo livre está preso em teu vestido.


Cultivei o correio. Reguei o endereço. Fui entregue de manhã, quando ainda estavas com sono.


Esqueci o que ia dizer. Acho que foi essa luz. Fecha um pouco os olhos para ver se eu lembro


Lês o poema que escrevi no papel em branco do coração.


Expliquei mecânica quântica naquela tarde em teu quarto. Meu toque era partícula e onda ao mesmo tempo.


Serei como um espírito. Puxarei pelo teu pé até ouvir teu grito. Aí te trarei para perto como se faz com uma flor tonta de suspiros


Pedes colo trazendo teu cheiro e teu coração ofegante para perto do meu rosto. Morro em ti, tesouro.


Nei Duclós

FUNDO

 Nei Duclós 


O Tempo tem poços de tempo 

Andamos na superfície 

Mas de vez em quando 

um redemoinho 

Nos leva para o fundo 


É quando encontramos parentes perdidos

Momentos da infância 

E o sentimento

Única prova de amor

Da nossa pobre existência 


Nei Duclós

4 de julho de 2024

DEIXO TUDO PRONTO

 Nei Duclós 


Deixo tudo pronto

Quintal com poço artesiano

Pomar de maçãs de ouro

Pedra entre água corrente

Floração de pessegueiro


Canil e galpão de feno

Um telhado sem goteira

Luar preso na varanda

Arte com toalhas de renda


Janelas de biblioteca 

Versos de amor na parede

Uma escada para o sótão Garagem com ferramentas


Bebedouro para os pássaros

Um portão lá pelos fundos

Horta ao lado das roseiras

E mais nada. Está feito


Para quando eu for embora

E deixar tudo direito

Minha porção de memória

Meu coração sem conserto


O tempo é onda que quebra

Na praia onde mora o vento  


Nei Duclós

RODEIO

 Nei Duclós 


Escrevo de qualquer jeito

Para o verso sair perfeito


Escrevo na lata

Sem vestir terno e gravata 


Não tenho mais tempo

De ficar frente ao espelho 


Não pergunto se houver rima

Não ligo se fico velho


O poema vale o risco

Só quando escrevo existo


Dizem que vida besta

Cada um tem sua sina 


Um anjo no meu ouvido

Sopra o que mais preciso


Por isso não me penteio

Nem uso sapato preto


Sou servo do devaneio

Monto verbo no rodeio


Nei Duclós

26 de junho de 2024

NA PORTA DO CÉU

 Nei Duclós 


Velhice é adaptação. 

Chamam de terceira idade e você aceita.

Vem os cabelos brancos e você acha um charme.

Começam as rugas e você não se importa.

Os cinco sentidos regridem e você acha natural.

Começa a andar trôpego e compra uma bengala.

É xingado ao volante mas você se acostuma.

Ninguém mais te dá a mínima e isto parece um alívio.

Você não sai mais de casa mas tem a Internet.

Tua geração inteira vai para o saco e você se sente um privilegiado sobrevivente.

Não dá mais bola quando perguntam se tomou o remédio "direitinho".

Diz consulte o Google quando perguntam qualquer coisa.

Sabe que a experiência não traz mais sabedoria.

Não se desespera quando as palavras somem da mente.

E aí vem o Alzheimer e você esquece tudo e se livra até de recomeçar.

Pior é confundir a própria identidade e ter de berrar para São Pedro, surdo depois de dois mil anos:

- Sou Jack o Marujo. Me deixa entrar antes que eu me esqueça.


Nei Duclós

22 de junho de 2024

PRIMEIRO AMOR

 Nei Duclós 


Quando desisti do primeiro amor

Contraído aos 13 anos sem noção 

E perdi o caminho da paixão 

Que em menino me transtornou

Desisti por me achar um sonhador 

A cultivar fantasias, por favor!

Eu não sabia que sem querer abria mão 

De todo amor que viria bem depois 


Nem que eu teria chance com você 

Bailarina do rosto sem igual

Bastaria ser só o que senti

Ao te ver em todo o esplendor


Nei Duclós

20 de junho de 2024

NA CURVA

 Nei Duclós 


Pareces de trança, em foto antiga. 

Mas são só sardas, em imagens vivas. 

Te pego na curva, com teu vestido. 

Toda de versos tecida.


Nei Duclós

10 de junho de 2024

VARAL

 Nei Duclós 


No primeiro sol expus a roupa

Que a máquina lavou de madrugada

São algumas peças, a oferta é pouca

Não encontro os modelos adequados 


A indústria trata com suspeita

Quem extrapola as medidas do esquadro

Escassa vinha para quem é grande

E não tolera números apertados


Assim fico sem meia ou sapatos 

Pois não se encontra mais 44

Vendemos tudo, dizem sorridentes

Os balconistas cretinos do mercado


Devo importar tudo da Tartária

Aqui só temos uniformes bem pequenos

E chapéus que não cobrem a carcaça


Mas o que tenho serve, mesmo que eu repita 

Todo dia a mesma indumentária 

Como a calça jeans que eu sempre usava

Quando vivia pobre sem salário 


Nei Duclós

FOLHETIM

 Nei Duclós 


Descobri tardiamente certo best-seller

Pois moro confinado num pequeno espaço 

E nunca saio fora dos redutos 

Onde conservo poucos livros sóbrios 

Os que não alimentam modismos literários 


É uma descoberta triste ver tanto sucesso

Que já não faz efeito pela ação do tempo

Mesmo que seja recente no calendário

E a fila de autógrafos ter dobrado a esquina


É como chegar atrasado no funeral do amigo

Restas flores murchas sem nenhum sentido 

O que foi homenagem agora também morre

E o sepulcro solitário amarga esquecido


Não que eu despreze o frisson das vendas

O alvoroço às vezes acerta, mas é raro

Tenho volumes preciosos em meus armários 


Normalmente isso que parece o máximo 

é apenas o recorrente marketing

Prove esta novidade você se sentirá nobre

Dentro da grande redoma do privilégio 


Melhor ficar na tua, ogro perverso

Leia a Lua, que não te engana à toa

Ela publica capítulos de um folhetim modesto 

Que são as fases que não somem nunca

Pois sempre voltam como o amor eterno 


Nei Duclós

9 de junho de 2024

GAIA

 Nei Duclós 


Ventos: a terra respira.

Rios: o sangue circula.

Mar: existe uma alma.


Montanha: Deus medita.

Lagos: os anjos se banham.

Selva: o jaguar te enxerga


Nuvens: o céu cria filhos.

Raios: gigantes rabiscam.

Chuva: o sonho descamba.


Noite: manto de estrelas.

Dia: chapéu de brisa


Inverno: o avô pega o ônibus.

Verão: um jardim de formigas.

Outono: um tio puxa briga.

Primavera: a rosa desfila


Deus: o fim é o início.

Homem: irmão de sementes.

Mulher: mudança de tempo


Praia: Netuno é criança.

Velas: há um motor na esperança.

Porto: o amor vem à tona


Sonho: o passo imagina.

Vigília: o olhar está frio.

Sono: a vida se abriga


Nei Duclós

7 de junho de 2024

OS MELHORES DE NÓS

 Nei Duclós 


Os melhores de nós foram embora

Afogados, feridos, devastados

Junto com suas cidades, animais, casas

Construídas por mais de uma vida de trabalho


Foram vítimas não do clima ou do ambiente

Mas dos demônios 

Mestres do dilúvio provocado


Hoje há um Rio Grande do Sul no céu 

Flutua nos campos e coxilhas das nuvens

Os ponchos batidos pelo vento são aves migratórias 

E a lua o olho que pisca para nós em fases distintas


Foram embora os melhores de nós 

Façamos por merecê-los 

Fomos salvos porque serviram de modelo

Da luta, da fé, da esperança 

E do amor, que é o nome próprio da terra


Nei Duclós

MERGULHO

 Nei Duclós 


A fé é profunda como o alto mar

Fico na superfície sem me assustar

Busco a praia que ainda dá pé 

Nas ilhas de submerso olhar


Ignoro as criaturas abissais

Os milagres dos santos e dos jograis

Os perigos da correnteza e do por-do-sol


Acredito que chegarei ao meu lugar

Para ser recolhido no exausto porto


Tenho fé que aprenderei a ser melhor

Mergulhador que respira por amor


Nei Duclós

6 de junho de 2024

A VOZ DO ANJO

 Nei Duclós 


Não releio, não reescrevo

Assim mantenho intacta 

a voz do anjo na letra 

Que sopra já corrigido

O escrito no Paraíso


Alguém lá deve orientá-lo 

Na sua faina esquisita

De repassar aos humanos

A incerta literatura 


É certo que não escuta

Conselhos de veteranos

Possuídos de parâmetros 

Volumes de capa dura

Recitais de enorme fama


Meu anjo jamais descura

De rasgos tonitroantes

Mas antes faz uma escolha

Prefere a profunda música 

Do verso morto de fome 


Assim encarno os cadernos

E as asas do anjo roto

Empresto só a caneta

Mediunidade fajuta


Sou o poeta das nuvens 

Onde moram os espíritos

Talvez seja eu um deles

A ditar o que publico 


Nei Duclós

4 de junho de 2024

AGRADEÇO

 Nei Duclós 


Agradeço pelo que tenho

75 anos de vida

Uma casa, uma família 


Agradeço pelo que tenho

Criado em casa da esquina

Frente ao colégio marista


Agradeço pelo que tenho

A prosa e a poesia

Em mais de 40 livros


Agradeço pelo que tenho

A fé, que não me abandona

E o sonho na biografia 


Agradeço pelo que tenho

Ter estado na Paulista

Morar em Santa Catarina 


Agradeço pelo que tenho

Uma saúde para o gasto

E um mensal benefício 


Agradeço pelo que tenho

Em cada canto um amigo 

E o prazer da fantasia


Agradeço pelo que tenho

Um país, amor maior

E gaúcho, minhas raízes 


Nei Duclós


Nota: não é meu aniversário, que é em outubro. O poema é inspirado nos sobreviventes da enchente, que agradecem pela vida. Precisamos seguir essa lição de tanto sofrimento e agradecer o que temos.

28 de maio de 2024

DO AVESSO

 Nei Duclós 


Só digo o que não vem na cabeça 


Só leio o que não me cai nas mãos 


Só escuto o que nunca pensei


Só vejo o que não consigo enxergar


Só mostro o que vou esconder


Só pergunto o que tenta calar


Só respondo o que jamais perguntei


Só tenho o que deixei escapar


Só volto quando não desisti


Só amo se for a única lei


Só sonho o que já realizei


Só canto o que nunca ouvirei


Nei Duclós

ESCREVO

Nei Duclós 


Escrevo romances esquecidos

poemas dispersos, contos ocultos

Escrevo memórias tristes

artigos aos pulos, biografias

da indústria, currículos infames


Escrevo ideias vadias

canções recolhidas no lixo

ensaios absurdos, textos

sem assinatura, literaturas

perdidas, lendas avulsas


Escrevo por puro artifício

vocação fora do assunto

compulsão doentia, servidão

de herança, situação aflita

repertório tardio, luzes pífias


Escrevo como Deus manda

quando está distraído e decide

permitir que o vício assuma

as dores da virtude. Escrevo

como quem persegue a epifania


Nei Duclós

27 de maio de 2024

TRÉGUA

 Nei Duclós 


E se tudo for perdido

Carregado pela enchente 

Cidade onde sobrevivo

País que ficou doente


Vou em cima do telhado

Com vizinhos descontentes

A roupa toda molhada

O frio, a fome e a sede

Na espera de um resgate

Que Deus há de olhar a gente 


Vou levar os meus cachorros

E um cavalo de corrida 

No barco de salva vidas

Que a garotada dirige

Anjos que os santos enviam

Das nuvens preocupados


Só levarei a certeza

De que vou seguir em frente

Do abrigo mais carente

À estrada já sem ponte 

Em direção ao destino

Do náufrago contra o vento


Em cada lugar eu me apronto

Para ficar por um tempo

O arco-íris promete

Uma trégua de esperança 


Nei Duclós

24 de maio de 2024

FÔLEGO

 Nei Duclós 


O balde cheio da memória não mata a sede sem a poesia


Esvazia meu coração o sabor salobro da amargura

E adoça com sonho o fôlego da vida


Promessa que nos faz eternos

Quando nos lembramos


Nei Duclós

18 de maio de 2024

CANCELE O POETA

 Nei Duclós 


Cancele o poeta

Não o convide para nada 

Diga: estamos lotados

Não há mais espaço 


Assim ele aprende

A ficar calado

Como ostra na água 

E pássaro amargo


Prove que é nulo

Que cultiva a soberba

Bem metido a besta

Com obra obsoleta


Ficou para trás 

Como um velho soneto

Não soube abraçar 

A linguagem porreta


Ao passar em seu rumo

Troque de calçada 

Os cães o farejam

Como um lixo na rua


Não importa se a lua

É sua musa profana

Ou se a deusa Poesia 

Quer jogá-lo na cama 


Nei Duclós

QUARTO CRESCENTE

 Nei Duclós 


A natureza não opõe resistência 

Teu fogo interior aflora na pele

Água parada se transforma em enchente

Terra molhada cheira a desejo


Por mais que não queiras teu corpo oferece

O que tu esconde em íntimas vestes

Meu sonho grudado como bicho do mato

A força que trago em torpeza e recato 


Melhor não falar tanta evidência 

Parece exagero minha imprudência 

Mas estou no limite, estrela cadente

E caio no mar como um quarto crescente


Nei Duclós

COLONA

 Nei Duclós 


Cansei de me declarar sozinho

Sem que me ouças, tão distraída

Acho que sabes que exerço o assédio 

Mas finges de amiga, extrema doçura 

Delícia restrita a um aceno de longe 

Limite do abraço que não se consuma


Bastaria um sinal sem compromisso

Toque brutal de emoção consentida

Ficaríamos prontos para o que desse e viesse 

Delírio na cama ou dança em rodízio 


Mas és arredia em teu passo de gringa 

Colona rodeada por toda a família

Que não se permite o sabor da aventura


Só me resta então mergulhar neste ofício

Em que localizo a melhor fantasia

Teu jeito de flor que parece meiguice

Mas é turbilhão de fervor feminino 


Nei Duclós

14 de maio de 2024

RUBENS JARDIM: A VOLTA DA PALAVRA

Nei Duclós 


Primeiro livro de Rubens Jardim (1946-2024) em 30 anos, “Cantares da Paixão” rompe com os diques aparentemente sólidos de um tempo mau. (Atenção: leia abaixo, na seção Extra, a bela carta enviada por Rubens Jardim comentando este texto publicado em 2008).


Nei Duclós 


A essência da tirania é interromper o fluxo do pensamento, último reduto da liberdade. As falas internas, as que se formam espontaneamente antes de serem expressas, são substituídas pelos arremedos de linguagem. O jingle que não sai da cabeça, a palavra de ordem jamais esquecida, a frase bem sacada que costura conversas, os jargões corporativos, os apelos políticos, as evidências históricas: eis um conjunto perverso que habita esse vácuo provocado pela interrupção do livre pensar.


A ele se soma a poesia, que continua cumprindo o papel de adorno de luxo, de emoção barata, de sabedoria-minuto, como costuma acontecer no atual estágio em que o trocadilho foi entronizado como insight esperto das mercadorias mais descartáveis, as pessoas. À custa, inclusive das grandes obras poéticas, que o deslumbramento sob medida transforma em lixo graças à repetição vazia, como é o caso do binômio passarinho/passarão. No mesmo recinto, suam os corpos ansiosos dos poemas metidos a besta, passaporte para notoriedades e até mesmo verbas públicas.


Esse acervo trágico é o escolho trazido pela maré alta do capitalismo de farol, o sistema que tenta se safar ao definir como bolha o que era tido como mercado até a véspera do colapso. De farol porque obriga o cidadão despossuído a lutar pela sobrevivência na instabilidade dos cruzamentos, e não na solidez do trabalho bem remunerado. No Brasil, a ciranda financeira, que a tudo reduz a pó, se aliou à longa presença de governantes apartados da cultura. Como vasos comunicantes, elas alimentam o esquecimento programado, que esvazia e reparte em postas a identidade da nação desconstruída.


Contra isso se insurgem, reduzidos ao silêncio, os poetas que mergulham na poesia com a gana de romper esses diques, mesmo que o reconhecimento fique no limbo, a obra submerja no esquecimento, se confunda no excesso de ofertas da rede virtual, ou o livro tarde. É o caso de Rubens Jardim, que lançou “Cantares da Paixão” (Artepaubrasil, 159 páginas), seu primeiro livro em 30 anos, um arsenal poético fartamente ilustrado e que vem em socorro dos que não se entregam às imposições das falas oficiais. Apesar da auto-imagem do poeta ter sofrido o impacto da indiferença, tanto é que se considera “menor” (vício da crítica literária inventado por Antonio Candido), este livro é um conjunto de assombros.


Não apenas pelo lugar que Rubens Jardim ocupa, de fato, na literatura brasileira, desde os anos 60 ao participar como protagonista da movimento Catequese Poética, liderado por Lindolf Bell, que inaugurou no País o evento cultural de massa em praça pública. O poema manifesto, tornado tradicional pelo tempo transcorrido e resgatado agora na memória impressa, é apenas um aspecto de seu trabalho. O mais importante não é sua “pertença”, sua biografia poética, mesmo que o núcleo de onde surgiu seja de citação obrigatória. O fundamental, em Ruben s Jardim, é o deslocamento do poema para fora da linguagem, o que é feito com maestria, no uso da palavra conhecida e na eventual quebra silábica do discurso.


O poeta reconhece: “Parca é a palavra./ Este é o celeiro-livro/ na livre escolha/ esquálida/ das espigas.”A colheita escassa no inventário do verbo sem nenhum poder empurra o poeta para longe do poema, transformando-o num catador de estilhaços, os restos de algo irreparável.


Impossível reproduzir numa resenha o impacto do trecho final do livro, que homenageia o primo tragicamente morto na queda de uma janela. O título é “Estrepitoso estrepe” e podemos selecionar alguns momentos, sem reproduzir o design dos versos na página: “Tenho velado nestes 50 anos a tua queda e não consigo remover do chão as marcas do teu corpo nem comover os degraus na escalada da tua morte. Hediondo instante. Você me deixou mais só diante do raio da rua e adiante de mim mesmo, irretratável realidade”.


Um soneto admirável na página 78 é mais um exemplo desse jogo que ele prefere decidir na arquibancada, ou na várzea, enquanto o campeonato corrompe o meio do campo: “Toda mulher é uma viagem/ ao desconhecido. Igual poesia/ avessa ao verso e à trucagem,/ mulher é iniciação do dia,/promessa, surpresa, miragem./ De nada adiantam mapas, guias,/ cenas ensaiadas ou pilhagens./ Controverso ser, mulher é via/de mão única, abismo, moagem./ É também risco máximo, magia,/ caminho íngreme na paisagem./Simplificando: mulher é linguagem,/ palavra nova, imagem que anistia/ o ser, o vir-a-ser e outras bobagens”.


Fica estranho dizer que o poeta se coloca fora da linguagem para lá encontrar a essência, a origem, o sabor, a história e, agora sim, o pertencimento da palavra. Mas essa é a solução encontrada pelo talento, esse mistério da sabedoria. O que vale é fazer parte de um povo e não de um grupo, mesmo que um seja representação do outro. Misturar-se ao caos primordial onde o verbo tem a força da criação e faz parte das rotinas é talvez do sonho de todo poeta, um árcade por excelência, pois sabe que da natureza flui o poema. No convívio com a terra, esse universo não literário, é que a poesia se salva. Em Jardim, há inclusive uma Marília de Dirceu: “Anarda era imprevista como as provisões, o pasto, o repasto. Prato bipartido Anarda se unifica: seu próprio rosto é um retrato.” Ou : “Anarda era uma viagem dentro do tinteiro. Cor e acorde, Anarda era uma âncora dentro do tinteiro. Antes marco e agora traço, Anarda é signo, insígnia, dentro do tinteiro.”


A consciência de que perdemos a batalha da linguagem, que as falas impositivas imperam na paisagem da cultura em ruínas, faz do poeta um outsider inclusive de si mesmo. Não que renegue o que fez ou tenta fazer. Mas porque insiste na busca e descobre que ao retirar-se, encontra. Nessa luta se desloca, sai para fora do mundo reconhecido. Como Jardim consegue ser um poeta do eu, como dizem, confessional a maior parte do tempo (seu grande poema para o pai expressa essa opção), se ele abandona a casa conhecida da poesia?


Sua escolha é consciente, a ruptura é fruto de árdua reflexão e exercício. E o deslocamento acontece como resultado desse esforço. No livro, uma longa entrevista foi incluída, demonstrando a complexidade de sua reflexão. Ao se manter fiel ao trabalho poético, sem vislumbrar nele nenhuma utilidade, Jardim reencontra o impulso do papel do poeta, mesmo sem usar a máscara que deveria defini-lo. Encontrar um lugar comum (de todos) fora da mesmice é uma contradição bem ao gosto da máxima de Torquato Neto: “Leve um homem e um boi ao matadouro. Aquele que berra é o homem, mesmo que seja o boi”.


Ao contrário de quem se entregou à tirania da falsa linguagem, Jardim exercitou o berro. Sorte de quem lê ou ouve: sua voz é melodiosa, e tem a vibração de uma passeata, aquele movimento coletivo de rua, que era aclamado nas sacadas da nação ainda esperançosa. Com “Cantares da Paixão”, a palavra, que tinha sido expulsa, voltou, como se ainda fosse possível reinaugurar o milagre.


EXTRA : RUBENS JARDIM LÊ ESTA ANÁLISE DA SUA POESIA:


"Nei, meu caro. Nunca na minha longa trajetória poética, alguém escreveu algo semelhante. Não sei explicar, mas você tocou em pontos sensíveis da minha alma. Gostei muito da contextualização da tua análise. Também sinto esse acervo trágico da emoção barata e da sabedoria minuto. Mas nunca havia pensado que os meus poemas estivessem alinhados na luta para romper esses diques e as imposições das falas oficiais.


O certo é que esta tua resenha é que é um conjunto de assombros. Desde o título, A VOLTA DA PALAVRA, até seus afinados desdobramentos,você conseguiu me remeter de novo ao grande Jorge de Lima. Ele já escreveu, em poemas inesquecíveis, algo bem aparentado com o teu brilhante e afiado discurso:


"As palavras envelheceram dentro dos homens

separadas em ilhas,

as palavras se mumificaram na boca dos legisladores;

as palavras apodreceram nas promessas dos tiranos;

as palavras nada significam nos discursos dos homens públicos...

E, por acaso, a palavra imortal há de adoecer?

E, por acaso, as grandes palavras semitas podem desaparecer?"

11 de maio de 2024

PERSONAGEM

 Nei Duclós 


Amor é uma personagem

Que uso na poesia

É limite da linguagem

Fruto da fantasia


Portanto não acredite

Na manha do verso livre

É carta que jogo fora

Sem endereço da escrita 


Não colecione envelope

Que ostenta letra cursiva

É só um livro sem margem

Que nem a lua confia


Assim mesmo, não desista

Nem tudo é só desperdício 

Sou urso que tua graça 

Num segundo domestica


Nei Duclós

NA CASA FECHADA

 Nei Duclós 


O barro barra o barco

Do bombeiro Bira

Que segue a pé com seu grupo

Na busca de sobreviventes


Mas em terra o cenário muda

E confunde o local exato do voluntário salvamento 


Foram obrigados a abrir todas as casas 

Enquanto cruzavam o lodaçal

Cada um amparando o outro


Ninguém ficou para trás 

Até que ouviram alguém conversando 

Num tom surdo de janelas fechadas


Descobriram então uma filha deficiente deitada ao lado dos pais mortos

Que não resistiram ao esforço de salvá-la 


Com brutal hipotermia estava sendo tragada pela água

Na despedida que fazia a meia voz com o casal submerso


Voltaram com a mulher nos braços já na noite chuvosa que encerrava o dia cinzento


Era impossível voltar ao barco

Foram salvos por um helicóptero

Que fez maIs de uma viagem para levar o grupo para um lugar seguro


Isto não é um poema

É muito mais

É o relato do bombeiro Bira e seu punhado de bravos


Nei Duclós

O QUE É

 Nei Duclós 


O que é o amor?

É o medo de te perder

Ou de jamais ter você 


É como enchente de rio

No chão que não dá mais pé 

O barco das nossas dores

Recolhe as flores submersas

E não sabemos porque


O amor é uma tragédia 

Que parece não ter fim

Navegamos na esperança 

De um dia não ser assim 

Mas somos doidos teimosos

Concha grudada em navio


Nei Duclós

6 de maio de 2024

O PAPAGAIO AZUL

 Nei Duclós 


Estranhei a presença de um papagaio entre os animais resgatados na enchente. Era um exemplar único entre gatos e cachorros apavorados pela solidão e a morte iminente. Já o papagaio mantinha a postura de um idoso sábio,  conformado com a situação  coletiva, talvez por não esperar mais nada ou pela dor da perda de   contato com seus donos.


Estranhei por ser ave solta e que em tese poderia voar, dispensando o auxílio prestimoso dos voluntários  civis, que improvisaram equipes de heroísmo diante da omissão da farda.


Sedentário e mudo, havia o agravante de ser azul,  contrariando a tradição da espécie, verde, que tem indivíduos chamados de Louro.


No embalo da canoa precária, o papagaio azul era a imagem da impotência em meio à tragédia. Não tinha função nenhuma, pois não servia mais de adorno proibido por ser silvestre, nem divertia as visitas dizendo nome feio. Não dispunha de um ombro de pirata para fingir poder  e também não era um clássico papagaio fanho de anedota.


Era uma criatura deslocada, como nós. Não pertencia à  natureza, da qual nunca fez parte por ter se originado no cativeiro. Não tinha uma casa, levada pelas águas. Era só um papagaio azul rumo a um abrigo, onde continuaria só,  como um náufrago que se pergunta porque continuava vivo. É possível que tenha escapado apenas para ser capturado pela crônica de um escritor veterano e bizarro, que também permanece respirando, engolindo uma quantidade enorme de palavrões.


Nei Duclós

3 de maio de 2024

FORA DO FRONT

 Nei Duclós 


Deixei de escrever para pegar em armas.

Fui ferido na primeira batalha.

Correste para o hospital como voluntária.

Ditei então os versos que copiaste

para depois transformá-los em curativos.


Tive alta, junto com o resto da tropa.

Voltamos para casa na garupa

de caminhões sem assentos ou molas

Estavas feliz, segurando meu braço ferido

eras a única luz diante dos camaradas


Cantamos canções perdidas e um a um

fomos descendo em vilas que sobreviveram

Ficamos por último e já era muito tarde

A Lua, curiosa, espiava por trás do telhado

Vou preparar um chá, disseste. Que sorte

que estamos juntos depois de tanta guerra


Nei Duclós

2 de maio de 2024

SAIO CEDO

 Nei Duclós 


Estranhas que te amo e saio cedo

Antes dos pássaros da manhã gloriosa

Como um fugitivo de nosso compromisso

Levanto acampamento sem desmontar a lona


Ficas chorona, não sabes ao certo

se volto ou se te esqueço agora

E qual é o emprego que mantenho

Quando libero os navios da barra


Não sabes o que fazer comigo, liso amante

É como no cânone do meu sindicato

Faço direito mas não me reconhecem

Reclamam que eu canto canções de outro tempo

Enquanto consigo o melhor resultado 


Esperam que eu desista ao ser cancelado

No árduo trabalho de físico acervo

Assim voltarão aos seus afazeres

Com a importância de não fazer nada


És diferente, tens noção da hora

Em que levanto ao nascer do dia

Pronto para assumir a velha batalha

Mas cultivas o mesmo ressentimento


Só que contigo minha fuga é aparente

Neles eu enterro qualquer providência

E em ti no fundo nunca vou embora


Nei Duclós

1 de maio de 2024

VERSUS

 Nei Duclós 


Era ele versus a censura, a opressão, a ditadura

Foi-se junto com o século por camaradagem a seu tempo


Marcou presença no coração dos contemporâneos 

Nós, seus observadores, convocados por aquela estranha coragem

Queríamos lutar e não tínhamos armas

Queríamos dizer mas nos faltavam palavras

Estávamos confinados no nosso frágil querer

Até que nos tornamos seus colaboradores

 

Não porque era um líder, pois não cultivava o heroísmo

Mas porque nos ensinava a não baixar a cabeça

E levantava o olhar acima da percepção  coletiva

Que ele colhia misturado ao espírito sagrado do povo

Sem demagogia, apenas com a liberdade


Marcos Faerman

O  nome próprio do jornalismo

A profissão que pergunta

O ofício que enxerga

A ocupação que nos falta

Em cada quadra da nação que tropeça 


Nei Duclós

12 de abril de 2024

ÚLTIMA VIAGEM

Nei Duclós 


Somos colhidos na terceira idade 

Não pelas dores, que já fazem parte

Ou pelas memórias, fio de Ariadne

Que no tempo, labirinto, nos leva ao Minotauro


Ou pelo respeito na postura provecta

Ou pela honra, biografia correta

Mas pela falta de liberdade, mais uma vez presente

Nas garras do pavor e das perdas


E pelo espanto de ver tanta amizade

Ser corroída pelo plantão amargo

De palavras que eram nosso sustento

E hoje prestam gestos de ombro, armas

Nos escombros de falsas ideias 


Temos assim a sensacao de abismo

De deixar tudo por fazer, puro desperdício

Faltam-nos forças, apesar da lúcida coragem

De sonhar, nossa última viagem


Nei Duclós

11 de abril de 2024

JACK EXTRAORDINÁRIO

 JACK O MARUJO


José Eduardo Degrazia 


Nei Duclós é um escritor reconhecido por seus livros em poesia e prosa, entre eles o já clássico Outubro, que para muitos é uma referência de nossa geração. Mas aqui quero falar deste extraordinário livro de microcontos, aforismas, pensamentos, poesia, As Aventuras de Jack o Marujo, livro publicado recentemente pela editora Almedina. Neste livro Nei alia o humor inteligente, a perspicácia, ao senso narrativo e poético do grande escritor. O resultado é uma prosa poética de altos decibéis, onde o personagem Jack, o Marujo, sincero como é, nos brinda com tiradas de efeito, pensamentos, frases inesquecíveis. Na maioria das vezes não politicamente corretas - podemos muitas vezes não concordar com ele -, mas sempre saímos conquistados por sua irreverência. Jack o Marujo, é, desde já, um grande personagem da nossa literatura.

29 de março de 2024

DESESPERO

 Nei Duclós 


Quando o amor se manifesta?

Quando prega uma peça e nem parece amor

O olhar distraído navega na floresta dos desencontros em anônimos aeroportos 


O momento fica no fundo e não se despede

Até o acaso amarrar de novo as pontas


É desesperador o sentimento

Pelos países em guerra


Nei Duclós

SOBRA

 Nei Duclós 


Sentimento é sempre sofrimento

Esse mel coalhado no peito

Essa água que não se derrama

Esse querer a todo pano

Que carrega o piano

Onde a vontade inventa bachianas

E tudo é um rolo que leva adiante

As virtudes do tédio 

E nos deixa sós com o que sobra de humano


Nei Duclós

28 de março de 2024

MIGRAÇÕES

 Nei Duclós 


Hoje já é quinta-feira

As semanas passam voando

Como patos em bando

Nos céus do pampa na minha infância 

Em sólida formação militar

Intermináveis e sucessivos esquadrões de aviões emplumados


Engraçado 

Não vejo mais essas migrações 

Teriam os pássaros virado semanas?

O Tempo à procura de um clima mais ameno?


Nei Duclós

25 de março de 2024

COREOGRAFIA

 Nei Duclós 


Admiro o balé, adoro o flamenco

A graça e a contundência do movimento

Seja quem dança homem ou mulher


As pernas que trançam, as ondas dos braços

O corpo em espiral, os joelhos que voam

Na ponta dos pés, nos dedos mais longos

Gerando espaços nos limites do palco

Ou mesmo na rua para os que passam


Não tenho mais jeito no peito ou nos ombros

Não alcanço com a idade esse antigo sonho

De ser pé de valsa com a debutante 

Fazer no cinema o que vi antigamente


Mas tenho a palavra com a força dos anos

A palavra fala por mim, e me desenha

Eu pulo até aonde o amor me convence


Nei Duclós 

19 de março de 2024

FORA DA LINHA

 Nei Duclós 


Tanto lutei que cheguei na terceira idade

Dores no corpo e falta de memória 

Carro emperrado na estrada dos desejos

Dormindo antes do fim do aniversário 


Todos garantem que a festa é agora

Você concorda para não ser acusado

De estraga prazeres, velho desgraçado


Agora me diga se valeu a pena

Viver tanto tempo para ser jogado fora

Se ao menos se calassem, porca miséria 

Pois não fiquei surdo e ouço barbaridades

Acham que já morri enquanto te namoro

Com o poema que escrevi na tua pele de mármore 


Nei Duclós

16 de março de 2024

PACIÊNCIA

 Nei Duclós 


Renuncio à minha parte, não por estar cheio

Estou em falta de tudo o que preciso

Ou mesmo por querer exibir-me a pleno

Quem me vê bem sabe o pouco que tenho


É de outra natureza esse súbito  desapego

Excesso de experiência talvez ou a idade

Só sei que diminuo em necessidade

Enquanto cresço intenso com o passar do tempo 


Perdi demais, essa que é a verdade

Exigindo porções maiores ou iguais

No fim é sem importância, o que de fato vale

É descobrir no Outro o que nos transforma

Muito além do  corpo e sua fome


Viver é o que está fora, estranho da vontade

Custamos a entender o foco da obediência 

Sorte que contamos com a divindade 

E a sua paciência, aluna da renúncia 


Nei Duclós

15 de março de 2024

GOLONDRINAS

 Nei Duclós 


Mayor

Las mujeres te llevan por las calles

En manos de luces y  sombras 


Tienen

 las espaldas   nudas

Y tu el rostro de piedra


Son golondrinas en tu nido de  viejez

Y tu el que sobreviviste de tanto amor


Mayor


Nei Duclós

12 de março de 2024

FAROESTE

 Nei Duclós 


Era bom pensar que você sabia pouco 

E que havia inocência mesmo não havendo 

No fundo era eu o pobre ignorante 

Mas fazia pose de herói das pradarias


Do amor naquela época ainda adolescente

Eu descobria aos poucos e jamais te revelava

Como se fosses moça sem noção alguma

Podias me ensinar mas preferias a prudência 


No fim tudo deu certo, sardas em fogo

O aperto sem querer na festa de família 

Em que, vizinha, fazias um pedido

Secreto na hora de alguém cortar o bolo


Querias o meu beijo, garoto inexperiente

Que não sabia beijar e vivia imaginando 

Um dia me pegaste dentro do cinema 

E foi aí que te alcancei no bruto faroeste 


Nei Duclós

2 de março de 2024

O CORPO

 Nei Duclós 


O corpo sabe fazer 

É seu próprio professor

Não dá lição de querer

Não esconde sua dor


O corpo encontra sua vez

Marca presença na flor

Não desiste de vencer

Não evita o corredor


Chega quando é destino

Enxerga o que é legítimo 

Conduz mesmo à revelia 

Te diz quando não escutas


O corpo funda o prazer 

Na hora do sacrifício 

Por mais que fujas do amor

Ele carrega o infinito


Nei Duclós

24 de fevereiro de 2024

FICOU TARDE

 Nei Duclós 


Agora ficou tarde

Véspera da manhã 

Quando tudo se parte 

A flor da romã no chão se retorce

Por não chegar ao fruto

E todo teu corpo não acha onde pisa 

É só desperdicio

Teu tempo se acaba

Ao perder a razão 


Faça uma oração 

Que tudo voltará 

Como o vento se molha

Ao lembrar quando chove


Nei Duclós

22 de fevereiro de 2024

 Chegou o reparte de Autor. Edição caprichada!

Obrigado Deonísio Da Silva ! pelo trabalho primoroso de edição.

Obrigado Grupo Almedina!

AINDA MOÇO

 Nei Duclós 


Não me importo mais em enxergar

pouco. Ou misturar os sons

que já nem ouço. Ou ser chamado

de sonso. E não ter paciência

para o jogo que o dia obriga

na disputa do osso


No fundo é tudo esboço

de uma vida futura, pelo avesso

quando o mundo exaure enfim

seus hábitos e torna-se o que sempre foi

absurdo.


Por isso não se despeça quando eu estiver

morto. Não estarei no aeroporto

para te tratar de hóspede. Nem no funeral,

apenas o corpo. A alma também partirá

para um recomeço num lugar onde a memória

não possui passaporte


Estou pronto, aproveite que ainda sou

moço. E tenho esse dom à mostra

que é a palavra sem rebuços, arte

que aprimoro para dizer o que sinto


Nei Duclós

16 de fevereiro de 2024

O CORPO

 Nei Duclós 


O corpo procura seu próprio caminho

O espaço de cura entre a flor e o espinho

A rima mais pura da sua poesia


O corpo reage no oculto cassino

Que rege a conduta de um jogo já visto

As fichas vendidas na sorte sem rumo

Talvez seja morte, talvez seja vida


E por milagre ele então ressuscita

Da coma na idade, sem assinatura

Aposta alegria quando tudo está sujo

Ou cede à medida que o tempo permite


O corpo é a palavra que dorme no fundo

E deixa que as falas façam tumulto 

Um dia ela acorda no seu paraíso

E diz para Deus: sou tua profecia


Nei Duclós

15 de fevereiro de 2024

0 CAMINHO

 Nei Duclós 


O que eu guardo explode

O que mostro esqueço 


Estou dividido

Entre a linha reta

E o labirinto


O que digo escrevo

O que apago começa 


Em cada porta espio

No meio da estrada 

me atiro


Refém do destino

Separo

Alguém me mostre

O caminho 


Nei Duclós

11 de fevereiro de 2024

ÚNICA ESTRELA

 Nei Duclós 


Todos temos uma paixão secreta pela única estrela

Nem tanto pelo brilho que emana no tempo torto

Que a destaca perfeita no pobre firmamento

Feito de restos de corpos celestes e tristes satélites 

Nem pela voz que entoa como anjo cantos gregorianos

Ou pela pele de seda que expõe em fotos nas praias remotas


Mas porque vemos nela  a perdida e última chance

Do amor que nos devem

injustos pela vida inteira

E que nos negam por sermos ainda seres humanos

Desperdício de sentimentos anônimos sem pouso de aves que não voam


Nei Duclós

3 de fevereiro de 2024

ADUBO

Nei Duclós 


Há o risco de nada termos feito

No balanço de nossa vida inteira

A obra se esfuma junto aos dias 

E o rastro, testemunha, não registra


Todo tempo serve para perdê-lo 

Mas talvez seja essa a descoberta

O nada que fizemos é o que conta

Como adubo do plano para a esfera 


Nei Duclós

2 de fevereiro de 2024

DISCUSSÃO

 Nei Duclós 


Discuto o tempo todo com os objetos

A porta que bate com o vento e me encerra no quarto sem ar suficiente

As camisetas sempre do avesso por mais que você tente fazer certo

As roupas que  nunca secam quando precisamos

Os talheres que caem no chão 

O acúmulo de livros nas estantes

Os travesseiros desconfortáveis por vocação 

O portão que não fecha

As janelas que não abrem

Os trincos que emperram

Os canos que pingam sem parar

O quintal que produz uma selva por mês 

As paredes úmidas 

As baterias que vivem no osso exigindo recarga


Os objetos são voluntariosos

Fazem o que querem

Sorte que não  retrucam

Por enquanto 


Nei Duclós

1 de fevereiro de 2024

LUA FIRME

 Nei Duclós 


Enquanto houver lua

Haverá esperança 

Mesmo que o rosto traia desconfiança 

Mesmo que meu sonho ainda criança 

Tenha medo de crescer


Se ela está firme no céu e se movimenta

Coordenando a desregrada rosa dos ventos

É porque assim está escrito nas estrelas

E nós pobres românticos

Somos reféns das marés e suas mudanças 


Quando ela surge no quintal e tira um selfie

É porque ao mesmo tempo me garante

Que tudo está certo 

mesmo que não aparente


Nei Duclós

22 de janeiro de 2024

RUPTURA

 Nei Duclós 


Fazes ideia de mim pelo que escrevo

Sem saber o que guardo quando estou ao vivo

Portas fechadas, projetos suspensos 

E brutais fantasias que não dão sossego


Flores do jardim são testemunhas

Que eu ignoro o cão e xingo os vizinhos

Ninguém me suporta no verão sem camisa

Nenhuma paciência com as mudanças do clima


Assim vives a ilusão do poema

Quem me dera ser esse ser tão seguro

Onde cada palavra evita a ruptura


Não deixe de amar o que diz a poesia

Mas tenha cuidado e não se aproxime

A não ser que nada mais te assuste

Amor que eu cultivo quando não tenho saida


Nei Duclós

DIVISÃO

 Nei Duclós 


Faço café para me dar sono

Pão de frigideira e a doce stevia

Daqui a pouco amanhece e estou inteiro

O dia desperta na segunda feira


Reporto meus hábitos noturnos

No ritmo que dou aos procedimentos

Ninguém tem nada com isso mas compartilho

Talvez porque faça companhia aos outros


Navego isolado no tempo a refeição 

Que são os momentos sem nenhuma pompa

Como um soldado que divide a ração 

Porque só assim haverá sobrevivência 


Nei Duclós

21 de janeiro de 2024

DEFEITOS

 Nei Duclós 


Quem me quer não entra

Quem eu quero não alcanço 

Sou da Criação o caroço 

Contra-mão no trânsito 


Faltou educação, no laço 

Cresci fora do norte

Esboço de um mata-borrão


Seco a tinta da canção 

feita de louça 

Nenhuma palavra vale o esforço 


Digo isso para te agradar,

perfeita moça 

Defeitos que te fazem a cabeça 


Nei Duclós

19 de janeiro de 2024

SÚMULA

 Nei Duclós 


Faço música na surdez do mundo

Sílabas que não escutam

Canções em estádios ocultos


Sou o flautista que promete o abismo

E jura que existe uma ancestral melodia

Que tudo revela no horizonte mudo

Profunda poesia na harpa dos minutos


A partitura se desfaz na pauta das nuvens

Morre o eco que poderia ter dito

A provar a súmula jamais escrita


Componho como quem surta

Sem voz apesar de peregrino

Só alguns pássaros adivinham

E cercam tontos de voo

Meu ofício que teclo teimoso

Num órgão misterioso em catedrais do divino


Nei Duclós

18 de janeiro de 2024

TRABALHO

 Nei Duclós 


Faço do jeito que eu quero

Esse é o meu trabalho

E não é desaforo

Nem expediente

Para espantar o sono

É o que aprendi

No tempo em que vivi sobre a terra 


Muito já perdi

Na descida do morro

Mochila ficou para trás 

Casa sem nenhum adorno

Hábitos de monge

Virtudes jogadas num canto


Apenas a livre expressão de um veterano

Estive na guerra, digo quando canto


Nei Duclós

ILUSÃO

 Nei Duclós 


Não lembro mais o teu nome

Nosso tempo evaporou-se

Cada época tem seu jeito de querer

Antes eram raízes, amor para toda vida

Hoje é fumaça, neblina

Amasso de balada

Feito só de palavras

Os corpos que se revelavam

Agora permanecem ocultos


Diziam que os românticos viviam de ilusão 

Mas eram sonhos pautados por presenças 

Nossos namoros nem isso mais são 

Quem nos dera a doce ilusão 

Pelo menos os poemas eram melhores


Nei Duclós

15 de janeiro de 2024

SOMBRA

 Nei Duclós 


Procuro esquecer o sonho que tive

Não forço a memória na porta do outro mundo

O esforço poderá me trazer de volta

Algo que não tive e parece ter força


Cenas e personagens que se misturam na mente

Coisas bizarras, sinais ainda quentes

Vidas passadas e crimes possíveis

Nunca saberemos o que existe no éter


Prefiro a normalidade do sono profundo

Em que nada acontece e mergulho sem culpa

Moro num lugar onde não há mistério 

E ninguém interfere, barulhos ou truques


Acordo onde dormi, natural vagabundo

Não pesquiso o destino oculto e do avesso  

Não dependo de ti, presença da sombra

Basta ser um louco da minha literatura


Nei Duclós

13 de janeiro de 2024

CANTORES DO LEVANTE

 Nei Duclós 


Primeiros pássaros não adivinham qual é o dia da semana

Se vai chover ou o clima ficará ameno

Nem em que época do ano nós estamos


Só sabem que no amanhecer são eles que fazem planos

O grão que irão colher ou qual porção de grama

Vai abastecer o ninho ou o equilíbrio do voo


Nem podem adivinhar que a vida dure um só dia

E que não haverá mais a mínima chance

De novamente anunciar o sol que no levante

Acorda a terra para os pios de plumas flutuantes 


Pássaros da primeira hora não possuem poder de mando

Apenas cantam como se não houvesse mais amanhã 


Nei Duclós



10 de janeiro de 2024

CONFISSÃO

 Nei Duclós 


Tenho palavras profundas para a tua dor

Que tocam músicas de um altar

Tiro de ti quando me confessas

O que guardas de amor em teu lugar


Tenho um coração que te ouve chorar 

E aguarda que voltes de manhã 

Quando Deus sem saber o que dizer

Te deixa ir em minha direção 


Nei Duclós

3 de janeiro de 2024

SOMBRAS

 Nei Duclós 


Sombras que se movem

Capturadas no canto do olho

Algo os movimenta

Mundos ao nosso redor

Sem corpo


Tudo está aqui

Na moita 

Versos que perdi

Conversas

Vozes que não ouvi

Teus beijos

Que procuro por aí 


Nei Duclós