26 de março de 2023

SORTE

 Nei Duclós 


Você fala por flores

Não importa nome, cor ou perfume

Você fala por flores


Amor no lugar do ciúme 

Gesto em vez de palavra

Na entrega e não na conquista

Força do abraço suave


Você fala por flores

Guardas a dor e o teu luto

Queres viver sem ter medo

Sem trair o sentimento

De perda e corpo em conflito


Você fala por flores

Modo alto da alegria 

Todos entendem

Não precisas do discurso 


Já preparei o jarro

Já revolvi o canteiro

Adubei com a esperança 

Reguei com água de cheiro


Você fala por flores

Que sorte, Deus, que eu tenho


Nei Duclós

25 de março de 2023

OUTONO

Nei Duclós 


Outono chega, mesmo que o verão, irmão mais moço 

Espiche a estação do sufoco 

E torne tardio o clima doce

O frio que nos liberta do calorão em pele e osso


Outono é o coração do ano

Sua pulsação, seu abandono

Encontro que vira adeus

Janela de trem em cais do porto 


É quando vens, no colo do sonho

Braço de mim, saída de banho

A dormir comigo, depois do tombo

Da fruta que cai ao desistir da planta que a sustenta

E se aninha em fogo brando 


Nei Duclós

ESFORÇO

 Nei Duclós 


Você chega lá, mas a que custo

E nem usufrui os frutos 

que são teus

E somem em mãos alheias


O semeador anônimo 

Só tem Deus por testemunha

Do cultivo feito por vocação e sem retorno

A não ser ver que seu esforço 

É caroço em ti e polpa em outro sitio 


Nei Duclós

TRÊS PRINCESAS

 Nei Duclós 


Três princesas prisioneiras

Em idade para casar

Tem um pai que é uma fera

Que se chama Valdemar


Marina, Flor e Teresa

Não conseguem namorar 

Cuidado quem por lá chega

Com intenções de pousar


Não bula com meu sossego

Diz o guardião do solar

Não importa que as morenas

Estejam cheias de gás 


Três princesas prisioneiras

Abertas de par em par

Aguardam dias de festa

Enquanto estão a rezar


Nei Duclós

MISTÉRIOS

 Nei Duclós 


Será que levamos as dores para o outro mundo?

Chagas da Cruz em corpo ressuscitado?

Gemidos no escuro, feridas da memória?

Citaras de anjos consolarão enfermidades

da alma impura pela passagem terrena?


Sentiremos necessidades de medicina?

Um leito no paraíso, uma temporada nas nuvens?


Quem trocará os curativos onde não há mais sangue?

E qual bisturi cortará a falta de corpo?

Quem gritará conosco pela cura que tarda?


Nossos passos em corredores escuros 

Evocarão mistérios? 

E quem dará alta para enfim chegarmos a Deus

Como garotos de rua que se atrasam para o almoço 

Sujos e suados, mas com fome ?


Nei Duclós

24 de março de 2023

ROMPER

 Nei Duclós 


Separação também é luto 

Vestir preto por um longo tempo

Depois do adeus, quando o tempo para

Sem túmulo para visitar, como na pandemia

A vala comum do desperdício

A vida sem força para ir em frente

A dose de paixão socada na estante

E o amor, o amor...

Deixa para lá 


Nei Duclós

22 de março de 2023

NO ESTÁDIO

 Nei Duclós 


Só então eu notei

Teu rosto todo voltado para mim

Teu olhar como um céu estrelado

Sentada na fileira da frente do estádio 


Minha atenção era nas provas

Nos jogos do gramado

Mas súbito por um instante

a multidão silenciou

E eu vi o que o amor aprontou 

Enquanto eu virava para o lado


Tínhamos em comum

A vida em eterna observação 

Eu distraído com as palavras

Tu sozinha como vítima de um temporal 


O dia desceu sobre nós 

Como um pássaro azul depois do incêndio


Nei Duclós

VIDA

 Nei Duclós 


Vida é o que esquecemos

E ressurge pontual

Em alguns momentos


Vida é o que não temos

Na memória morta 

e seus venenos


Vida é o que não vemos

O amor que assassinamos

Por sermos cegos

O tempo todo


Vida é o que resta

Este poema

E teu corpo úmido 

De desejo


Ainda assim conservo

Essa vontade seca

De viver mais longe

Porque a alma cava no escuro

Por destino manifesto


Vida é o tesouro

Que depois de viver

Em vão procuramos


Nei Duclós

ESCAPE

 Nei Duclós 


Não cabe o poema na abordagem alheia

Não por incapacidade de quem não compreende 

Mas porque o verso sobra e dribla o esquema 

Não por genialidade de quem escreve

Mas porque o verbo sempre escapa pelas reticências 


Não há mistério 

É apenas arte fora da encomenda


Nei Duclós

PERSONAGEM

 Nei Duclós 


Sinto vergonha do papel que desempenho

Neste drama de erros em teatro de segunda

Vilão a maior parte do tempo

Tropeço na biografia de dispersa rede

Precoce terminal, vândalo do tempo


Um dia fui herói, mas era só um roteiro

Aprovado previamente pelo ego pleno

Tudo é um mal entendido, fechem as cortinas

Foge o personagem diante do espelho


Nei Duclós

11 de março de 2023

O MELHOR DE MIM

 Nei Duclós 


O melhor de mim está na madrugada

Salas escuras quintais com lua

Fantasia no lugar das armadilhas

Deita comigo o acervo da doçura


O dia ainda não voltou da rua

Está na balada tomando todas

O tempo adia o toque da alvorada

O amor aproveita o breu e sonha


O melhor de mim pousa no silêncio

Para ouvir teus passos mas recusas

Único defeito que comete a musa

Levar o coração e sumir para sempre


Nei Duclós

10 de março de 2023

GARIMPO

 Nei Duclós 


O amor é uma promessa 

Das garimpeiras do ouro

Cavocam com saias rotas

No barro das amazonas


Procuram o veio mais fundo

Onde se esconde o tesouro

Corações que já se foram

Alianças de um tempo novo


Elas descartam palavras

Que formam um pedregulho

Lavam montanhas de sonho 

Com as mãos sujas de sangue


Garantem com seu orgulho

Momentos de corpo humano

Que ainda ficam ocultos

Em barrancos do futuro


Nei Duclós

PEDIDO

 Nei Duclós 


Só sou feliz contigo, ela me disse

Pedindo para eu ficar


Aceitei, sem noção do perigo


Mulher é sentinela de um anjo caído 

O amor, que nunca faz sentido


Nei Duclós

CAVALO BRANCO

 Nei Duclós 


Estou disponível para o amor que me acompanha

Seja qual for a idade, rústica fantasia

Embrulhada em poesia ou notas ao pé da página 

No corredor ou na sala, no quarto ou na cozinha

E no cenário imaginado de um roteiro absurdo

Onde sou o autor e o mestre de cerimônia 

Que dispõe os convivas conforme dá na telha

E se serve da vida alheia sem nenhuma vergonha


Mas não sou invasivo, fico entre quatro paredes 

Lá fora me aguarda o cavalo branco 

e uma voz me chama de principe, rei de uma terra estranha


Nei Duclós

8 de março de 2023

MINHA MÃE

 Nei Duclós 


Minha mãe se foi cedo, aos 62

Para mim, que hoje sou dez anos mais velho

ela era uma anciã, de lentes grossas devido à catarata

E ficava em pé cada vez mais frágil

Nunca vi minha mãe correndo

Andava devagar e a tudo observava

Parada e só como árvore isolada no pampa


Criou sete filhos, sendo quatro marmanjos que lhe deram trabalho

e cada um jura que era o favorito

Levava as gurias para os bailes e a todos encaminhava nos estudos


Lecionava multidões de alunos que iam dividir o café da tarde conosco

Só sei até o ginásio, dizia

E isso bastava


Tecia puloveres com mangas enormes pois cresciamos e a lã durava mais de um inverno


Decifrava charadas dos jornais usando dicionário Lello

E foi a primeira leitora das minhas poesias

Aos dez anos eu já era um intelectual e dizia para ela

Fiz um poema mas acho que tu não vai entender

Ela achava a maior graça e contava para as amigas


Foi assim que eu não sendo nada virei coisa

Pela mão de quem representava a divindade na terra


Nei Duclós

4 de março de 2023

O ANJO

 Nei Duclós 


O anjo que sopra o poema

Anônimo perfil de um sistema

Cansou de ser coadjuvante 

Invisivel e sem reconhecimento


Quer brilhar, dizer sou eu mesmo

O cara que seduz com a palavra

E se confunde com quem na aparência

Incorpora mas não reinventa

Recita a refeição que vem pronta


Nesse ofício cumpro uma pena 

Estou preso sem assinatura

Sou aquele que não se revela

o anjo que ainda nos  resta 

Das antigas hostes celestes


Sou o exímio flautista da lenda

Que atrai sentimentos e sonhos

Sou a verdade que enfim se liberta


Nei Duclós

28 de fevereiro de 2023

PERGUNTAS

 Nei Duclós 


Onde estás, beldade absoluta?

Que se alimentou da minha palavra

Depois de me ensinar o amor na poesia?


Desculpe invadir, é só uma pergunta

Tanto tempo juntos guarda lembranças 

Não preciso de ti , pois estou a pampa

Namoro a memória, que jamais me abandona


Terminaste os estudos? Cumpres teu sonho?

Ou ainda te amarram em farpados arames?


Dê notícias, mande um telegrama

Dizendo estou bem, mas morro por dentro


Nei Duclós

RECEITA

 Nei Duclós 


A inteligência artificial fará  todo o serviço

Dormirá por nós se for preciso

Comprará os livros que ela mesmo produ:ir 


Fará amor por nós em tardes de domingo

E nos casará com quem inventar

Providenciando aliança  e cerimônia 


A nós caberá a resignação e o silêncio

Porque até a lua está nessa receita espúria 

Faremos serenata nas janelas do infinito

Com as canções do tempo

Nosso companheiro de infortúnio 


Nei Duclós

27 de fevereiro de 2023

BOLERO

 Nei Duclós 


Quando sentir minha falta não serei mais o mesmo

Amor não é bolero que permanece na mesa

Onde passamos as noites planejando a cama 


Depois da última dose o amor toma um táxi

Não fica implorando no final da orquestra

Muda de bar, troca a roda de samba

Desiste da balada e vai para longe


Foi o que fiz, mulher do sereno

Pesquiso nos livros bizarras histórias 

Pois deve haver um jeito de preencher tua ausência

Enquanto me procuras onde não mais me acho


Só deixo uma pista, nem sei se deveria

Um endereço de ilha no último oceano

Lá vivo só como um pobre mendigo

Distante da costa que não está mais no mapa

Dizendo para bandos de indiferentes gaivotas

Que apesar das noites de inútil ressaca

ainda te amo e aguardo tua volta


Nei Duclós

26 de fevereiro de 2023

FÁBULA

 Nei Duclós 


Pousaste perto de mim de asa quebrada.  Te tratei com óleos do Oriente. Voltaste a voar, mas prejudicada. A toda hora cais no meu colo, ardente.


Pergunto de onde vieste e dizes do continente. Mas de qual deserto, ciranda? Quem te abateu e de onde tanto fôlego até chegar à minha varanda?


Curada, voas em círculos sobre minha cabeça. Perdeste o norte, tua cabana. Agora sou eu o teto que toca o íntimo do teu amor que sonha.


Acordas num sobressalto com dor nas costas. Faço massagem, prudente. Adormeces de novo, só de manha.


Não sei o que faço com tantas penas. És filha de um anjo, minha verbena. Varro o que sobra de tuas rezas, quando sobes na nuvem para que eu te veja.


Precisas viajar com teu vôo avesso. Preparo tua mala, com alguns ungüentos. E um caderno de folhas brancas, só de poemas.


Custas a sair, porque és confusa. A toda hora escutas o relógio, o ritmo do teu seio. Está muito acelerado, me dizes. Preciso me acalmar, me dê um beijo.


Enfim alçaste vôo na tarde amena. És agora um ponto no horizonte. Fazes par com a Lua, que com sua presença em pleno dia te homenageia. Eu sabia, és feiticeira. 


Recebi tua carta, pomba correio. Estás na pátria, onde nasceste. Queres voltar, mas não te deixam. Pois és rainha de um vasto reino.


Respondo que posso te visitar um dia, quando a caravana dos beduínos passar por acaso. O difícil é cruzar o mar oceano com meu pequeno barco. 


Ontem enfim ganhei meu ultimato. Ou parto definitivamente para teu trono ou virás com teus exércitos. Mandaste até quebrar as asas de todos eles para que eu possa reconhecer-te.


Deixo meu sítio e minha montanha. Solto os peixes e entrego as chaves para os pássaros. Vou buscá-la, prometo, decisivo. Para isso derroto todos os abutres e os narcisos . 


Essa fábula inventei, quando estava solto. Hoje vivo com meu amor num lugar ermo. Ela tem a fronte de princesa. E uma asa que consertei com meu desejo.


Foi uma longa viagem, mas deu tudo certo. Venci todos os laços que a prendiam. Ela me trouxe nos braços, rindo. E caímos embolados num lençol sereno.


Nei Duclós

25 de fevereiro de 2023

RESPEITO

 Nei Duclós 


Quinhentas vezes falei que te respeito

Por isso te dei de presente este vestido 

Com barra abaixo do joelho

Sem nenhum enfeite mas elegante

Como acontece nas rodas de bom gosto


Porque sei o que é  do teu agrado

Esse corpo prudente sem se mostrar em excesso

E que podemos admirar imaginando só pelo movimento do teu andar


Desconfias das minhas intenções pois fico te falando

Sobre tua vocação de deusa que não se assume inteiramente

Mas sei que adoras meu   cerco de possível amante

Nunca deixas de ser mulher em qualquer momento


A vontade que tens de tirar toda a roupa num rompante

Me deixando no chão como um cachorro

Aí são outros quinhentos


Nei Duclós

23 de fevereiro de 2023

FÁBULA

 Nei Duclós 


Pousaste perto de mim de asa quebrada. Te tratei com óleos do Oriente. Voltaste a voar, mas prejudicada. A toda hora cais no meu colo, ardente.


Pergunto de onde vieste e dizes do continente. Mas de qual deserto, ciranda? Quem te abateu e de onde tanto fôlego até chegar à minha varanda?


Curada, voas em círculos sobre minha cabeça. Perdeste o norte, tua cabana. Agora sou eu o teto que toca o íntimo do teu amor que sonha.


Acordas num sobressalto com dor nas costas. Faço massagem, prudente. Adormeces de novo, só de manha.


Não sei o que faço com tantas penas. És filha de um anjo, minha verbena. Varro o que sobra de tuas rezas, quando sobes na nuvem para que eu te veja.


Precisas viajar com teu vôo avesso. Preparo tua mala, com alguns ungüentos. E um caderno de folhas brancas, só de poemas.


Custas a sair, porque és confusa. A toda hora escutas o relógio, o ritmo do teu seio. Está muito acelerado, me dizes. Preciso me acalmar, me dê um beijo.


Enfim alçaste vôo na tarde amena. És agora um ponto no horizonte. Fazes par com a Lua, que com sua presença em pleno dia te homenageia. Eu sabia, és feiticeira. 


Recebi tua carta, pomba correio. Estás na pátria, onde nasceste. Queres voltar, mas não te deixam. Pois és rainha de um vasto reino.


Respondo que posso te visitar um dia, quando a caravana dos beduínos passar por acaso. O difícil é cruzar o mar oceano com meu pequeno barco. 


Ontem enfim ganhei meu ultimato. Ou parto definitivamente para teu trono ou virás com teus exércitos. Mandaste até quebrar as asas de todos eles para que eu possa reconhecer-te.


Deixo meu sítio e minha montanha. Solto os peixes e entrego as chaves para os pássaros. Vou buscá-la, prometo, decisivo. Para isso derroto todos os abutres e os narcisos . 


Essa fábula inventei, quando estava solto. Hoje vivo com meu amor num lugar ermo. Ela tem a fronte de princesa. E uma asa que consertei com meu desejo.


Foi uma longa viagem, mas deu tudo certo. Venci todos os laços que a prendiam. Ela me trouxe nos braços, rindo. E caímos embolados num lençol sereno.


Nei Duclós

FLOR

 Nei Duclós 


Flor é sempre desejo

Branca ou de outra cor

Revela o que nós queremos

Por prazer,  amizade, amor

Talvez por uma lembrança

De alguém que se ausentou

E envia um ramalhete 

Que pousa no coração 


Somos melhores na linguagem da flor 

Feminina e universal por ser a origem

De algo humano maior


Flor é mulher

Para quem quer o melhor, alvo, alvoroço

Sílaba de uma declaração explícita:

me deseje o bem, no corpo a corpo


Nei Duclós

22 de fevereiro de 2023

AINDA MOÇO

 Nei Duclós 


Não me importo mais em enxergar

pouco. Ou misturar os sons

que já nem ouço. Ou ser chamado

de sonso. E não ter paciência

para o jogo que o dia obriga

na disputa do osso


No fundo é tudo esboço

de uma vida futura, pelo avesso

quando o mundo exaure enfim

seus hábitos e torna-se o que sempre foi

absurdo.


Por isso não se despeça quando eu estiver

morto. Não estarei no aeroporto

para te tratar de hóspede. Nem no funeral,

apenas o corpo. A alma também partirá

para um recomeço num lugar onde a memória

não possui passaporte


Estou pronto, aproveite que ainda sou

moço. E tenho esse dom à mostra

que é a palavra sem rebuços, arte

que aprimoro para dizer o que sinto


Nei Duclós

21 de fevereiro de 2023

AVENTURAS

 Nei Duclós 


Vivo uma vida de aventuras

Viajo nas nuvens

Sou náufrago em remotas ilhas

Refugio-me em sitios abandonados

Depois de ver um crime

Ando pelo deserto até chegar ao cemitério de aviões 

E lá escolho uma sucata que levanta voo até Adis Adeba

Ou Ur, na Caldéia


Pelo fio estendido sobre a cidade escapo no equilíbrio de um incêndio

A multidão torce por mim

Desço a montanha de neve vítima de um acidente

E chego até a trilha

Onde me esperam aldeões com curativos


Meu corpo ferido está exausto

Ninguém me reconhece quando volto

Acabo meus dias num subúrbio


No dia seguinte tudo recomeça

Nado até a ilha


Nei Duclós

BIG BANG

 Nei Duclós 


Nada fica sem registro

Do intimo ao explícito

Para que a palavra sobreviva

À morte das estrelas


E o novo big bang

Nasça como um livro aberto


20 de fevereiro de 2023

EVENTO

Nei Duclós 


Se tudo for fingimento, não perderás comigo

tempo

É frágil o entendimento de que somos apenas

arte

e confundimos a representação com falsidade


Atuar é encarnar personas que circulam

no vento

feitas de carne e gesso, confraria virtual

de sombras


Toque no meu rosto, ele está atento

mas não me pertence, e sim à memória

Em algum lugar nos buscamos

como na brincadeira de esconde esconde


Se ficar claro que é só literatura

vais procurar outro evento

pois sei que o valor está na dor

de repartir-se, real, tormenta

tornado sobre o campo

a imaginação de um beijo

espírito, destino, ar sem fôlego 


Nei Duclós  


19 de fevereiro de 2023

VESTIDA

Nei Duclós 


Me imponho tarefas mas não  cumpro nenhuma

Prometo achar a fonte que levantou dúvidas

Deixo por fazer o livro já maduro


O dia me ocupa em obras dispersivas

Banho, roupa, leitura, comida

Além de dar trabalho para a familia


Tenho posses por dentro, por fora sou mendigo

Não me importa o pouco tempo que ainda resta

Componho melodias, olho para o teto

Fantasio o faroeste onde sou o mocinho


Aguardo na estação que recebe teu sorriso

Vestida de paixão, anel e brinco


Nei Duclós

16 de fevereiro de 2023

MÁGICO

 Nei Duclós 


Você está ocupada mas não baixo a guarda

Estoco a lança não só com a palavra

Rodeio o mel feito inseto instável


Não durmo enquanto não notas o assédio 

Que não é  crime já que não  te invado

Só dentro de mim mora o alvo:


O amor desperto por teu olhar mortal

O mesmo que me deste e agora negas

Arrependida talvez por eu ser mágico

Fico invisível e entorto garfos


Já me disseram para viver dessa arte

Predizer o futuro pelo teletransporte


Já visitei o tempo de anos vindos

Não estavas lá, sem o infeliz  consorte

Preferi voltar, agora sou mais caro

Pouso em teu perfume, voo de helicóptero 


Nei Duclós

ATENÇÃO

 Nei Duclós 


O amor que devotas ao veterano

Seria pura atenção e não amor mesmo

Pois sabes que ele pode de uma hora para outra

Embarcar para sempre na barca de Caronte


Assim mesmo vejo como amor verdadeiro

Pois o cara é pobre e vive de favores

Nada tens a ganhar, privilégios, dinheiro

A não ser o que ele tem de graça, sem esforço 


Talvez sua pegada de larga experiência 

Sua maneira minuciosa de tocar teu cabelo

O beijo sem compromisso com sabor de homem

O riso solto, a companhia doce


Perdes tempo com esse velho, dizem os boquirrotos

E concordas, para não dar bandeira

Soubessem dos motivos de cometer a loucura

Invejariam, pois o amor é raro nessa circunstância


Mesmo entre alguém antigo, como eu, complicado

E uma estrela como tu, gloriosa efêmera 


Nei Duclós

15 de fevereiro de 2023

ANÔNIMA

 Nei Duclós 


Não digo teu nome por obra da segurança 

O amor é  anônimo e te constrange


Estrangeira migrante

sem passaporte 

Passa pelos guardas porque estás de passagem 

Não tens pretensão de fixar residência 

Qualquer coisa te mandas, cobrindo-se de panos


Alto lá! alguém grita, o que afinal escondes?

É o meu amor, dirás, presa em flagrante


Nei Duclós

NATUREZA

 Nei Duclós 


Saia branca um pouco acima do joelho

Que o vento levanta em porções amenas

Esbanjas a graça sem me dar conselhos

Nem se faz de rogada pois me escolheste


Entre tantas te destacas fazendo charme

Boca vermelha tremendo o queixo

Num sorriso pequeno para matar de vez


Sabes o que pega na devoção do sexo

Feito sem temor em terreno firme

Que o amor  cultiva em intimo segredo


Usas um camafeu daqueles antigos

A ilustrar a nudez sem expor os seios

Pois tua blusa sabe o limite do desejo

E deixe que eu imagine todo o resto 


E se me perguntam se tenho preferência

Por tipo de cabelo ou cor de pele

Estatura mediana ou alta ou baixa

Digo que desconheço as opções de gênero

Só sei que és mulher que me pegou de jeito


Nasci para sofrer essa doce presença 

Que esgrimes quando andas balançando o corpo

Síntese que transcende a tua natureza


Nei Duclós

12 de fevereiro de 2023

PRINCESA

 Nei Duclós 


Peĺo poder que tem sobre todas as coisas

O amor te outorga o título de princesa

Não pela linhagem de nobreza

Já que vieste do povo a quem pertences

Nem pela beleza de outro mundo

Que poderias ostentar como um privilégio

Ou pelas virtudes para servir de exemplo

Ou mesmo os pecados que estão por toda parte

Em teu olhar, os joelhos, os ombros nus que arrasam numa festa


Mas porque o amor tem esse dom supremo

De superar o imperio da aparência 

Não deixando que a mais bela  cometa o erro

De trocar o alvo verdadeiro 

Por um qualquer metido a besta


Porque és meu amor ninguém duvide

Que a coroa em tua cabeça é o extremo prêmio

Que um súdito como eu, poeta no cabresto

Carrega no coração, que Deus esteja


Nei Duclós

PROGRAMA

 Nei Duclós 


Você é paga para ser feliz

Sorrir é seu melhor trabalho

Fingir surpresa no flagrante

Usar roupa curta para que perguntem

Encostar-se no sofá fazendo pose

Com as pernas para o ar a sugerir escândalo 


Depois vem para mim, fora do alcance

A pedir comida e só tenho espanto

Como podes ser de todos enquanto minha amante

Por que me escondes, poeira de estrelas?


Essa relação não vinga porque tens vergonha

Medo de perder teu belo sustento

Se souberem que és mulher de um sujeito tosco

Com a idade errada e aspecto de meliante 


Fatalmente te jogariam longe

Pois teu segredo deve ser um charme

E não um pobre bicho que te espera à noite

Com uma refeição de lençol que arranha

E um bruto cobertor para me enrolar sem jeito

A me conversar que precisas do dinheiro

Mas que és minha, e morres se me mando


Nei Duclós

CÍRCULO

 Nei Duclós 


A vida é cega

Sabe mas não enxerga

Que está cercada

Pelo seu próprio fim


Ela se ocupa

e não  cede 

Enquanto envelhece


É quando o mundo perde

Seu poder de treva

E vê o que estava perto 

Num dia terminal

De luz intensa


A vida vai para o infinito 

Oculto durante a terra

Ninguém prevê 

O que já estava escrito


Nei Duclós

8 de fevereiro de 2023

ARRIMO

 Nei Duclós 


Perdi

Deus achou-me entre os escombros

Teus ombros eram o divino arrimo

Em missão de busca


Achei

Um motivo de voltar de novo

Mesmo que tenhas outro destino


Meus trapos vibram ao vento noturno

Fui recebido a bordo


Agradeço a chance

Mar mais amplo do que a longa vida


Nei Duclós

3 de fevereiro de 2023

DESABAFO

 Nei Duclós 


Não me importa  a carreira literária 

Participar de eventos, feiras, palestras

Já corri atrás e deu  em nada

Um autor está só, como casa no deserto


Achei que poderia somar  com meus pares

Mas estão ocupados em tardes de autógrafos 

Viagens ao exterior, prêmios, virtudes

Todos são do bem, apesar das vaidades


Também não quero exercitar vanguardas

Ou pagar pau para poesia clássica 

Tenho meu jeito de escrever atrapalhado


Tudo será esquecido no tempo onde tudo morre


Deveria me dedicar a algum hobby da terceira idade

Cultivo de flores,  insultos  ou conselhos, uma espécie de padre

Ensinar como funciona a suprema arte

Levar tapinha nas costas, ser paparicado


Mas rosnar é da minha bruta natureza

Negar as ilusões da notoriedade

Suportar a artrite, a dermatite, a erisipela

Esperar o fim do verão e xingar o inverno


Não vim à terra a passeio

Quero a lucidez e a devoção dos santos

E teu pobre coração, beldade sem cuidados

Que desce em meu amor, único legado


Nei Duclós

2 de fevereiro de 2023

VAZIO

 Nei Duclós 


Não suporto mais te querer

Sonhar contigo

Precisar de ti


Não aguento o amor sem sentido

Sozinho no amanhecer

Vazio de domingo 


Quem sabe você some de vista

E leve teu cheiro

Teu carinho


Eu me viro

Já sei como sofrer

Sem ser correspondido


Nei Duclós

1 de fevereiro de 2023

JOGADA

 Nei Duclós 


Você acende o que dorme em mim

Dispensa palavras e nem chega perto 

Só com o fogo da tua atenção 

Focada no que digo por necessidade 

Amarga solidão, corpo sem lastro

Pele curtida em mil desertos


Essa chama branda que nada apaga

É tua mão invisível de rainha e fada

Saia de praia, ombros à mostra

Tênis na poeira de campeonatos


É quando me olhas num átimo

Na jogada proposital da tua arte

Vá buscar! me gritas na arquibancada

Você  é  o árbitro, me avisa a felicidade


Nei Duclós

AREIA

 Nei Duclós 


O prazer não pode ser proibido

Entre eu, um cara antigo

e você bonita como obra de arte 


Ninguém conhece direito o caminho

Que o coração tece quando é distraído 

Idade, beleza, ideologias

Nada importa se acontece o carinho


Mais imaginamos do que o toque da pele

Depois da entrega no amanhecer acordamos 


Vês então que não foi um sonho

A noite de núpcias de intenso rebanho 

Fiquei meio derrubado e tu esplêndida 

O sol imita a luz da tua lua cheia


Vivemos assim no impossível romance

Tu estrela do mais alto pódio

Eu areia de praias distantes


Nei Duclós

CALMARIA

 Nei Duclós 


Por que não fui embora?

Para outro país, dado o fora

Poderia então um dia voltar

Mas fiquei, perdi  a hora


Agora não posso mais partir

O mundo fechou as portas

E cansei também de viajar na imaginação 

Meus continentes internos já foram todos descobertos

E uma calmaria, a alma

Prende sem âncora o movimento das velas 


O sol do Equador torra os mapas

Sou despejado na infância sem o apoio do passado


Está na mesa! alguém grita

Hoje tem peixe de rio com farofa


Nei Duclós

27 de janeiro de 2023

BRISA NOTURNA

 Nei Duclós 


Brisa é vento mulher

Não sopra, como um vento qualquer 

Assoma, em forma de flor


Frescor de noturno andar

Quando o verão está de matar


Estrelas forram seu vestido

Rosto de olhar comprido

Tira o mais medroso

Para dançar 


Nei Duclós

26 de janeiro de 2023

EM GUARDA

 Nei Duclós 


Não luto mais pelo que é seguro

Nem acredito em lendas do passado

Planto no presente o fruto maduro

O que procuro sem nenhum cuidado


Ingênuo, direis, isto está previsto

A falsa isenção dos derrotados

Fujo da determinação do que está escrito

Sujam meu nome e invadem minha casa


Pois passem ao largo, inconscientes pálidos  Verdugos de uma operação datada 

Tenho o tirocínio contra o certo errado

Cumpro o que ninguém decide em desacato 


Não há heroísmo no cidadão à parte

O que denuncia a voragem dos esbirros

Anotações de punições falsas


Cultivo apenas uma  convicção, a coragem

Faço da linguagem minha secreta arma

O poema que esqueces mas te põe em guarda


Nei Duclós

25 de janeiro de 2023

AOS PEDAÇOS

 Nei Duclós 


Tu me afasta 

E não é por palavras ou gestos

Por fora chega a ser simpática 

Mas é por tuas florestas, tuas feras

As mágicas que aprontas quieta

Teu olhar que se desvia

Toda vez que me aproximo


Não era preciso tanto esforço em ser avessa

Eu já entendi

Flor que me espedaça 


Nei Duclós

CONVÍVIO

 Nei Duclós 


Estendi a mão sem nenhum castigo

Porque essa é a vocação, sair do umbigo

Depois não me queixei quando fui mordido

Estava previsto, faz parte da confusao que compartilho


Conviver é não entender o sentido

Apenas deixar levar, barco a deriva

No fim dá no mesmo, vamos para o abismo

E nenhuma geração fará a coisa certa


Estamos na solidão e aprendemos

Que existe além de nós algo mais fundo


Quando batemos no chão aí acordamos


Nei Duclós

23 de janeiro de 2023

SERVIDÃO

 Nei Duclós 


O alvo da tua fúria está fora da mira

Situa-se dentro de ti, ira sem rumo

Atinges um inimigo   complicado 

Teu gesto onde a razão se perde


Não precisa perdoar quem merece tua atenção 

Basta ver onde a flecha se aloja

Tua  mão de tacape em punho

A surrar-te achando que bates


Pergunte a suas cicatrizes

Se venceste ou não

Elas lhe dirão, servo do cárcere 


Nei Duclós

CENA

 Nei Duclós 


A roupa não  esconde

Antes mostra o que o corpo sonha

Nós dois no entardecer do Sena


Ou de qualquer outra pintura

Desde que haja nudez em porções de seda

Ou de algodão, o tecido assina 

A obra que és tu, divina criatura


Nei Duclós

ATIRADO

 Nei Duclós 


Não vou insistir, ganhaste o jogo

Nem vou mandar recado para ter esperança 

Ou enviar mensagem por antigos endereços 

Você me conhece, tenho meu preço 

Que é do amor não aceitar conserto 


O que estragou fica para semente

Que sirva de lição para o verbo amante 

Gastei meu latim e não ocupei o trono

ao mesmo tempo abandonei o reino


Hoje é ruína, casca e caroço

E uns objetos atirados a esmo

Não preciso de ti, amor que não confesso


Nei Duclós

21 de janeiro de 2023

AGORA

 Nei Duclós 


Agora que ninguém está vendo

A não ser você e seu olho grande

Quando até a lua se recusa a dizer aonde

meu olhar te encontra nua de um tudo

Pode confessar, formosa nomade

Que este encontro está escrito desde o início do tempo


Foi o Poema que nos deu

Esse rosto de amor sem nenhuma garantia

Apenas tu e eu, palavra que nunca se perdeu


Nei Duclós

CRIATURA

 Nei Duclós 


Pelo tato você enxerga o corpo de quem ama

Mais do que a visão ou o cheiro

E percorre seus acidentes geográficos

O tórax, os ombros, a curva do pescoço

E a ligação entre a coxa e os ossos

OS joelhos que se articulam em pobres movimentos

A planície do dorso, a chuva dos cabelos

E as serpentes que molejam os braços


Tudo isso longe do fazer sexo

Apenas a investigação suprema

Do teu amor humano que não se engana a toa

E sabe que a mão chegará à  essência

Mesmo que não queira

O veneno da atração sem nada que a retenha

Quando então você se atira, faisca no lombo

Lança quebradiça, vitrine de aço 


És um painel preciso de diamantes foscos

Mulher natural sem retoques

Direto do Criador,  vagalume, monstra


Nei Duclós

19 de janeiro de 2023

QUIMERA

 Nei Duclós 


Corpo gasto, desafeto

Só a palavra sobrevive ao massacre

Como estou não mostro

Sou o monstro do que eu era


Mas imagino, quimera

Do desejo como oficina do amor

Dá-me tua mão, maneira

De manter-se vivo

De paixão 


Nei Duclós

BANHO

 Nei Duclós 


Lavou-te o mar, beldade urbana

cultivada na acidez do trânsito

o banho moldou-te o mármore

gotas na taça do champagne


Umbigo que prova o sal, vândala

vinda de fomes e jogo de ânsias

teu gesto endurecido cede à onda

e o corpo ganha ritmo no balanço


Estás pronta, como noiva do Oriente

que busca no olhar a face lânguida

e ondula os braços como serpentes


Desça da carruagem e descalça alcance

o que te dou de graça, neste recanto

de pedra e fendas que sem dó afundo


Nei Duclós

17 de janeiro de 2023

COMPOSIÇÃO

 Nei Duclós 


Procuras a palavra ainda viva

Que se refugia, vítima, na loja de consertos

Nenhuma medicina te mostra o esconderijo

Ela soluça, como um sapato no frio


Teu pé não cabe no calçado

Não alcança a ponta do casaco

Que cobre a fugitiva sem retoques


Tudo é  um disfarce com nenhum sentido

Danças ao som da  confusão

 

Palavra viva, quem me garante 

Que tenho chance, prefiro o lance

De compor sem verso uma canção  


Nei Duclós

FREIO

 Nei Duclós 


É como se o tempo puxasse o freio de mão 

A quarta vira terça 

Ontem é depois de amanhã


A blasfêmia antes da palavra dada

A solução embutida na charada

A confissão que precede o crime

O amor que desiste sem provar o estímulo 

A prisão que condena o tribunal 

A flor do mal devorando a poesia

A vocação inútil , tudo já está feito 

O principio como era no fim


È como se voltasses sem ter ido embora

Prazer que adivinha a hora 

Cama no lugar do portão 

Onde namoro o que só Deus decide


Para que a emoção dure

No tempo certo

Sem previsão pois tudo está perfeito


Nei Duclós

15 de janeiro de 2023

PROGRAMA

 Nei Duclós 


Você é paga para ser feliz

Sorrir é seu melhor trabalho

Fingir surpresa no flagrante

Usar roupa  curta para que perguntem

Encostar-se no sofá fazendo pose

Com as pernas para o ar a sugerir escândalo 


Depois vem para mim, fora do alcance

A pedir comida e só tenho espanto

Como podes ser de todos enquanto minha amante

Por que me escondes, poeira de estrelas?


Essa relação não vinga porque tens vergonha

Medo de perder teu belo  sustento

Se souberem que és mulher de um sujeito tosco

Com a idade errada e aspecto de meliante 


Fatalmente te jogariam longe

Pois teu segredo deve  ser um charme

E não um pobre bicho que te espera à noite

Com uma refeição de lençol que arranha

E um bruto cobertor para me enrolar sem jeito

A me conversar que precisas do dinheiro

Mas que és minha, e morres se me mando


Nei Duclós

7 de janeiro de 2023

FOGO

 Nei Duclós 


Você incendeia a  criatura

Põe fogo onde era água 

Depois não segura


Não tente apagar

Com tua geleira

És pedra e metal

Bizarro bombeiro


Fuja antes de tocar

Para evitar o problema

Pense no que vai fazer

Enquanto é  tempo


Guarde o isqueiro

Até ter certeza

Ela é palha só no começo 

Depois é madeira de lei

Queima para sempre


Nei DuclósFOGO


Você incendeia a criatura

Põe fogo onde era água 

Depois não segura


Não tente apagar

Com tua geleira

És pedra e metal

Bizarro bombeiro


Fuja antes de tocar

Para evitar o problema

Pense no que vai fazer

Enquanto é tempo


Guarde o isqueiro

Até ter certeza

Ela é palha só no começo 

Depois é madeira de lei

Queima para sempre


Nei Duclós

BAGAGEM

 Nei Duclós 


Tudo comigo fica para sempre

Bilhetes de amor, chapéus de feltro

O quintal que grudava no rio

Os acampamentos


Tudo permanece apesar do tempo  

As perdas, estudos, amizades


Guardo bagagem para embarcar um dia

No navio onde serei capitão 

Na direção do destino, o vento.


Nei Duclós

6 de janeiro de 2023

CATEQUESE

 Nei Duclós 


Não devo me aproximar pois estou exausto

Quando querem me ensinar como a vida funciona

Catequese de um verbo em queda livre

Como se eu fosse uma alma sem orientação 


Nada tenho a aprender de tanta autoajuda

Filosofia ao portador em permanente exposição 


Nasci antes de Deus quando Deus desistiu

Do modelo que saiu quando o barro se formou 

Ele partiu para longe em outra direção 

E soprou a alma imortal que perdi no Paraíso 


Vim ao mundo sozinho, um mísero cão 

E nego a caridade desse aprendizado

Do dessemelhante e sábio professor


Vá ler os filósofos que fizeram antes

Mais e melhor do que a vigarice atuante

Seja sacerdote das tuas certezas

Que eu sou de outra criação 


A que sobreviveu escutando os anjos


Nei Duclós

NO AEROPORTO

 Nei Duclós 


Até comprei roupa nova para te conhecer

Banho de loja na véspera da emoção 


Mas você não se impressionou, sonho de mulher

Procurou em meus olhos a essência do que sou 

Mesmo mendigo eu faria melhor

Se soubesse o que vês com tua intima flor 


Riste do meu esforço de aparecer

Como um príncipe de shopping e cabelo de jogador

Preferiste as palavras que enviei a teu dispor

Teclas de veludo e versos de amor


Ao me revelar ao vivo foi encantador

O modo como demonstraste tua decepção 

Então eu atirei toda a roupa ao  chão 

E  voei no aeroporto mais do que um avião 


Nei Duclós

2 de janeiro de 2023

PERIGO

Nei Duclós 


Posto nas redes o que ao vivo não me escutas

Foges de mim quando me aproximo

Porque achas já sabido o que eu não disse

Como se fosses sábia pitonisa egípcia 

E eu oráculo de uma Creta de subúrbio


Então me fecho e guardo para o éter 

O que deveria enriquecer na tua consulta

Pelo fato de existirmos no concreto

E não essa assombração de esconde esconde


Um beijo então  

nem se discute 

Por isso fantasio com as estrelas 

Elas me amam só que ainda não sabem

Saberão quando eu conseguir chegar bem perto


A poesia é expediente perigoso

É a única que as sereias temem

As musas se protegem, saem correndo

Na hora em que chego com meu verso


Prometo que ainda sou inocente

Mas mulher não acredita e fica atenta


Volte, digo

Mas é inútil meu apelo


Nei Duclós