26 de julho de 2024

NAMORO

 Nei Duclós 


Tropeço só para atrair mulher bonita

E pegar da mão com um ar aflito

O momento em comum transmite o mimo

Que o terno coração solfeja vivo


Você finge que acredita na armadilha 

E sorri compactuando ajuda

Para a plateia de desconhecidos

Que admiram o casal de improviso


Estamos namorando firme, bem campantes

mas ainda não somos amantes, digo num aviso

no almoço festivo das familias

Garanto, entretanto, que está a caminho

O amor que procuro ao andar sem aprumo


Nei Duclós

24 de julho de 2024

NA RODA

 Nei Duclós 


Não leve a mal o que eu digo

Falo no bom sentido

Não se sinta ofendido

Palavras tem seus caprichos


ÀS vezes um elogio

Com pitadas de ironia

Só para tirar a pompa

Da homenagem ao amigo

Pode ferir sem querer 

Basta perder-se no estribo


E não adianta escolher

A mais direta assertiva

O verbo gosta de luxo

E adora ser preferido


Nem devo achar que a trova

Por mais enxuta e sem brilho

Esteja a salvo das manhas

De um repente nativo


O certo é  ficar nas pilchas

Sem querer romper a roda

Passar em silêncio o amargo

Atiçando quieto as brasas


Assim nos entenderemos

Como compadres na aurora

Se preparando para a lida

Do rodeio lá de fora


Um guasca nunca se afoba

Sabe que chega a hora

Em que a adaga do inimigo 

Pode atingir a carótida 

Então vou gritar em guarda!

Para marcar um aviso

E te deixar com recurso

Diante do sacrifício 


E tua resposta será 

Depois de todo o perigo

Um aceno na cabeça 

Que agradece sem ruído 

Sem precisar testemunha


O valor de ser conciso

É o que tem mais qualidade Nenhuma literatura 

Ganha da nossa amizade 


Nei Duclós

PULSO

 Nei Duclós 


Não me preocupa o acesso à grande arte

Ele estará aberto e por toda parte

Não secará o canal que aponta o norte

Na bússola do verso ou mapa de estrelas


Não sinto medo de perder-te, portal do tempo

Posso passar ao largo por ser disperso

Mas sempre acharei um meio de cruzar o espelho


Falo por amor, não por soberba

Saber que fica além dos nossos termos

Algo maior que nos alimenta


É a certeza de termos pulso nesta tormenta

Sem fôlego, mas o coração a pleno


Nei Duclós

22 de julho de 2024

UM PASSO A MAIS

 Nei Duclós 


Um passo a mais faz diferença 

Quando caminhar é uma proeza

Ando sem pressa dobrando os joelhos

Penitente fisioterapeuta


Economizo espaço nos atalhos

Para evitar cair ou ter cansaço 

Já sei onde tudo fica pronto

Sobre a mesa ou dentro do armário


Difícil é localizar as prendas

Par de óculos ou frigideira

Quando elas somem e reaparecem

Fixas no lugar de sempre


Aprendi a memorizar o ponto

Onde se situa o que estou querendo 

Como aprendi tudo na decoreba

Basta perguntar aonde


Todos apontam o que deixei disperso

Nesta vida cheia de mistérios 

Digo então que não estou surpreso 

Eu já sabia, faltava mais um passo


Nei Duclós

ESCONDIDA

 Nei Duclós 


Se escondes teu rosto com flor 

Para disfarçar a beldade

É porque és meu amor

E não quer que ninguém saiba


Como eu nesta jornada 

Que evito mostrar a cara 

Não digo o que faço quieto

A identidade raspada


Se um dia me procurarem 

Estarei fora da área 

Junto à flor que te resguarda 

Canteiro em beira de estrada 


Nei Duclós

PERTENÇA

 Nei Duclós 


Não sei o que sinto ou penso

Por isso acho que escrevo

Quando no fundo me fecho


Não tenho a chave do cofre 

Onde guardo meus segredos

Na contra-luz adivinho

Oculto palimpsesto


À confusão eu pertenço

Mudando o perfil do verso

Escapo quando perguntam

Se sou eu esse de fato


Sou eu mesmo mas disfarço 

Uso máscara de gesso

Atravesso as geleiras

Sem cobertor ou choupana


Por que confesso meu erro 

Sem olhar as consequências?

Melhor seria manter-se 

Remando em água corrente


Mas a verdade convence

Ao levar-me sem descanso

Que ninguém sabe ao certo 

Por que raios nós vivemos


Nei Duclós

QUINTAL

 Nei Duclós 


Na frente tenho um jardim

Nos fundos tenho um pomar

Planto babosa e jasmim

Colho laranja e romã


Se depender de mim

Não saio deste lugar

Ainda sou um guri

Que brinca sem reclamar


Não devias ser assim

Dizem para me chatear

O mundo é o seu destino 

Não perde por esperar


Minha vida é aqui dentro

Lá fora, outros quinhentos

Prefiro ficar no centro

Nasci para ser semente


Nei Duclós

20 de julho de 2024

MISTURA

Nei Duclós 

Troco a noite pelo dia
Durmo na hora do almoço 
Acordo perto da lua

Vou trabalhar na madruga
Visto pijama na esquina
Puxo coberta às duas
Da tarde fria sem nuvem 

Um hábito tão bizarro
Surgiu sem nenhuma culpa
Talvez seja o meteoro
Ou as mudanças do clima

Todos notaram mas calam
Respeitam o louco da rua
Tomo banho de caneca
Quando bate a ventania

Depois volto para casa
Cumpro rígida rotina
Bato relógio do ponto
Na cama onde fantasio

Sou o próprio vagabundo
Na cidade dos distintos
Todos jantam no crepúsculo
Eu lancho na Ave Maria

Café preto com torradas 
Num avesso de alvorada
Meu corpo é roupa de gala
Minha sesta é  a poesia

Nei Duclós

19 de julho de 2024

REBENTO

 Nei Duclós 


O Tempo é pura maldade

Te ilude na mocidade

Apronta no fim da tarde


O Tempo é só conversa

Promete quando começa 

Cumpre na terceira idade 


O Tempo inventa a memória 

Depois esquece

Desperta a porção de fera

Numa hora de doçura 


Ele só teme o poema

Que lhe aplica um flagrante

E explica porque fabrica

Depois que tudo acontece


O Tempo começa antes 

De existir nascimento

Rebento que se desenha

No vento que mexe a saia


Nei Duclós

17 de julho de 2024

JURAMENTO

Nei Duclós 


Não é sincero o amor que se declara

Ele sente vergonha quando forçam a barra

Pedindo que registre o que o peito esconde 


Amor é bonde que escolhe a liberdade 

E trafega fora dos trilhos, águia sobre o monte

Anda de banda sem tocar o banjo

Cantor solo de blues, longe do público 


Rosna quando ouve um eu te amo

Sabe que é falso porque amor não fala 

Cala o que mata num relance 

Quando me olhas perdida no horizonte 

Silvo de cobra, mudo juramento 


Nei Duclós

14 de julho de 2024

VIZINHOS

 Nei Duclós 


Prefiro não entrar no teu aprisco

Onde cultivas espécies adventicias

Plantas invasoras, bizarro paisagismo

Espadas e espinhos entre flores carnívoras


Prefiro tua companhia num espaço comum

A rua do fim do bairro

A praça que já não existe 

Lá jogamos futebol ou assistimos a retreta

E não discutimos política 


Somos lados opostos a mercê dos facínoras 

Os que nos querem divididos 

E não vizinhos de muro baixo

E almoços de família nos domingos


Nei Duclós

13 de julho de 2024

SESTA

 Nei Duclós 


Não importa que eu esqueça tanta coisa

Cenas, detalhes ou poemas

Agua da montanha deixa à parte

algumas correntes distraídas 

Que se perdem no trajeto do oceano


Gotas desse desperdício 

Servem insetos e flores que não duram

Ou então deslizam pelas pedras 

do mais puro esquecimento


Foram deixadas de lado mas não se ressentem

Carregam as nuvens em dias quentes 

Lá encontram outra identidade

Para chover no que resta das lembranças

Alimento de versos sem sentido

Que não descobrem de onde vem a arte


Vem da perdição e da preguiça

Que o mundo tem na sesta das vontades


Nei Duclós

12 de julho de 2024

PRINCESA

 Nei Duclós 


Quando chega a noite acordo com as estrelas

E exerço a voz sem compreendê-la 

Porque vem de outro céu a semente do poema

Que não se revela na sua natureza


Digo que são anjos mas pode ser o vento

Broto de uma planta, fruto ainda verde 


Tudo me ignora na hora suprema 

Mas tenho Deus olhando a porta

Por onde entra a arte, vestida de princesa


Nei Duclós

9 de julho de 2024

ADEUS À MOCIDADE

 Nei Duclós 


Leio assustado sobre o esforço que alguns bilionários fazem para rejuvenescer

Eles tem medo de ficar velhos


Eu ao contrário tenho medo de voltar a ser jovem

Incomodar os pais

Falar merda colocando pessoas próximas em risco

Ir a eventos exibindo com orgulho um aspecto deplorável

Fazer desaforo nos empregos que joguei fora

Fugir dos compromissos

Descuidar da própria literatura

Esnobar amizades verdadeiras

Deixar passar as oportunidades

Desperdiçar talento achando que é coragem


Por isso sem nenhum esforço 

Envelheço devagar com uma sensação de alívio

Não que esteja totalmente curado

A qualquer hora posso voltar a cometer uma bobagem

Esquecendo meu adeus à mocidade


Nei Duclós

ACENO

Nei Duclós 


Chamam sedentário quem não sai de casa

Preso a rotinas de sufoco

Mal sabem que o Tempo nunca é o mesmo

E nele trafegamos sem retorno


Nenhuma terça-feira se equipara

Ao acúmulo de memória nesse dia

Ela inaugura, esse é o seu costume

Também não tentamos ser idênticos

Ao que fomos na última quarentena


Conversa, costumam dizer

Você só justifica sua preguiça

Vá passear, seja um contemporâneo 

E não esse arremedo de pontífice 


Pode ser, admito, mas lembro 

que cruzei o pampa de carona

E trabalhei em jaulas de leões

Em muitos anos de puro atrevimento

No veloz rodízio dos peões 


E hoje, fixo, pensativo

Assistindo todos os assuntos

Não troco meu sedentarismo

Pela conquista do Himalaia


Moro no solar da poesia

Onde o Tempo chega de viagem

E descansa perto de uma praia

sabendo que ainda continua

Como as árvores com raízes e seus frutos

Que não saem do pomar da fantasia

mas acenam para os anjos que o convidam

Para a vida em qualquer procedimento


Nei Duclós 

7 de julho de 2024

RESPIRAR

 Nei Duclós 


Leve uns versos para viagem. Não são para ler, mas para respirar.


Posso te tocar? Se deixares, me tocarás.


Te quero tanto que te pus no bolso. De vez em quando tiro para ver teu rosto. É idêntico ao presente que me deste, um doce.


Tudo é para ti, essa arte que extraí do meu silêncio, melodia que compus contigo dentro.


Não domino mais o curso dos versos que lancei ao mar. Eles aportam em ilhas do teu olhar.


Reserva um tempo para outras coisas, disseram. Eu reservo. Mas o amor é como criança, sempre se mete no meio.


A liberdade é uma prisão sem ti.


Passei rápido por você. Deixei a seus pés, como sempre, tudo o que sou, nessa passagem.


Preciso me atualizar. Vou ler tuas páginas.


Dividi a cama contigo. Te amontoaste em busca de abrigo. Depois partiste porque estavas perdida. Mas deixaste tua blusa cinza, para vir pegar em seguida.


Sabe quem te ligou? Alguém. Não disse o nome, só chorou um pouquinho.


Preciso de um coração novinho, disse ela. Aquele perdi, quando me deste o fora.


Você não cansa disso? perguntaram. Sim, mas quando descanso volta tudo, disse ele.


Meu tempo livre está preso em teu vestido.


Cultivei o correio. Reguei o endereço. Fui entregue de manhã, quando ainda estavas com sono.


Esqueci o que ia dizer. Acho que foi essa luz. Fecha um pouco os olhos para ver se eu lembro


Lês o poema que escrevi no papel em branco do coração.


Expliquei mecânica quântica naquela tarde em teu quarto. Meu toque era partícula e onda ao mesmo tempo.


Serei como um espírito. Puxarei pelo teu pé até ouvir teu grito. Aí te trarei para perto como se faz com uma flor tonta de suspiros


Pedes colo trazendo teu cheiro e teu coração ofegante para perto do meu rosto. Morro em ti, tesouro.


Nei Duclós

FUNDO

 Nei Duclós 


O Tempo tem poços de tempo 

Andamos na superfície 

Mas de vez em quando 

um redemoinho 

Nos leva para o fundo 


É quando encontramos parentes perdidos

Momentos da infância 

E o sentimento

Única prova de amor

Da nossa pobre existência 


Nei Duclós

4 de julho de 2024

DEIXO TUDO PRONTO

 Nei Duclós 


Deixo tudo pronto

Quintal com poço artesiano

Pomar de maçãs de ouro

Pedra entre água corrente

Floração de pessegueiro


Canil e galpão de feno

Um telhado sem goteira

Luar preso na varanda

Arte com toalhas de renda


Janelas de biblioteca 

Versos de amor na parede

Uma escada para o sótão Garagem com ferramentas


Bebedouro para os pássaros

Um portão lá pelos fundos

Horta ao lado das roseiras

E mais nada. Está feito


Para quando eu for embora

E deixar tudo direito

Minha porção de memória

Meu coração sem conserto


O tempo é onda que quebra

Na praia onde mora o vento  


Nei Duclós

RODEIO

 Nei Duclós 


Escrevo de qualquer jeito

Para o verso sair perfeito


Escrevo na lata

Sem vestir terno e gravata 


Não tenho mais tempo

De ficar frente ao espelho 


Não pergunto se houver rima

Não ligo se fico velho


O poema vale o risco

Só quando escrevo existo


Dizem que vida besta

Cada um tem sua sina 


Um anjo no meu ouvido

Sopra o que mais preciso


Por isso não me penteio

Nem uso sapato preto


Sou servo do devaneio

Monto verbo no rodeio


Nei Duclós

26 de junho de 2024

NA PORTA DO CÉU

 Nei Duclós 


Velhice é adaptação. 

Chamam de terceira idade e você aceita.

Vem os cabelos brancos e você acha um charme.

Começam as rugas e você não se importa.

Os cinco sentidos regridem e você acha natural.

Começa a andar trôpego e compra uma bengala.

É xingado ao volante mas você se acostuma.

Ninguém mais te dá a mínima e isto parece um alívio.

Você não sai mais de casa mas tem a Internet.

Tua geração inteira vai para o saco e você se sente um privilegiado sobrevivente.

Não dá mais bola quando perguntam se tomou o remédio "direitinho".

Diz consulte o Google quando perguntam qualquer coisa.

Sabe que a experiência não traz mais sabedoria.

Não se desespera quando as palavras somem da mente.

E aí vem o Alzheimer e você esquece tudo e se livra até de recomeçar.

Pior é confundir a própria identidade e ter de berrar para São Pedro, surdo depois de dois mil anos:

- Sou Jack o Marujo. Me deixa entrar antes que eu me esqueça.


Nei Duclós

22 de junho de 2024

PRIMEIRO AMOR

 Nei Duclós 


Quando desisti do primeiro amor

Contraído aos 13 anos sem noção 

E perdi o caminho da paixão 

Que em menino me transtornou

Desisti por me achar um sonhador 

A cultivar fantasias, por favor!

Eu não sabia que sem querer abria mão 

De todo amor que viria bem depois 


Nem que eu teria chance com você 

Bailarina do rosto sem igual

Bastaria ser só o que senti

Ao te ver em todo o esplendor


Nei Duclós

20 de junho de 2024

NA CURVA

 Nei Duclós 


Pareces de trança, em foto antiga. 

Mas são só sardas, em imagens vivas. 

Te pego na curva, com teu vestido. 

Toda de versos tecida.


Nei Duclós

10 de junho de 2024

VARAL

 Nei Duclós 


No primeiro sol expus a roupa

Que a máquina lavou de madrugada

São algumas peças, a oferta é pouca

Não encontro os modelos adequados 


A indústria trata com suspeita

Quem extrapola as medidas do esquadro

Escassa vinha para quem é grande

E não tolera números apertados


Assim fico sem meia ou sapatos 

Pois não se encontra mais 44

Vendemos tudo, dizem sorridentes

Os balconistas cretinos do mercado


Devo importar tudo da Tartária

Aqui só temos uniformes bem pequenos

E chapéus que não cobrem a carcaça


Mas o que tenho serve, mesmo que eu repita 

Todo dia a mesma indumentária 

Como a calça jeans que eu sempre usava

Quando vivia pobre sem salário 


Nei Duclós

FOLHETIM

 Nei Duclós 


Descobri tardiamente certo best-seller

Pois moro confinado num pequeno espaço 

E nunca saio fora dos redutos 

Onde conservo poucos livros sóbrios 

Os que não alimentam modismos literários 


É uma descoberta triste ver tanto sucesso

Que já não faz efeito pela ação do tempo

Mesmo que seja recente no calendário

E a fila de autógrafos ter dobrado a esquina


É como chegar atrasado no funeral do amigo

Restas flores murchas sem nenhum sentido 

O que foi homenagem agora também morre

E o sepulcro solitário amarga esquecido


Não que eu despreze o frisson das vendas

O alvoroço às vezes acerta, mas é raro

Tenho volumes preciosos em meus armários 


Normalmente isso que parece o máximo 

é apenas o recorrente marketing

Prove esta novidade você se sentirá nobre

Dentro da grande redoma do privilégio 


Melhor ficar na tua, ogro perverso

Leia a Lua, que não te engana à toa

Ela publica capítulos de um folhetim modesto 

Que são as fases que não somem nunca

Pois sempre voltam como o amor eterno 


Nei Duclós

9 de junho de 2024

GAIA

 Nei Duclós 


Ventos: a terra respira.

Rios: o sangue circula.

Mar: existe uma alma.


Montanha: Deus medita.

Lagos: os anjos se banham.

Selva: o jaguar te enxerga


Nuvens: o céu cria filhos.

Raios: gigantes rabiscam.

Chuva: o sonho descamba.


Noite: manto de estrelas.

Dia: chapéu de brisa


Inverno: o avô pega o ônibus.

Verão: um jardim de formigas.

Outono: um tio puxa briga.

Primavera: a rosa desfila


Deus: o fim é o início.

Homem: irmão de sementes.

Mulher: mudança de tempo


Praia: Netuno é criança.

Velas: há um motor na esperança.

Porto: o amor vem à tona


Sonho: o passo imagina.

Vigília: o olhar está frio.

Sono: a vida se abriga


Nei Duclós

7 de junho de 2024

OS MELHORES DE NÓS

 Nei Duclós 


Os melhores de nós foram embora

Afogados, feridos, devastados

Junto com suas cidades, animais, casas

Construídas por mais de uma vida de trabalho


Foram vítimas não do clima ou do ambiente

Mas dos demônios 

Mestres do dilúvio provocado


Hoje há um Rio Grande do Sul no céu 

Flutua nos campos e coxilhas das nuvens

Os ponchos batidos pelo vento são aves migratórias 

E a lua o olho que pisca para nós em fases distintas


Foram embora os melhores de nós 

Façamos por merecê-los 

Fomos salvos porque serviram de modelo

Da luta, da fé, da esperança 

E do amor, que é o nome próprio da terra


Nei Duclós

MERGULHO

 Nei Duclós 


A fé é profunda como o alto mar

Fico na superfície sem me assustar

Busco a praia que ainda dá pé 

Nas ilhas de submerso olhar


Ignoro as criaturas abissais

Os milagres dos santos e dos jograis

Os perigos da correnteza e do por-do-sol


Acredito que chegarei ao meu lugar

Para ser recolhido no exausto porto


Tenho fé que aprenderei a ser melhor

Mergulhador que respira por amor


Nei Duclós

6 de junho de 2024

A VOZ DO ANJO

 Nei Duclós 


Não releio, não reescrevo

Assim mantenho intacta 

a voz do anjo na letra 

Que sopra já corrigido

O escrito no Paraíso


Alguém lá deve orientá-lo 

Na sua faina esquisita

De repassar aos humanos

A incerta literatura 


É certo que não escuta

Conselhos de veteranos

Possuídos de parâmetros 

Volumes de capa dura

Recitais de enorme fama


Meu anjo jamais descura

De rasgos tonitroantes

Mas antes faz uma escolha

Prefere a profunda música 

Do verso morto de fome 


Assim encarno os cadernos

E as asas do anjo roto

Empresto só a caneta

Mediunidade fajuta


Sou o poeta das nuvens 

Onde moram os espíritos

Talvez seja eu um deles

A ditar o que publico 


Nei Duclós

4 de junho de 2024

AGRADEÇO

 Nei Duclós 


Agradeço pelo que tenho

75 anos de vida

Uma casa, uma família 


Agradeço pelo que tenho

Criado em casa da esquina

Frente ao colégio marista


Agradeço pelo que tenho

A prosa e a poesia

Em mais de 40 livros


Agradeço pelo que tenho

A fé, que não me abandona

E o sonho na biografia 


Agradeço pelo que tenho

Ter estado na Paulista

Morar em Santa Catarina 


Agradeço pelo que tenho

Uma saúde para o gasto

E um mensal benefício 


Agradeço pelo que tenho

Em cada canto um amigo 

E o prazer da fantasia


Agradeço pelo que tenho

Um país, amor maior

E gaúcho, minhas raízes 


Nei Duclós


Nota: não é meu aniversário, que é em outubro. O poema é inspirado nos sobreviventes da enchente, que agradecem pela vida. Precisamos seguir essa lição de tanto sofrimento e agradecer o que temos.

28 de maio de 2024

DO AVESSO

 Nei Duclós 


Só digo o que não vem na cabeça 


Só leio o que não me cai nas mãos 


Só escuto o que nunca pensei


Só vejo o que não consigo enxergar


Só mostro o que vou esconder


Só pergunto o que tenta calar


Só respondo o que jamais perguntei


Só tenho o que deixei escapar


Só volto quando não desisti


Só amo se for a única lei


Só sonho o que já realizei


Só canto o que nunca ouvirei


Nei Duclós