30 de setembro de 2024

TUDO CONTIGO

 Nei Duclós 


Tudo o que você faz eu gosto

Tudo o que você é eu curto 

Tudo o que você diz escuto

Tudo o que você sonha abraço 

Tudo o que você esquece passo 

Tudo o que você lembra assumo

Tudo o que perde procuro

Tudo o que você acha encontro

Tudo o que você joga apanho 

Tudo o que você quer eu tenho

Tudo o que você nega esqueço 

Tudo o que come eu sirvo 

Tudo o que você sofre apago

Tudo o que você ganha eu somo

Tudo o que você toca eu tremo


Nei Duclós

27 de setembro de 2024

FATURA

 Nei Duclós 


Flagrei-te moça enquanto eu veterano 

O tempo congelou teu rosto

E em mim escavou um reino

De vestígios sem importância 


Não importa, tudo é virtual neste século torto

Vivo no troco depois de pagar a conta


Minha esperança é namorar-te primeiro

Apagando a fatura do nosso desencontro


Nei Duclós

26 de setembro de 2024

 Quando partimos, deixamos o coração na chuva. Ele é anfíbio, respira por memórias.

Nei Duclós 

AMOR É VONTADE

 Nei Duclós 


Teu encanto é uma fina camada 

Que não sai com a roupa ou a maquiagem

Gruda como segunda pele

E assim permanece resistindo ao assédio 


Desperta contigo intacta

Apesar do gigante ao teu lado

Que não vence no auge do amasso

Se entrega, e o encontro dá certo


Amor é vontade

Tua essência é o que te cobre

Esse véu, segredo de seres tão bela


Nei Duclós

ACASO

 Nei Duclós 


Escapa de ti o que pensas ser destino

Algo substitui

Um susto, um desvio, uma sílaba 

Vida é o que o Acaso apronta

Quando atiça


Nei Duclós

21 de setembro de 2024

EM SEGREDO

 Nei Duclós 


Selecionei um trecho da tua imagem. Aquele em que te entregas em segredo.


Eu ia dormir, mas pensaste em mim. Não resisto a um chamado em voz alta.

    

Queres dar um tempo? Me passe alguns anos.


Como sou gigante, me tornei exilado da doçura. Então surgiste, flor de seda pura.


Agora sim, durmo contente. Fiz versos para povoar teu sonho.


 Como na tua mão, fada de outro mundo. Sou tua criação, ser errante.


Crio a esmo. Trigo com ervas do campo. Depois não colho, porque cansa muito.


O tempo nos reserva uma surpresa. Viajamos sós e nos reconhecemos no convés, depois de um cinema.


Você é tão adorável, estrela cadente.


Não sei o que estou pensando. Não costumo olhar o rastro do meu barco a remo.


Tens aquela postura de ter desistido. Mas te empinas para a frente, perfil de seios. Assim te entregas quando recitas o poema.


Não tenho profundidade, tenho cataventos.


Quando me conheceste, eu era outro. Agora que és outra, descubro que sou aquele.


Sou feito de abandonos. São tantos, espalhados por toda parte, que fácil me encontras.


Para não esquecer, me beije. A memória mora nessas besteiras.


Faça outra coisa. Que eu farei o mesmo.


Vou te mostrar minha coleção de borboletas. Só que todas voaram.


Todas as fotos são antigas. Somos um álbum de retratos.


Digo coisas sem sentido porque assim me sintonizo com vibrações fora do circuito.


Se és amor, levante a mão. Eu aponto em meu caderno de esperanças.


Nossa palavra é limitada pelo que somos fisicamente. Para extrapolar é preciso jejuar e só depois de 40 dias comer alfinetes.

 

Não somos objetos. Somos sujeitos ao desejo.


Mas vai piorar. Agora vou aparecer gigante sobre a cidade, como Godzilla cuspindo fogo. Saia do cinema correndo.


Também não gostei quando alguém me apresentou dizendo meu nome para mim mesmo. Achei over.


Perdeu a graça quando me viste. Faltava o rosto imaginado. Deste as costas e eu lá estava, imagem configurada pelo teu espelho.


É uma pena seres minha amiga. Poderíamos exercer o vale tudo da luta livre.


Vão rir de ti, não revide. Há mais graça na planta que imaginas florir do que na falsa armadura da razão e seus convites


Manténs distância lendo poesia. É um truque do teu não, lisinha.


Se perguntarem quem és, diga: solidão. Não vão acreditar, estrela do mar.


Fui rei para te fazer a vontade. Depois abdiquei, quando viraste voluntária na colheita do trigo.


Venci a guerra mas não ocupei o trono. Fiquei contigo, desvio de um exército.


Diga ai que eu fico. Não resisto ao teu capricho.


Lembre da beleza quando eu for embora.Peguei emprestado de tuas asas.


Aguardas, soberana, que eu me desperdice. Depois me acolhe, aos pedaços, em suas asas de espuma.


Meu poema reza no crepúsculo.


- Sou muito perigoso, disse ele.

- Morres de medo de ti mesmo? disse ela.


Nei Duclós

19 de setembro de 2024

COFRE

 Nei Duclós 


Guardo o que descubro pois não vale a pena 

Anunciar os segredos mais profundos

Não se percebe o que muda o mundo

Ou então há medo na imobilidade


Acumulo insights que bem poderiam

Fazer a diferença em vários assuntos

Pode ser soberba, penso usando o freio

E me calo no calor dessas verdades


Há também a chance de outros dizeres

Que acertam o ponto que vislumbrei sozinho

Melhor então deixar que o vizinho 

Ganhe o crédito que jazia abandonado


Assim me manifesto, recolhido a tempo

Sem usufruir de inúmeros presentes

Passo pela vida anônimo e frio

Meu único prêmio é manter a fonte

Das revelações dentro de um cofre


Nei Duclós

18 de setembro de 2024

TROCA

 Nei Duclós 


Quero voltar, só o tempo é seguro

Porque está feito como um fruto maduro

Dia perfeito em que tínhamos margem

Para o certo e o erro que enfim sobreveio


Quero voltar estendido no pampa

Lençol onde dormem os planos do vento

E o fogo se aquieta na boca da noite

Barulhos de bichos nas dobras da sanga


Sei que é mesquinho o desejo de infância

Depois que perdemos as amarras da terra

Prometo uma prenda ao chegar de surpresa

Em troca o perdão e o amor em sossego


Nei Duclós

ESQUECIDOS

 Nei Duclós 


Tudo o que vemos jogamos fora

Não no esquecimento

mas na memória

Guardamos o tempo sem serventia

Damos adeus todos os dias


Tudo se repete, daí a indiferença 

Minha tia deixou um estranho legado

Pilhas de caixas e vidros amontoados 

Tinham tampa, se justificava

Poderia precisar em determinada hora


Nunca usou tantos guardados 

Era una forma de grudar momentos

Que no fim se foram, como sempre


Dizem que no desfecho passa um filme nos olhos

Toda vida em capítulos de uma série única

Talvez nos reservem algo inédito 

Imagens que perdemos e que um dia voltam

Para nós, os esquecidos da miséria 


Nei Duclós

16 de setembro de 2024

RELENTO

 Nei Duclós 


Dormimos ao relento de um amor no começo. Complicado jogo de cobertas. Acordamos em alto mar, mortos de espanto.


Domar a vontade de perder-me. Mergulhar na luz que te desenha


Venha dizer, maçã e gerânio. Sopro macio, que cruza o oceano.


Nei Duclós

ESCUTO FLORES

 Nei Duclós 


Escuto flores ocultas na estação

Esperam passar o fogo nos jardins

Sabem que morrem se emergirem inseguras 

No mundo cultivado pela dor


Mas não suspiram nem gemem na opressão 

Das grutas sobre as nuvens invisíveis 

As que tardam a chuva


Dão voz ao vento com tontos perfumes

Convidam o céu no rumo do futuro

Possuem as palavras há tempos esquecidas

Paz, prazer, reflexão e vida


Só se concentram no frágil existir 

E isso é música composta na mudez

Parece estranho mas é assim que funciona

Mesmo na loucura e a insensatez


Eu ouço porque lembro como era

Na minha infância a doce primavera

E hoje na idade adulta ainda procuro 

onde estarão no tempo terminal


Elas se situam no meu pobre coração

Firmes no sonho apesar de todo o mal


Nei Duclós

DECISÃO

 Nei Duclós 


O que pode a palavra diante do assassinato?

O que pode o verso sem nenhum aparato

A não ser o poema e seu passo em falso?

O que pode o amor diante da fraude?

O poeta em adiantada idade?


O que pode a verdade se não acontece

Na mente do próximo e na vida afora?

O que pode o sonho em meio à catástrofe?


O que pode a oração sem a fé que a sustente?

Pobre coração que no tempo sofre

Quem virá em socorro se meu gesto tarda?


Devo uma resposta e para isso preparo

Não uma guerra mas algo mais forte

Minha decisão de não ser covarde


Nei Duclós

15 de setembro de 2024

ORAÇÃO DOS MELHORES DIAS

Nei Duclós 


Que o Senhor nos proteja da tristeza

Nos proteja do pânico 

Da desesperança 

Nos proteja do remorso e da raiva


Que nossa fé não seja credulidade

Que o amor não ceda à indiferença 

Que o crime se afaste

Que a vida se transforme 

Que o hábito não vire rotina

Que possamos exercer a arte

E viver da excelência do nosso ofício

E que nossas ações sejam livres e solidárias


Que o desejo não nos transtorne

Que o sonho nos ilumine

Que os dias sejam nosso avanço 

Em direção ao humano destino da salvação 


Assim seja


Nei Duclós

13 de setembro de 2024

SUMIDA

 Nei Duclós 


Faz o oposto do que digo

faz por gosto, faz por birra

me condena a ver navios

Some quando mais preciso


Nei Duclós

12 de setembro de 2024

VIVO

 Nei Duclós 


Vivo porque resisto e é bom

Porque tenho o dom

De ficar vivo


Da fase terminal desisto

Não quero dar o exemplo do final


Não que escolha o riso 

Como antídoto da dor

Todo drama é comédia 


Vibro na trama desta peça 

Sem valor

O que parece acabar começa 


Vivo porque a vida é um sopro

Como no tango Volver


Nei Duclós



PRESENÇA

 Nei Duclós 


Chegou sem pedir licença 

Com os ventos da manhã 

E ficou para sempre 


Não é apenas mulher

É um tormento

Quem pode com tua presença?


Passas a limpo

Meu pobre universo


Nei Duclós

PRISÃO

 Nei Duclós 


Ela me ensinou a cantar

A escrever versos de amor

A dizer, mesmo que doa

A sonhar sem ter vergonha


Depois foi-se embora

Pássara migratória 

Deixando-me só 

Com as lições aprendidas


O que faço com o que sei?

Aluno expulso da escola

Não há serventia

Para quem perde alguém 


Uso na poesia

O que ficou de refém 

Esse coração condenado

À prisão da liberdade


Nada possuo

Além da verdade


Nei Duclós

8 de setembro de 2024

DOMÍNIO

 Nei Duclós 


Não pense mais em mim, desista

Sei que é dispensável este aviso 

Detonamos a relação, deu tudo errado

A idade me expulsou do paraíso 


Não pense que direi meu endereço

Para vires me consolar na mocidade

Dar tapinha no ombro com a mão cínica


Tenho dignidade, fico na minha

Aprendi a dominar a tempestade 


Nei Duclós

TODA TROVA

 Nei Duclós 


Todo poema é de amor

Todo verso beija a boca

Toda dor vem do deserto

O sol é meu professor 


Navego em campo aberto

No corpo nasce uma flor

Amansei todas as feras

Antes de pedir-te a mão 


Escrever não é a meta

Mas viver ao teu comando

Planto trigo onde há pedras

E só canto sem motivo


Não é fácil ser cativo

Da mulher ou vocação 

Ao mesmo tempo ser livre

Escolho o que molha o chão 


Nasci num sopro de brisa

Nas sombras de uma floresta

Fujo do que não presta

Toda trova tem valor


Nei Duclós

TOBOGÃ

 Nei Duclós 


Fiz um monte de loucuras 

Não sentia dor nenhuma

A idade me curou:

Adicionei uma artrite 


Dormi em delegacia

Cabine de caminhão 

Desviei do meu caminho

Por obra da poesia 


Diziam corte o cabelo

Estavam com a razão 

Hoje corto gurizinho

Sou candidato à calvície 


Do topo para a planície 

A vida é um tobogã 

Abracei dura rotina 

Por sorte sobrevivi


Nei Duclós

3 de setembro de 2024

TORTO

 Nei Duclós 


Se o poema nasce torto

Por força da escuridão 

Rebento sem nada em torno 

Faca cega, mudo esporro 


Ele depende da sorte

De ter sol em sua espera

Que tenha leste no norte


Que encante, mesmo ferido

O parto o torna mais forte

A vida tem perna curta

Furta cor, um pobre sopro


Dizem não sobrevive

Não contam com o poeta 

Pé quebrado, intacto corpo


Nei Duclós

28 de agosto de 2024

POR FORA

 Nei Duclós 


Abandonei as notícias

Deixei-as longe de casa, acima do muro


Espero que sejam felizes

E se desenvolvam e se sustentem

Com suas cargas de fantasias

Diagnósticos , sinucas de bico

E ressuscitem para continuarem vivas


Eu prefiro ser o xingamento favorito dos meus pares 

O de ser um jornalista mal informado

O cara do copy

O pauteiro sem futuro

O sujeito que não soma

Apenas faz número no circuito sagrado das pensatas e redações prestigiadas 


Sou o cara das atas

Que reporta as reuniões dos pássaros


Nei Duclós

26 de agosto de 2024

SELFIES

 Nei Duclós 


Essa felicidade em grupos ou solitária 

Exposta como carne ao sol

Não desejo nem admiro

Deixo estar senão complico

Não tire o mimo do colo alheio


Não quer dizer que implico por prazer

Talvez seja o repeteco em tantos perfis

E cada vez mais raro o hábito de não sorrir 

Por qualquer falta de sentido 


Não significa que toda a felicidade seja ilegítima e absurda

Tudo pode ser

Só que descobri

Que a verdade tem perna curta


Nei Duclós 

CASCA VAZIA

 Nei Duclós 


A casa é uma casca vazia

Quando os filhos se retiram

E ficamos sós 

Com nossa vida mínima 


Fazer a comida, varrer o piso

Conversar sobre as notícias

Usar todas as roupas em dias de frio

E temer a noite 

Canteiro da memória 


Vivemos então o futuro tão anunciado

Quando achávamos que se mantinha uma porção da realidade

A mesma que nos criou e hoje é passado


Dizem que tudo é ilusão

Mas não é verdade

O mundo é feito de granito

Agora, amanhã ou antes

E não de vento


Somos formigas

Sob os pés do gigante

O Tempo


Nei Duclós

NO CHÃO

 Nei Duclós 


Terceira idade é catar coisas no chão 

Que escapam da frouxa mão 

Do pé indeciso, do corpo em torção 

Da falta de alcance, da pobre visão 


Mesmo sem pressa tudo fica liso como um sabão 

Foi-se o tempo dos dez braços em ação 

Agora é um por vez, como na fila do pão 


Não se abaixar não é opção 

Deixar como está, melhor não 


Nei Duclós

24 de agosto de 2024

PRENDA

Nei Duclós 


Faça de mim a sua diferença 

Venha, rosa e avenca

Dupla dosagem de espanto

Pele e perfume 

Flor de presença 

Prenda-me

Prenda


Nei Duclós

GOTAS

 Nei Duclós 


Tenho pouco conteúdo

Vazo o que acumulo

Fonte inversa de água da chuva

Transbordo em jarro miúdo


O que resta são poemas

que jazem no fundo

Gotas com reflexos da lua


Nei Duclós

MISTURA

 Nei Duclós 


Queria ser feliz, destino amado

Ou pelo menos contente, muito obrigado 

E não partir sem sair de casa

Ou buscar o tom desesperado


Afaste-se de mim, amigo certo

Nada tenho a dizer, não fique perto

Erro por viver tamanho escravo

Ando como alvo no deserto


Pode parecer dor em excesso

Mas não sinto nada, apenas passo 

Ninguém me convence do contrário 

Escolhi meu lado e ele arde


Queria ser feliz, sou machucado

Mas não se impressione com a voz bizarra

Aprendi a misturar tantas palavras

Cante que talvez eu pare 


Nei Duclós

23 de agosto de 2024

ÍNTIMA

 Nei Duclós 


Secreta flor que me devassa

Sem se mostrar, fechada gruta

Que não pergunta nem se cala

Muda borrasca obscura 


Quem dera fosse explícita 

Posta em chapéu na carruagem 

E não esse jogo que adivinha

Nenhuma chance para o meu laço 


Mas és coberta por palavras

Difíceis de dizer em testemunho

Juras de amor, vazia praça 

Estátua de sal, doce ressaca


Neste jardim entro com o barro

Húmus sem dor, fronte de cal

Não vês que a pá debalde cava

Busco o tesouro, raiz e haste


Íntima flor, perfuma a graça

Por tua causa aguardo a balsa

No rio perfeito da nossa lágrima 


Nei Duclós

22 de agosto de 2024

VIDAS PASSADAS

Nei Duclós 


Vidas passadas são as que vivemos em anos anteriores à terceira idade

Puxamos as cenas pela memória, hipnose do tempo sem misericórdia


Não fomos reis ou vassalos nos séculos ancestrais

Mas criaturas datadas 

Nas mãos frágeis e poderosas dos nossos pais

Anjos humanos da providência da terra


Deus não interfere na guerra

Deixa que se matem

Depois recolhe quem lutou sem chance de sobrevivência 


Pergunte quem sou

Sou a criança que se fez homem

E hoje lembra

Minha lição permanente de esperança


Nei Duclós