19 de março de 2024

FORA DA LINHA

 Nei Duclós 


Tanto lutei que cheguei na terceira idade

Dores no corpo e falta de memória 

Carro emperrado na estrada dos desejos

Dormindo antes do fim do aniversário 


Todos garantem que a festa é agora

Você concorda para não ser acusado

De estraga prazeres, velho desgraçado


Agora me diga se valeu a pena

Viver tanto tempo para ser jogado fora

Se ao menos se calassem, porca miséria 

Pois não fiquei surdo e ouço barbaridades

Acham que já morri enquanto te namoro

Com o poema que escrevi na tua pele de mármore 


Nei Duclós

16 de março de 2024

PACIÊNCIA

 Nei Duclós 


Renuncio à minha parte, não por estar cheio

Estou em falta de tudo o que preciso

Ou mesmo por querer exibir-me a pleno

Quem me vê bem sabe o pouco que tenho


É de outra natureza esse súbito  desapego

Excesso de experiência talvez ou a idade

Só sei que diminuo em necessidade

Enquanto cresço intenso com o passar do tempo 


Perdi demais, essa que é a verdade

Exigindo porções maiores ou iguais

No fim é sem importância, o que de fato vale

É descobrir no Outro o que nos transforma

Muito além do  corpo e sua fome


Viver é o que está fora, estranho da vontade

Custamos a entender o foco da obediência 

Sorte que contamos com a divindade 

E a sua paciência, aluna da renúncia 


Nei Duclós

15 de março de 2024

GOLONDRINAS

 Nei Duclós 


Mayor

Las mujeres te llevan por las calles

En manos de luces y  sombras 


Tienen

 las espaldas   nudas

Y tu el rostro de piedra


Son golondrinas en tu nido de  viejez

Y tu el que sobreviviste de tanto amor


Mayor


Nei Duclós

12 de março de 2024

FAROESTE

 Nei Duclós 


Era bom pensar que você sabia pouco 

E que havia inocência mesmo não havendo 

No fundo era eu o pobre ignorante 

Mas fazia pose de herói das pradarias


Do amor naquela época ainda adolescente

Eu descobria aos poucos e jamais te revelava

Como se fosses moça sem noção alguma

Podias me ensinar mas preferias a prudência 


No fim tudo deu certo, sardas em fogo

O aperto sem querer na festa de família 

Em que, vizinha, fazias um pedido

Secreto na hora de alguém cortar o bolo


Querias o meu beijo, garoto inexperiente

Que não sabia beijar e vivia imaginando 

Um dia me pegaste dentro do cinema 

E foi aí que te alcancei no bruto faroeste 


Nei Duclós

2 de março de 2024

O CORPO

 Nei Duclós 


O corpo sabe fazer 

É seu próprio professor

Não dá lição de querer

Não esconde sua dor


O corpo encontra sua vez

Marca presença na flor

Não desiste de vencer

Não evita o corredor


Chega quando é destino

Enxerga o que é legítimo 

Conduz mesmo à revelia 

Te diz quando não escutas


O corpo funda o prazer 

Na hora do sacrifício 

Por mais que fujas do amor

Ele carrega o infinito


Nei Duclós

24 de fevereiro de 2024

FICOU TARDE

 Nei Duclós 


Agora ficou tarde

Véspera da manhã 

Quando tudo se parte 

A flor da romã no chão se retorce

Por não chegar ao fruto

E todo teu corpo não acha onde pisa 

É só desperdicio

Teu tempo se acaba

Ao perder a razão 


Faça uma oração 

Que tudo voltará 

Como o vento se molha

Ao lembrar quando chove


Nei Duclós

22 de fevereiro de 2024

 Chegou o reparte de Autor. Edição caprichada!

Obrigado Deonísio Da Silva ! pelo trabalho primoroso de edição.

Obrigado Grupo Almedina!

AINDA MOÇO

 Nei Duclós 


Não me importo mais em enxergar

pouco. Ou misturar os sons

que já nem ouço. Ou ser chamado

de sonso. E não ter paciência

para o jogo que o dia obriga

na disputa do osso


No fundo é tudo esboço

de uma vida futura, pelo avesso

quando o mundo exaure enfim

seus hábitos e torna-se o que sempre foi

absurdo.


Por isso não se despeça quando eu estiver

morto. Não estarei no aeroporto

para te tratar de hóspede. Nem no funeral,

apenas o corpo. A alma também partirá

para um recomeço num lugar onde a memória

não possui passaporte


Estou pronto, aproveite que ainda sou

moço. E tenho esse dom à mostra

que é a palavra sem rebuços, arte

que aprimoro para dizer o que sinto


Nei Duclós

16 de fevereiro de 2024

O CORPO

 Nei Duclós 


O corpo procura seu próprio caminho

O espaço de cura entre a flor e o espinho

A rima mais pura da sua poesia


O corpo reage no oculto cassino

Que rege a conduta de um jogo já visto

As fichas vendidas na sorte sem rumo

Talvez seja morte, talvez seja vida


E por milagre ele então ressuscita

Da coma na idade, sem assinatura

Aposta alegria quando tudo está sujo

Ou cede à medida que o tempo permite


O corpo é a palavra que dorme no fundo

E deixa que as falas façam tumulto 

Um dia ela acorda no seu paraíso

E diz para Deus: sou tua profecia


Nei Duclós

15 de fevereiro de 2024

0 CAMINHO

 Nei Duclós 


O que eu guardo explode

O que mostro esqueço 


Estou dividido

Entre a linha reta

E o labirinto


O que digo escrevo

O que apago começa 


Em cada porta espio

No meio da estrada 

me atiro


Refém do destino

Separo

Alguém me mostre

O caminho 


Nei Duclós

11 de fevereiro de 2024

ÚNICA ESTRELA

 Nei Duclós 


Todos temos uma paixão secreta pela única estrela

Nem tanto pelo brilho que emana no tempo torto

Que a destaca perfeita no pobre firmamento

Feito de restos de corpos celestes e tristes satélites 

Nem pela voz que entoa como anjo cantos gregorianos

Ou pela pele de seda que expõe em fotos nas praias remotas


Mas porque vemos nela  a perdida e última chance

Do amor que nos devem

injustos pela vida inteira

E que nos negam por sermos ainda seres humanos

Desperdício de sentimentos anônimos sem pouso de aves que não voam


Nei Duclós

3 de fevereiro de 2024

ADUBO

Nei Duclós 


Há o risco de nada termos feito

No balanço de nossa vida inteira

A obra se esfuma junto aos dias 

E o rastro, testemunha, não registra


Todo tempo serve para perdê-lo 

Mas talvez seja essa a descoberta

O nada que fizemos é o que conta

Como adubo do plano para a esfera 


Nei Duclós

2 de fevereiro de 2024

DISCUSSÃO

 Nei Duclós 


Discuto o tempo todo com os objetos

A porta que bate com o vento e me encerra no quarto sem ar suficiente

As camisetas sempre do avesso por mais que você tente fazer certo

As roupas que  nunca secam quando precisamos

Os talheres que caem no chão 

O acúmulo de livros nas estantes

Os travesseiros desconfortáveis por vocação 

O portão que não fecha

As janelas que não abrem

Os trincos que emperram

Os canos que pingam sem parar

O quintal que produz uma selva por mês 

As paredes úmidas 

As baterias que vivem no osso exigindo recarga


Os objetos são voluntariosos

Fazem o que querem

Sorte que não  retrucam

Por enquanto 


Nei Duclós

1 de fevereiro de 2024

LUA FIRME

 Nei Duclós 


Enquanto houver lua

Haverá esperança 

Mesmo que o rosto traia desconfiança 

Mesmo que meu sonho ainda criança 

Tenha medo de crescer


Se ela está firme no céu e se movimenta

Coordenando a desregrada rosa dos ventos

É porque assim está escrito nas estrelas

E nós pobres românticos

Somos reféns das marés e suas mudanças 


Quando ela surge no quintal e tira um selfie

É porque ao mesmo tempo me garante

Que tudo está certo 

mesmo que não aparente


Nei Duclós

22 de janeiro de 2024

RUPTURA

 Nei Duclós 


Fazes ideia de mim pelo que escrevo

Sem saber o que guardo quando estou ao vivo

Portas fechadas, projetos suspensos 

E brutais fantasias que não dão sossego


Flores do jardim são testemunhas

Que eu ignoro o cão e xingo os vizinhos

Ninguém me suporta no verão sem camisa

Nenhuma paciência com as mudanças do clima


Assim vives a ilusão do poema

Quem me dera ser esse ser tão seguro

Onde cada palavra evita a ruptura


Não deixe de amar o que diz a poesia

Mas tenha cuidado e não se aproxime

A não ser que nada mais te assuste

Amor que eu cultivo quando não tenho saida


Nei Duclós

DIVISÃO

 Nei Duclós 


Faço café para me dar sono

Pão de frigideira e a doce stevia

Daqui a pouco amanhece e estou inteiro

O dia desperta na segunda feira


Reporto meus hábitos noturnos

No ritmo que dou aos procedimentos

Ninguém tem nada com isso mas compartilho

Talvez porque faça companhia aos outros


Navego isolado no tempo a refeição 

Que são os momentos sem nenhuma pompa

Como um soldado que divide a ração 

Porque só assim haverá sobrevivência 


Nei Duclós

21 de janeiro de 2024

DEFEITOS

 Nei Duclós 


Quem me quer não entra

Quem eu quero não alcanço 

Sou da Criação o caroço 

Contra-mão no trânsito 


Faltou educação, no laço 

Cresci fora do norte

Esboço de um mata-borrão


Seco a tinta da canção 

feita de louça 

Nenhuma palavra vale o esforço 


Digo isso para te agradar,

perfeita moça 

Defeitos que te fazem a cabeça 


Nei Duclós

19 de janeiro de 2024

SÚMULA

 Nei Duclós 


Faço música na surdez do mundo

Sílabas que não escutam

Canções em estádios ocultos


Sou o flautista que promete o abismo

E jura que existe uma ancestral melodia

Que tudo revela no horizonte mudo

Profunda poesia na harpa dos minutos


A partitura se desfaz na pauta das nuvens

Morre o eco que poderia ter dito

A provar a súmula jamais escrita


Componho como quem surta

Sem voz apesar de peregrino

Só alguns pássaros adivinham

E cercam tontos de voo

Meu ofício que teclo teimoso

Num órgão misterioso em catedrais do divino


Nei Duclós

18 de janeiro de 2024

TRABALHO

 Nei Duclós 


Faço do jeito que eu quero

Esse é o meu trabalho

E não é desaforo

Nem expediente

Para espantar o sono

É o que aprendi

No tempo em que vivi sobre a terra 


Muito já perdi

Na descida do morro

Mochila ficou para trás 

Casa sem nenhum adorno

Hábitos de monge

Virtudes jogadas num canto


Apenas a livre expressão de um veterano

Estive na guerra, digo quando canto


Nei Duclós

ILUSÃO

 Nei Duclós 


Não lembro mais o teu nome

Nosso tempo evaporou-se

Cada época tem seu jeito de querer

Antes eram raízes, amor para toda vida

Hoje é fumaça, neblina

Amasso de balada

Feito só de palavras

Os corpos que se revelavam

Agora permanecem ocultos


Diziam que os românticos viviam de ilusão 

Mas eram sonhos pautados por presenças 

Nossos namoros nem isso mais são 

Quem nos dera a doce ilusão 

Pelo menos os poemas eram melhores


Nei Duclós

15 de janeiro de 2024

SOMBRA

 Nei Duclós 


Procuro esquecer o sonho que tive

Não forço a memória na porta do outro mundo

O esforço poderá me trazer de volta

Algo que não tive e parece ter força


Cenas e personagens que se misturam na mente

Coisas bizarras, sinais ainda quentes

Vidas passadas e crimes possíveis

Nunca saberemos o que existe no éter


Prefiro a normalidade do sono profundo

Em que nada acontece e mergulho sem culpa

Moro num lugar onde não há mistério 

E ninguém interfere, barulhos ou truques


Acordo onde dormi, natural vagabundo

Não pesquiso o destino oculto e do avesso  

Não dependo de ti, presença da sombra

Basta ser um louco da minha literatura


Nei Duclós

13 de janeiro de 2024

CANTORES DO LEVANTE

 Nei Duclós 


Primeiros pássaros não adivinham qual é o dia da semana

Se vai chover ou o clima ficará ameno

Nem em que época do ano nós estamos


Só sabem que no amanhecer são eles que fazem planos

O grão que irão colher ou qual porção de grama

Vai abastecer o ninho ou o equilíbrio do voo


Nem podem adivinhar que a vida dure um só dia

E que não haverá mais a mínima chance

De novamente anunciar o sol que no levante

Acorda a terra para os pios de plumas flutuantes 


Pássaros da primeira hora não possuem poder de mando

Apenas cantam como se não houvesse mais amanhã 


Nei Duclós



10 de janeiro de 2024

CONFISSÃO

 Nei Duclós 


Tenho palavras profundas para a tua dor

Que tocam músicas de um altar

Tiro de ti quando me confessas

O que guardas de amor em teu lugar


Tenho um coração que te ouve chorar 

E aguarda que voltes de manhã 

Quando Deus sem saber o que dizer

Te deixa ir em minha direção 


Nei Duclós

3 de janeiro de 2024

SOMBRAS

 Nei Duclós 


Sombras que se movem

Capturadas no canto do olho

Algo os movimenta

Mundos ao nosso redor

Sem corpo


Tudo está aqui

Na moita 

Versos que perdi

Conversas

Vozes que não ouvi

Teus beijos

Que procuro por aí 


Nei Duclós

30 de dezembro de 2023

 TEXTO LIMPO, INFORMAÇÃO PRECISA


Jornalismo é entregar o ouro na primeira frase. A informação mais preciosa, a sacada mais importante, a revelação mais contundente.


Fazer suspense, fingir mistério, anunciar para mais adiante, jogar para o próximo bloco: isso não é jornalismo, é dramaturgia barata.


O texto precisa ser limpo, com informação precisa, e não seco, burocrático, duro, repetitivo. A leitura deve escorrer, mas não como incontinência verbal.


O texto precisa ser reescrito até se tornar claro em relação ao que o jornalista conseguiu apurar e esclarecer. Não se passa enigma ao leitor.


Aconselhamento jornalistico cai na tentação de fazer média com novas gerações malhando veteranos. Diga a que veio e pronto. Dá trabalho.


Dois neurônios seriam suficientes para costurar textos das hard news se eles interagissem. Mas Tico e Teco agem por conta própria em direções opostas.


O que há é empilhamento de frases que repetem a informação já dada no título. Fica uma gosma.


Precisa ter mestre dentro da redação. A linhagem rompeu-se com a soberba dos paraquedistas que pousaram no jornalismo.


Nei Duclós

28 de dezembro de 2023

IMPULSO

Nei Duclós 


Poesia é o refúgio da palavra

Seu reduto antes da batalha

Do impulso que apaga o susto


Nessa gruta se crucifica

Implodindo em si mesma

Quando então se ressuscita


Poesia é quando a alma humana se cansa

E do próprio olhar se sustenta

Como águia no alto da montanha


De lá vislumbra o desespero em carne viva

Do teu passo torto na planície 

Que procura a superfície onde Deus respira


Nei Duclós

FICAR

 Nei Duclós 


Fico por ter dito coisas

Com valor ou não

Lembradas ou esquecidas

Mas terei um lugar 

Depois do dilúvio 

Que será de mar ou fogo 

Mas que virá 


Fico mesmo assim

Pois faço parte do vento e do pó das estrelas

Porque me dedico à criação 

Desde o princípio

E não será o fim que decidirá o destino


Fico porque essa é a missão 

De quem insiste

Em repartir o pão com toda gente


Fico porque ninguém e nada existe em vão 


Nei Duclós

23 de dezembro de 2023

JOGOS

 Nei Duclós 


Marcamos o tempo com a mutação do corpo 

Sabemos de que século somos 

Quantas estações navegam em nosso rosto

E a migração dos ventos batidos em antigas roupas


Tudo se cansa  com o avanço dos anos

Novas gerações são a cura para a idade doente da terra


Carregamos a herança que um dia recebemos

E passamos adiante

Como fazíamos na infância

Nos baldios jogos que nos treinavam para a vida


Nei Duclós

20 de dezembro de 2023

GERAÇÃO

 Nei Duclós 


Idosos ficamos todos com a mesma cara

O cabelo ralo a pele lavada

O corpo redondo

As pernas finas

Olhos mortiços granulados

Ombros caídos gestos escuros


Disfarçamos tudo com a mesma indumentária 

Bermuda e chinelo, camiseta regata

Óculos de praia pose de veterano


Lá vai o velho dizem os moços

Que perdem as garotas por serem brutos

Somos a última geração humana


Nei Duclós

18 de dezembro de 2023

AMANHECE

 Nei Duclós 


Amanhece o meu amor com seus olhos dormidos

Tanto tempo longe e agora está comigo

Serena dorme firme nos lençóis de linho 

Ocupa a nossa cama outrora tão vazia 


Amanhece o meu amor, já não corro mais perigo

De viver só de ilusão refém da poesia

Ela é real como tarde de domingo

Em que íamos ao cinema na sessão das cinco

Para ver as palhaçadas dos pares românticos 

Bobos como nós, de profundo visgo 


Amanhece o meu amor que reencontrei por descuido

Numa foto perdida no oceano das mídias

Logo vi que eras tu, beldade do abismo  

Que um dia foi embora com frieza de granizo


Choveram muitos anos até o apocalipse

E quando todos os sinais eram excessivos

Surgiste de repente sem nenhum aviso


Amanhece o meu amor, acorda já é dia

Diga que o sonho enfim se realiza

Aí posso sorrir o que jamais tinha esquecido


Nei Duclós