Nei Duclós
Uma pessoa é a composição química de elementos, que podem
ser dissolvidos em ácido numa bacia de polietileno. Atribui-se aqueles misteriosos
3% que faltam para completar a criatura à existência da alma, que assim
ganharia peso numa base científica. Mas essa porção ínfima, minoritária, não
faz parte das intenções da série Breaking Bad, totalmente disponível no
Netflix, com seus 62 episódios didáticos, que foram ao ar originalmente de 2008
a 2013. Eles não só ensinam como treinam os espectadores na crueldade sem
limites, no assassinato em massa, na ganância a qualquer custo, na mentira
permanente, na manipulação completa, na esperteza sinistra.
O criador da série, Vince Gilligan, deveria ser preso junto com toda
a equipe de atores,atrizes e roteiristas, cumprindo pena de
trabalhos sociais forçados. Em vez disso, foram abusivamente premiados, como se
o mundo inteiro tivesse enlouquecido para celebrar tamanho rombo na ética,
tamanho abandono do humanismo, tamanho tiro de misericórdia em qualquer
esperança no ser humano. O roteiro funciona a serviço do mal: pessoas honestas são
envolvidas no tráfico de drogas, direta ou indiretamente e todo perigo
contra o maior vilão encontra uma solução inverossímel.
Como pode um perseguido marcado para morrer entrar no covil
dos facínoras com um carro que dispõe de uma metralhadora sem que o porta-malas
tenha sido revistado? Como pode o bandido que mata policial dar um tonel de dez
milhões de dólares para seu concorrente jogando fora a oportunidade de
eliminá-lo? O roteiro é o principal aliado da falsa verossimilhança, pois a crueza
das imagens – tudo filmado no deserto do Novo México e seus desdobramentos, a
cidades secas ao sol – e a overdose das interpretações garantem o espetáculo.
Hipnotizados pela sucessão de eventos do enriquecimento ilícito dos mega
traficantes e o poder de fogo contra pessoas comuns, o espectador deixa passar
o principal, que é a forçação de barra nas situações limite.
O vilão Walter White, interpretado por Bryan Cranston – que ganhou
tudo que é prêmio – é um fenômeno de eficiência e sorte. Seus ardis sempre dão
certo. Toda hora ele escapa da morte: sim, senão como continuar a série? Seu
comparsa que vira inimigo mortal, Jesse Pinkman, encarnado de maneira chorosa e
desesperada por Aaron Paul – também premiadíssimo – afunda em sucessivos
abismos sem jamais conseguir ter um lance de lucidez e tirocínio. É uma besta
ambulante convincente, que empresta a cada cena a intensidade necessária para
continuarmos grudados na narrativa.
As negociatas, os assassinatos, as fugas espetaculares, os
enterros de dinheiro, os massacres, as investigações policiais importantes, a
produção da droga química (metanfetamina, ou cristal, a cocaína dos pobres) acontecem
no imensurável deserto, sem testemunhas. Ninguém vê o que se passa entre
cactos, areias e lagartos. Apenas nós, telespectadores privados da nossa
humanidade, que abrem mão de tudo para se entregar a essa série filha da mãe,
que nada nos dá em troca a não ser medo, pavor e um vazio jamais preenchido.
Como tudo o que se faz na Sétima Arte – pois Breaking Bad é
cinema, um longuíssima metragem de dezenas de horas – trata-se de um filme
sobre cinema. As referências são inúmeras e constantes. Entrega que a piada do
espirro em cima do pó é dos Tres Patetas (no caso deles era talco, não cocaína)
e não do Woody Allen. Compara toda pessoa com uma arma apontada para a cabeça
com o talento de Meryl Streep. Mostra a
tendência gay de um químico (que se chama Gale , interpretado por David
Costabile) com a fala “este é o começo de uma grande amizade", o infeliz desfecho
de Casablanca. Dedica uma cena grandiosa de trem clonada em Sergio Leone de Era
Uma Vez o Oeste, entre muitos outros cruzamentos.
E há a conotação étnica, como nunca falta no cinema
americano. Quem morre mesmo são os vilões mexicanos narcotraficantes. Há um
loiro bandido, Todd, interpretado por Jesse Plemons, mas é exceção. O mega
chefão é negro chileno (o elegante e talentosíssimo Giancarlo Esposito) e mesmo
o bandidão White tem um apelido nazista, Heisenberg. Os americanos não se
livram da questão étnica. Faz parte de sua natureza. A lei vence no final, pero no mutcho. White
morre feliz e realizado, pois para se sentir vivo depois de um diagnóstico de
câncer no pulmão, matou quem estava na frente e transgrediu todas as leis para
enriquecer. Tudo em nome de uma ficção, a “família”, que acaba destruída.
O núcleo familiar tem intérpretes da pesada. Anna Gunn como
Skyler, a esposa que é empurrada para o crime, RJ Mitte como Flynn, o
deficiente físico que recebe todo o impacto da destruição do lar, Betsy Brandt
como Marie, que perde para o tráfico o marido policial Hank, interpretado por
Dean Norris. Um grupo de forte intensidade dramática, que ajuda a costurar as
cenas mais terrivelmente emocionantes.
Deveriam todos estar presos. Mas me pergunto por
que fiquei semanas vendo essa coisa e não desgrudei o olho até chegar ao final?
Talvez porque seja a mais escabrosa série de todos os tempos, o deserto do real, e eu tenha sido apenas uma testemunha.
De tudo escapam dois personagens, que
chegam a uma nova série sobre o advogado corrupto Saul, interpretado por Bob
Odenkirk, um comediante de TV que ganhou sua grande oportunidade e aproveitou
ao máximo. O outro é o matador Mike, interpretado por Jonathan Banks, que
avisa: melhor fazerem logo toda a série porque estou velho demais para esse
tipo de papel. Ou seja: o pesadelo continua. É como dizia Hitchcock ao ser
homenageado: “Vocês estão gostando? Olha que eu vou continuar!”
Excelente análise.
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirNão achei que eu fosse ser convencida, mas fui. Parabéns!
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