Nei Duclós
A quase adulta Adèle segue um caminho tradicional: quer ser
professora, uma opção não considerada pela superioridade intelectual de sua
companheira, Emma, que é artista plástica e exige que ela faça “alguma coisa”,como
escrever, em vez de se contentar em dar aulas para crianças. Adèle é também
assediada pelos colegas de classe, que não admitem sua experiência gay. Precisa esconder da família seu namoro com uma
mulher e cai em parafuso e arrependimento quando uma relação heterossexual a
afasta de Emma, que ela considera o amor da sua vida.
O azul é o fogo da paixão: no cabelo da homossexual, no
vestido da garota que vira mulher. Está sob o fogo cerrado, disparado por quem
deveria dar o exemplo da inclusão. A busca por autenticidade acaba revelando as
falsas opções. Emma no fundo já tinha optado por outra companhia e usa a traição
eventual da namorada para agredi-la e expulsá-la. Adèle é a ingenuidade: sua
relação com o jardim da infância, seu esforço na alfabetização dos petizes, sua
compenetração nos estudos, seu comportamento familiar harmônico são os
vetores tradicionais de uma sociedade que se transformou. Ela participa dessa
mudança indo para a rua contra a repressão, colocando música afro para francesinho
dançar, frequentando bar gay e expondo sua experiência publicamente até ser
escorraçada pelo mundo que abraçou.
La vie d'Adèle, ou “O azul é a cor da paixão” (nome original
da graphic novel que deu origem ao filme, criada por Julie Maroh), venceu a
Palma de Ouro de Cannes em 2013, prêmio dividido entre o diretor Abdellatif
Kechiche e as atrizes Léa Seydoux (Emma) e Adèle Exarchopoulos (a própria). São
três horas de contemporaneidade. São tocantes as cenas das manifestações de
rua, em que a humanidade excluída na França pressiona o poder pela cidadania
negada. A crueza dos hábitos alimentares (sem nenhum glamour, incluindo até
arroto), as intermináveis cenas de sexo explícito (o foco didático do prazer só
entre mulheres), as violências verbais, o choro convulso, a lassidão dos corpos
devassados pela tesão antes ou depois do ato, o cigarro compulsivo, as bocas
lambuzadas de molho e macarrão, as aproximações dos corpos nas conversas, tudo
faz do filme um choque cultural de difícil deglutição.
Não é para o consumo, mas também não convida ao vômito. No
fim tudo se acerta de maneira tradicional. Emma vai viver com mulher e filha, reproduzindo
o esquema da família heterossexual e Adèle é flagrada no final sendo caçada por
um pretendente. O filme vale pelo que expressa na moderna sociedade francesa
com todas as suas contradições: a briga de foice no escuro entre o talento e o
comércio, o pânico diante da imposição de gêneros não tradicionais ascendentes,
a animação coletiva na presença da massa nas ruas, a acomodação familiar sendo
traída pela mocidade em busca de algo que a transcenda etc.
Não é função do ensaísta recomendar ou tentar afastar
espectadores. Cabe ao texto sobre cinema perceber o que faz da obra um evento
importante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário