Nei Duclós
Personagem é coisa de amador. Uma diluição, uma persona
falsa, imitação. Intérpretes perdem tempo compondo personagens quando deveriam
se limitar a encarnar personas. O desafio é que ambos são fictícios, tanto o
modelo quanto o clone. O ator de verdade não faz laboratório à toa, para encarnar alguém que
ele vai largar logo depois do filme pronto ou do fim da temporada. Um craque
não treina, entra logo em campo, em cima da hora. É uma coisa tão rara que o
escolhido pela vocação poderosa acaba cansando ao ver ao seu redor a
mediocridade dominante. Elencos inteiros dando entrevistas sobre o “personage”,
tratando-o como terceira pessoa, como se isso fosse algo cool. É pura
babaquice.
Talvez tenha sido essa solidão que levou para sempre Philip
Seymour Hoffman, que se suicidou em fevereiro do ano passado. Atribuíram a
causa ao vicio da heroína e outras coisas sem importância. No seu último
trabalho, O homem mais procurado (2014, de Anton Corbijn) ele mostra como se
faz despindo tudo o que se convenciona chamar de composição de um personagem. É
ele próprio, o gordo intratável, fumando e bebendo o tempo todo e sussurrando
de maneira gutural e convincente as falas de um decaído espião alemão em luta
contra os agentes americanos para conseguir algo mais do que mera repressão num
nicho do terrorismo. A luta contra o crime exige algo mais sutil e profundo.
No fim é uma superposição de camadas. Seu extremo desleixo
faz parte da história do espião, acusado injustamente de um grande fracasso que
vitimou vários colegas – a culpa era, claro, da CIA -, mas culparam Gunther (esse
é o nome que Hoffman assumiu no filme), que faz parte de uma nação derrotada,
proibida de ter exército. Ele se arrasta tentando enquadrar um filantropo que
financia matadores, cercando um fugitivo que tem todo o perfil de um assassino,
mas que não é, apesar das evidências. Os americanos querem o couro geral,
inclusive de Gunther e colocam tudo a perder. Mas aquela persona que tece a trama
para conseguir algo mais do que encarceramento, já que precisa se aprofundar na
prevenção dos atentados, é também o próprio Hoffmann se despedindo do cinema.
Prejudicado nos movimentos, sempre algumas doses acima do
normal, fumando descaradamente, Gunther é a fruto da missão para o qual o contrataram.
Um dinossauro que se mexe pesadamente entre cristais, um rinoceronte numa loja
de louça, capaz de gestos extremos, como beijar apaixonadamente a colega de
trabalho só para disfarçar uma campana, ou abraçar com profunda contundência o
delator que o serve com informações preciosas. Ele pontua essa performance com
suas falas precisas, ditas sem esforço, já que ele é Gunther e mais ninguém.
Demolidor nas respostas, evasivo na argumentação que sempre vence a parada, o
espião alemão distribui elogios e tabefes no rodízio onde meteu todo mundo,
desde suspeitos até megabandidos.
Como o grande ator consegue isso? Jamais saberemos. Um artista pode
surpreender com uma obra prima usando apenas alguns farrapos, uns arames, que
são os fios enlaçados daquelas memórias virtuais que um escritor (John Le Carré
no meio) impõe na narrativa e que ele acrescenta com coisas pessoais,
sentimentos que enfim o abandonam quando a produção acaba.
É quando o monstro solitário se vê só em seu apartamento,
antes do próximo papel. Ele sente falta da heroína, que abandonara há décadas. Mas esse não é o ponto. O que fazer quando se chega ao topo da própria arte? Ele promove
então uma saída. Despede-se do mundo que não lhe oferecia mistérios, pois as
pessoas são o verniz de algo mutante, sem sentido nem propósito. Era capaz de
tudo. Começou como todo mundo, sabendo pouco, fazendo ponta sem importância,
como em Twister (filme que ele costumava debochar nas entrevistas). E se
transformou no ator maior do seu tempo. Comeu todo mundo com farinha e se foi
porque assim decidiu.
Assim fazem as pessoas marcantes do nosso tempo. Deixam suas
pegadas no dorso do mundo, que se pergunta: de onde vem esse talento, esse
poder de reinventar gente permanecendo a mesma pessoa de sempre?
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