28 de dezembro de 2019

O DESENLACE

Nei Duclós

O único abraço é a despedida
Quando vemos num relance a ruptura
Estás inacessível apesar de amante
Mas cedes um momento de doçura

Todos que nos impedem são atentos
Testemunhas do amor em desenlace
Eles vencem, mulher que me tortura
Com sua glória de deusa mais humana

Enfim nos separamos, fica o travo
Do corpo ainda morno em luz e sombra
Vivo desse instante flor pele madura
Artista que me inventa e ressuscita


14 de dezembro de 2019

VOO LIVRE


Nei Duclós


As vitórias se acumulam no despejo
O que espero depois de tanta vida?
A não ser repetir o que já tive
A mocidade clara e a glória efêmera

Talvez finalmente estar contigo
No veludo de um amor que não arruina
Tocar tua pele, entrar no abrigo
E de lá vislumbrar o que me falta

Esse dom de provar o que é eterno
Sabor de uma beleza nunca vista
E que não morre porque se alimenta
Do teu espírito em flor e voo livre
 

ÚLTIMA POEIRA

Nei Duclós


Joguei tudo fora
Cada emprego cada amor cada amigo
Cada cidade onde vivi
Cada oportunidade
Cada momento feliz
E fiz isso com determinação
Joguei fora roupas papéis objetos
casas ruas e quintais
Meus discos e livros
E tudo o mais

E aguardo o proximo passo para o fracasso
Que acumulo em currículos desiguais
E sonho em jogar no lixo
O que me torna imortal
Essa fuga de mim
Até os confins da última poeira estelar



8 de dezembro de 2019

VALOR DA PALAVRA



Nei Duclós

As palavras não valem mais nada
Na notícia nos poderes nas conversas
Perderam a magia nos livros
Ausentaram-se nas profecias
Não dividem mais os pensamentos com o silêncio
São recolhidas no lixo
Palavras de amor perderam o sentido
O entulho se acumula nos espíritos
Assediados pela voz dos catequistas

Só no poema elas assumem o risco
De resgatar o valor oculto
Assim mesmo precisa de ouvidos e leituras
Que rompam a exaustão dos dias
 

FALSO AMOR

Nei Duclós


Esse falso amor do poema
Em que finjo ter uma vida plena
Já não te convence
Ninguém experimenta
O que nada possui além da aparência

Esse consenso de que somos bons
Quebra como no deserto
Quebra o último jarro de água
Que evapora

Nada coloco no lugar ausente
Nem mesmo o amor que não mais lembro

FLOR EXTREMA


Nei Duclós

Imagino que não chego perto
E estou condenado à distância
Sem ver que abriste o coração
Sem abrir mão de tuas riquezas

Isso deveria me tocar
Flor extrema do meu escasso dom de te enxergar



ESSE ENROSCO

Nei Duclós


Passa ao largo do teu sonho
O que apronto em fantasia
Melhor do que amor ao vivo
Por driblar certos conflitos

Provo o mel pego a cintura
Navego em águas de naufrágio
Depois com a cara mais lambida
Digo oi no teu espaço

Ou talvez eu seja o alvo
Desse enrosco sem medida
És o núcleo da armadilha
E eu um tolo assumo o crime


BOLETINS


Nei Duclós

Jogados a esmo os poemas
Para que tropecem neles
Sem cair de amores
Pela tal literatura

Como conchas, como frutos não comestíveis
Que pingam de arbustos irreconhecíveis

Como boletins de lojas que sumiram
E anunciavam novidades em jipes
Que nos atraíam meninos
Em estupenda algazarra

Nada comprávamos dos anúncios
Mas fazíamos coleção
Batizando os papeluchos
De boletinhos

Assim também os versos que voam pela rua
E nossa alma guarda
Em envelopes de sonhos



30 de novembro de 2019

CADENTES

Nei Duclós


Estrelas caem de maduras
E são colhidas
Pelo orvalho da manhã

Repousam úmidas
Depois do incêndio
Buscaram água seguindo a nuvem

E agora jazem junto às conchas
Que guardam sons
De Aldebarã



TUDO É POUCO

Nei Duclós


O pouco de mim que te mostro
É tudo o que eu tenho
Esse rosto que o tempo não remoça
Esses versos que ponho na roda

Escondo o que não vejo
Minha alma confusa
Meus olhos com medo
Meu corpo em gestos tensos

O nada que sou capturas
Amor que não se dobra
Flor que não mereço



29 de novembro de 2019

LINHA DO TEMPO


Nei Duclós


Deixo passar tua linha do tempo
Depois tento remendar com likes a esmo
Mas fica o travo da total indiferença
O espaço entre nós não é mais o mesmo

A distância, além de raízes, projetou raios
Que atingem as nuvens mais remotas
Assim não nos vemos neste inventário de perdas

Trocar poemas ler o que escrevemos
Não basta para um dia precisarmos
Nos socorrer na guerra que na preguiça cultivamos


28 de novembro de 2019

INSTANTE

Nei Duclós


Rompemos antes de começar
A separação é a única forma
De nos conectar
Temos sempre razão de não amar
A solidão é a herança maior
Do que achamos ser civilização
Esse amontoado de palavras
Ditas em vão

A não ser que possamos sorrir
Sem outro motivo
Do que o prazer de encontrar
Por um instante
Alguém vivo



VERSO É VIDA?

Nei Duclós


Será viver o intervalo do poema?
Ou é adiar o que deveríamos ter feito?
Preenchemos o vazio com frases feitas
Ou despertamos o braseiro da essência?

Acreditamos ser perda de tempo
Ou confiamos que nos fala um anjo
Na voz do verso jamais completo
Acidente da palavra rente ao abismo?

É arte de fina estamparia
Metais fundidos em diamante bruto
Ou só conversa, triste espelunca
Da lábia ansiosa que jamais descansa?



20 de novembro de 2019

ESPREITA


Poema não reproduz frases feitas de denúncia aplauso ou indignação.
Trafega em outro canal, de natureza diversa aos lados do engajamento ou isenção.
Esclarece o perfil não humano da linguagem
Herança ancestral à espreita no fim da viagem.

PÓSTUMO

Nei Duclós


Enterrei o poema. Estava vivo
Batia insistente na tampa de vidro
Escutei na superfície onde me achava
Surdo e esquecido

Mergulhei para ver o que fazia
Mas era impossível libertá-lo
Sua voz confundia-se com o silêncio
E as letras boiavam no aquário submerso
Com falta de ar

Precisei subir e me enredei na vocação
Jogada fora como lixo
Encalhando os navios

Ainda escuto os murros trincando o sepulcro
Rezo para que consiga
E venha me salvar deste fim precoce
A que me submeti por falta de sorte



7 de novembro de 2019

NA PONTA DA LÍNGUA

Nei Duclós


Não use palavras mortas
Que perderam o sentido
Assassinadas pelo obscurantismo
Mas as antigas que ressuscitam
Ou as novas que sobrevivem
Ao domínio da gíria

Use a língua culta
Alfabetizada pelo ensino
E que serve em todos os nichos
Inclusive nos lugares que a criticam

Faça versos que não temem
Qualquer inimigo



6 de novembro de 2019

FECHAMENTO

Nei Duclós


Estavam todos vivos até há pouco
o Tarso com seu jeito louco
o Scotch com a barba de Cuba
o Bi arregalando o olho
juntando laudas com Sergio de Souza

Estavam todos vivos até há pouco
o Múcio sempre nervoso
o Fortuna com cara de ogro
o Marcão Faerman e seus rebanhos
Markito e Gaguinho, que se foram cedo

Estavam todos vivos até há pouco
nas redações de telefone preto
nas teclas de duro alfabeto
nos papéis errando a cesta
nos gritos, gargalhadas, canetas

Estavam todos vivos e nem eram moços
tinham quilometragem em carne e osso
gastavam tudo pois não havia posse
apenas a fúria de escrever uns troços
que eram a vida inteira em papel impresso

Estavam todos vivos ao redor do fogo
que jamais morria por falta de histórias
havia algo maior acima dos armários
ou das madrugadas na ponta do lápis
talvez a eternidade sem se darem conta

Eu estava no meio, aprendendo o ofício
querendo ser útil, um irmão mais novo
um recém chegado ainda sem pouso
recebido como um igual e não era o caso
fui apenas o sujeito que ficou por último

Estive com eles até há pouco
meus irmãos de esquinas e encontros
títulos definitivos, páginas em branco
textos com precisão de linha de tiro
sons de baterias metralhadas ao longe

Por isso mostro hoje esse andar aéreo
como quem procura aquela dúzia de tontos
talvez eu esteja ainda lá, perto da meia noite
quando o mundo explode e não há mais tempo
Não tem por onde sair na hora do fechamento



ASTUTOS

Nei Duclós


Os demônios são astutos
Incorporam a crítica
e atribuem o que são
aos quem os caça
De raposa para cavalo
De onça para atiradeira

Os demônios são fajutos
Mas assumem a nobreza de espírito
Fraque sobre o lixo
Medalha de corruptos

Os demônios são batutas
Vanguarda em falsa cultura
Modelo de terror com brilho
Tortura em capa de revista

Os demônios são redutos
Ninho de correção esdrúxula
Olimpo de extrema feiura

Acham-se impolutos
E não inoportunos
40 dias no deserto
Resistem os justos



4 de novembro de 2019

TEMPORADA

Nei Duclós


O que é feito fica
Obra que te visita
Após o desmanche

O que posto some
verbo pastel de vento
Conversa posta fora

O que esqueço volta
Memória que não mereço
História fora de hora

O que escrevo queima
Temporada de incêndio
Leitura abaixo de bala



31 de outubro de 2019

ÂNCORA

Nei Duclós

Estávamos à deriva.
Quando nos encontramos eu lancei âncora.
Mas era alto mar
E continuaste à disposição dos ventos

Agora é cais
E me cobras posição
Não temos mais razão
Para aportar
Já me acostumei a te procurar
Em vão


27 de outubro de 2019

PERDIDO

Nei Duclós


Tantas vezes te perdi
Mudaste de identidade
Mas sempre foi o mesmo amor que desisti

Vai-te embora de mim disseste
Coração sem pouso cais submerso
Teto derrubado sítio sem cercas
Migrante no vento

Nada medra no teu áspero cultivo
Amante perdido sem memória



AMARRAS

Nei Duclós

É frágil o vinculo de qualquer matéria
Aço ferro ouro ou madeira
E nas amarras virtuais também se parte
O eterno amor ou o dom da arte

Tudo a morte iguala
Mesmo em vida decepção ou assombro
Existir é uma defecção sem norte
So se manifesta e por isso explode

Milhares de gerânios em tua janela
Enquanto eu for teu o mundo se move



CARIDADE

Nei Duclós


Tudo o que me falta eu reparto
Flor que não recebo
Beijo que me negam
Palavra que me escapa

De ti não quero nada
Amor que foi embora
Doçura hoje amarga



26 de outubro de 2019

FRONT BRUTO


Nei Duclós

Quebras quando chego ao limite
E me derramo, grama no granito
Rompendo o dique no risco da fronteira
Vocação amorosa que escolhe o crime
Volúpia de uma espera, flor que se demora

Não explico a fala que dói no entendimento
Peça socorro a quem te afastou, sorrindo
Enquanto eu ficava sério no front bruto e avesso



16 de outubro de 2019

LUGAR

Nei Duclós


Achei que aguentava
Que resistiria
O que é um amor
senão uma fantasia?

Mas me enganei
Fiquei onde estava
No lugar do adeus
Onde poderás achar
O que para sempre
Se perdeu



NÃO FAZ SENTIDO

Nei Duclós


Não faz sentido tanto desperdício
Por isso acredito no momento único
Tudo é simultâneo, virtude e vício
Ruas antigas cruzando edifícios
Avenidas em camadas, cidades nas nuvens
O tempo recriado em minutos paralelos
Convergindo para o mesmo núcleo

Onde existes e voltas para mim
Musa abraçada ao meu ofício



15 de outubro de 2019

SEM ARESTAS, A EXPOSIÇÃO 2


Ao longo de outubro de 2019 está exposta no Centro Cultural de Uruguaiana, RS, um trabalho feito a quatro mãos: fotos da artista plástica, escritora, poeta e fotógrafa Marga Cendón, com poemas meus feitos especialmente (com exceção de dois, já publicados em livros) para estas imagens. A seguir alguns exemplares da mostra. 


SUDOESTE

O sol se despede a sudoeste
Sob a bênção das águas e dos bichos
Acena, terminal, sem a fronteira
Que a terra impõe como destino

Ele mergulha em nuvens e pintura
No convênio entre a hora e a criatura
Pois se há um Deus Ele confessa
Sua vocação de artista e de poeta

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón
Da exposição SEM ARESTAS
NO Centro Cultural de Uruguaiana.




CAMPANHA 

O brete acompanha o campo
Perdizes ficam atentas
O medo aos solavancos
Atiça o voo rasteiro

Memórias marcam encontro
Antes que chegue a tormenta
A cerca divide o mundo
A solidão se concentra

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón
da exposição SEM ARESTAS
no Centro Cultural de Uruguaiana


SOSSEGO 

O quintal da casa é o Continente
Território próprio de São Pedro
O gado e a mata são extremos
Extensões do braço e do sossego

Não está perdida esta presença
No centro do mundo fica o ermo
Quem vive ali tem companhia
A obra do amor com a natureza

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón da Exposição SEM ARESTAS no Centro Cultural de Uruguaiana

SEM ARESTAS, A EXPOSIÇÃO 1


Ao longo de outubro de 2019 está exposta no Centro Cultural de Uruguaiana, RS, um trabalho feito a quatro mãos: fotos da artista plástica, escritora, poeta e fotógrafa Marga Cendón, com poemas meus feitos especialmente (com exceção de dois, já publicados em livros) para estas imagens. A seguir alguns exemplares da mostra. Segue no próximo post. 


ROMPANTE

Flor é penugem do campo
Amacia o rosto bruto
Parece água à distância
Diante do céu se maquia

Um outro cheiro cavalga
O dorso do pasto pobre
Cobre de luz a moldura
De uma paisagem sem nome

Fico perto porque assoma
Algo maior nestes ermos
Um rompante feminino
Na garupa de um perfume

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón
Da exposição SEM ARESTAS
No Centro Cultural de Uruguaiana.

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón da exposição SEM ARESTAS





QUERÊNCIA


Imenso, é a palavra do campo
Sem limites no seu corpo verde
Cabe nela o tesouro vasto
Feito de amor à primeira vista

Percorro sua luminosa especiaria
Querência, torrão de sentimento
Nenhum ouro vale tanta herança
Pertença por nascer em seus domínios
E morar em sua essência todo dia

Longe, como alguém que vai embora
Próxima para todos os instantes
Chego em ti quando respiro fundo
Sou tua voz que escuto em boa hora

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón da exposição SEM ARESTAS



BARCOS NA MARGEM nei

Não é preciso muito para a travessia
Remos ocultos no chão das chalanas
Dar as costas para a arquitetura

E esperar a noite, quando a ponte dorme
E sua sombra não reflete a lua
Cruzar no remanso a favor da correnteza
Levar no dorso o que a pesca desconfia

A margem do rio tarde se acostuma
Aos barcos imóveis imersos e duros
Mas eles escapam e cruzam a aduana
São ligeiros como piavas na linha

Nei Duclós
Sobre foto de Marga Cendón
Da exposição SEM ARESTAS
no Centro Cultural de Uruguaiana

14 de outubro de 2019

QUALQUER COISA

Nei Duclós


Qualquer coisa pode substituir um poema
Um encontro uma lembrança um emprego

Palavras sonoras não são necessárias
Versos estrofes sonetos
Essa é uma arte obsoleta

Exerço porque assim me expresso
Sonho de Arlequim dominando a cinza


POEMA SEM RETORNO

Nei Duclos


Arrisco a obra que de obra não tem nada
Já que não me cobra a majestade do espólio
E se oferece na feira sem os valores canônicos
Nem por isso deixa de ser o acervo que cultivo
Com o piso do mercado ou seja nada
Pois o poema está vivo e recusa o vicio
De ser um caso especial no mundo dominado por mendigos

O fato é que a poesia é como batida metáfora
Flor selvagem nascida nas fendas do martírio
Que medra livre ante os pontapés da fúria
Não por ter perfume mas por ser o que não morre
Composta do risco de criá-la em sacrifício
Sem dar retorno a não ser dizer que existo




ANTES DO VERBO

Nei Duclós


Antes de alguém escrever o Gênesis Deus não existia
Ele passou a Ser a partir do primeiro testemunho
Mesmo que o texto reporte os primeiros atos divinos
a existência de Deus não é retroativa

Deus disse faça-se a luz e a luz foi feita
Significa Deus só agora passa a existir
porque temos consciência disso pelo relato

O que era feito de Deus antes das primeiras linhas da Biblia?
Falar de deidades ancestrais não vale
São outros deuses
Não o Uno onisciente e onipotente

Terá ele poder sobre a literatura da sua origem?
Há controvérsias. Disso se aproveitam os ateus
E os poetas



8 de outubro de 2019

A VIAGEM DE AFRODITE


Nei Duclós



Vieste do mar a bordo de um naufrágio
E no cais de Nápoles oficiais te carregaram
Os homens de joelhos diante da tua beleza
As mulheres pediram flores do teu regaço

Foste conhecer os templos e monumentos
Que sustentam Veneza e Firenze
Ardias mais do que o sol da Sicília
Os príncipes duelaram até o ferimento

Mas partiste para paisagens nórdicas
De ombros cobertos e proteção na cabeça
Teus cabelos não mais esvoaçam em Roma e Milano
Teu ano sabático quase nos partiu ao meio

Estás voltando, deusa que o amor inventa
Na garupa de um poema que riscamos na bandeira
Desta nação que te ama e te pertence
Itália, que abraça a Deusa
E celebra tua cama ornada de ouro
No Olimpo eterno, nossa devoção sacrossanta



28 de setembro de 2019

CAVALEIRO DE AVENTURA

Nei Duclós


Não quero, pastora, ser teu vassalo
Amarrado ao amor pela cintura
Cerzir versos no inverno da planura
Nosso campo com clima de deserto

Prefiro rasgar o chão e sonhar trigo
A ficar embevecido na beldade
Para tanto renunciei à minha cidade
Pois de festas e salões estava farto

Leio Camões em exigua biblioteca
Para ferir canções no pinho antigo
Isso depois de semear e fazer fogo
Para teu rosto iluminar parede e teto

Quanto mais perco mais pesado fico
Deveria ser o contrário disso
Estaria leve por sofrer martírios
Mas sou um xucro cavaleiro de aventura

Fui poeta agora sou mendigo
Vivo das plantas que à força medram
E para não me limitar ao esses redutos
Amo-te sem razão porque sou loucura



21 de setembro de 2019

NOVO MUNDO

Nei Duclós


Reconstruímos o mundo
Nas ruínas depois do cataclismo
Dele ficaram essas pedras retorcidas
Monumentos sem rosto
Esculturas de gigantes
Perfis de um enigma
Sem retorno a nos perguntar
Quem somos nós
Criaturas geradas em águas profundas
Ou pelo fogo fátuo das estrelas?



20 de setembro de 2019

INVASÃO

Nei Duclós


Não me entenda mal, a tua beleza não é o motivo
De me aproximar com tanto esmero
Fico longe pois conheço que sou número
Entre tantos que sobram pelos cantos

Mas fico à vista, a esperança é a grande fantasia dos cativos

É o teu jeito, tua auto estima
Que projeta essa postura de estadista
Como se fosses dona do meu reino
E eu um pobre cavaleiro andante

Por isso arrasas sendo apenas o que vives
Com esses atributos de escultura
Houvesse uma religião minha devoção
Teria a força de um templo dos romanos

Deixo meus exércitos fora da cidade
Como ordenam as leis dos sacerdotes
Mas a insurreição parece inevitável
Deusa do Olimpo que invadiu o Capitólio



19 de setembro de 2019

SAÍDA


Nei Duclós

Poucas palavras bastam para cobrir a fuga
Uma senha que encontre a saída
Uma porta de entrada
E basta para despir as roupas antigas
Ganhar outro nome
Viver de brisa



BARCO PEQUENO


Nei Duclós


Talvez precise, mas não devo recitar o poema
Dizê-lo em praça pública
Ou confiná-lo em salas de leitura
Ou sussurrar versos em pérfida epifania
Ou mesmo inseri-lo em discursos

Devo abster-me
Como se estivesse sempre mudo
Ele estará recolhido em conchas
Ou velhos livros
Enquanto me mantenho à deriva
No mar que é meu segredo
Barco pequeno que rema contra o Tempo



ARGONAUTA

Nei Duclós


A maior aventura é o conhecimento
É o que me anima, máquina do tempo
Não para saber, que é pilha nas estantes
Mas descobrir, navio dos argonautas

Ver pela primeira vez é o assombro
Terras ignotas, gigantes de granito
Crônica em papiro, diários de bordo

Voltar então com o olhar devassado
Por ter cruzado o mar de estrela distante
Marco polar, aurora permanente
Mais de um sol, luas delirantes

A grande aventura é conhecer-te
Amor, mulher madura, coração ainda verde



16 de setembro de 2019

ENSINO


Nei Duclós


Você me ensinou os poemas de amor
Me aceitou, me quis
Foi e voltou como as estações
Depois me exilou

Na solidão medito nessa consagração
Que me devolveu o sentimento
Que ao contrário de você
Ficou


14 de setembro de 2019

AMARRA

Nei Duclós


Escreveste na pedra para que eu não esqueça
Mas não decifro rabiscos ou hieroglifos
Fico na mesma, não te compreendo
Sou leitor desatento, homem sem brilho

Herdaste dos deuses a inteligência
És de outra estirpe, talvez de outra espécie
Sobrevivente de um cataclisma
Mas que sucumbiu com algo mais forte
Meu desamor, tosca linguagem
De poemas forçados diante da deusa

Sou arauto da dor, sumida princesa
Preciso reler teu alfabeto
Talvez eu encontre o que nos separa
E costure uma ponte e aperte essa amarra



NO BALCÃO


Nei Duclós

Por acaso nos encontramos num café, em lugares opostos no balcão.
Ela se mostrou surpresa pois achava que tinha sumido de vez do alcance do meu sonho.
Ficamos nos olhando longamente, chamando a atenção de quem estava ao redor.
De repente eu disse num murmúrio, arrancando dela um sorriso profundo:
- Eu te amo.

A mulher que estava de olho grudado em nós na extremidade do balcão, chorou.



13 de setembro de 2019

LAÇO DE CATIVO

Nei Duclós


Só você não leu o que te escrevi
Exausto da solidão, que é viver sem ti
Já pedi perdão, já me arrependi
Estenda sua mão que ainda estou aqui

Não pense que sumi apenas que sofri
E continuo teu como nunca estive
O amor é uma emoção, laço de cativo
Não nasce em vão, não ache que morri

Me dê uma razão, volte para mim
Posso imaginar se acaso te perdi
Mas não hei de passar por essa traição
Pois tens o punhal beldade de um verão
E podes machucar mais do que já errei



AFRODITE

Nei Duclós


Te roubei do altar onde um oportunista
Quase te levou do meu convívio
Queria te expor como um bibelô
E não pelo que és, glória feminina

Nasceste porque Deus chegou ao limite
Da sua obra, esplêndida Afrodite
Ele se apaixonou mas deixou-te livre
Já que não é Zeus e numa sarça ardente
Disse-me que eu não deveria perder-te
Que eu não sou Odisseu que abusou da sorte
E quando voltou ainda tinha a bela
Que a todos resistiu ao tecer destinos

Te roubei do altar, momento de perigo
Com meu cavalo branco que foi do imperador
Soldados nos seguiram fazendo a segurança
E logo depois casamos, o povo estava em festa

Jogaste as flores para mill mulheres
E o mundo te amou, noiva que me deste
A felicidade por ter corrido o risco



ESCONDERIJO


Nei Duclós

Não tenho mais acesso, levantaste um muro
Pelo crime de eu ter dito o que não devia
Foi em vão a carga de poesia
Que te de dediquei de maneira explícita

Resolveste te ofender, plena de vurtudes
E eu pecador, com meu jeito rude
Sem jeito de tentar uma nova chance

Foste embora por um erro de cálculo
O tempo é meu aliado, não o meu verdugo
Fico melhor no amor correspondido
Mas não perco o prumo, mesmo tão sozinho

Perguntam porque exibo este rosto triste
Acham que perdi o gosto pela vida
Nisso não aposte noiva em sóbrio exilio
Posso não sorrir mas serei forte
Busco onde estiver teu esconderijo
Do deserto vim, rastreador indígena



11 de setembro de 2019

TUS OJOS

Nei Duclós


Tus ojos tienen el frescor de las mañana
Tu cuerpo es árbol, agua de montaña
Soy tu pájaro que sube hasta las nubes
Dices amor e el mundo se transforma
Es la primavera muy temprana



O PRESENTE



Nei Duclós


Como brincar na rua se as ruas estão mortas?
Como aprender se perverteram os livros?
Como crescer se envenenaram a comida?Nei Duclós
Como sobreviver se destruíram o trabalho?
Como acreditar se aparelharam a fé?
Como obedecer se todas as tendências se corromperam?
Como sonhar se a arte foi devorada pela mediocridade?
Como pesquisar se anexaram o passado às suas hostes?
Como escrever num ambiente ágrafo?
Como te amar se fui amarrado à indiferença e o desengano?

Só a palavra solta me levará até a ti
O poema, último reduto de uma Criação humana
Respaldo dessa divindade que no berço nos deu o presente da alegria



4 de setembro de 2019

LUGAR

Nei Duclós


Viajei por todo lado o tempo todo
Serra e litoral, capital e interior
Pantanal e Passo Fundo, de maria fumaça com baldeação em Cacequi
Alegrete Itaqui e São Borja
Passei por Curitiba morei em São Paulo
Peguei um avião para Brasilia outro para Foz do Iguaçu
Cruzei a ponte e fui para Libres Bella Unión Quarai
Fiquei um ano em Blumenau dois dias em Santa Maria
Estudei e comecei a trabalhar em Porto Alegre
Conheci Ubatuba Cabo Frio Parati
Tomei chuva em Livramento e Rivera
De carona cheguei no Rio
E me estendi até Vitória Jacareipe Nova Almeida
De casaco pulôver terno camiseta calção

Estive em todos os lugares
Em qualquer idade
De Uruguaiana a Tramandaí
Da Lapa ao Butantã
Mas só num permaneci
O meu próprio coração



A LÂMPADA

Nei Duclós


Primeira letra quando nos conhecemos
Tu perfeita com tantos tiques humanos
Rosto sem aparelhos ou truques insanos
Olhos que me colocam aos pés de Vesúvio

Toda surpresa é um presente para quem está esperando
E parecia impossível e já nos desvencilhamos
Quem acredita no amor à primeira vista?
Certamente os solitários mas deixamos passar

Com o tempo o que senti volta ao lugar do crime
Procuro na praça castigada pela chuva
Olho para o chão e escuto: achou?
Não, dizemos em uníssono
Estava bem aqui mas agora está escurando
Debaixo da lâmpada que no fundo era a lua
Olho para ti a segunda vez que nos apaixonamos

É só um poema cercado de buzinas
E uma frase solta no ar
Um eu te amo



GARRANCHOS


Nei Duclós


Passou a hora do poema
Que eu entregaria em mãos
Fiquei com a letra ardendo
Muda na hora da desunião

Melhor assim. Vejo agora
Que era preciso reescrever
Para disfarçar a bandeira

É o que faço agora no teto
Sobre teu quarto fechado
Vou mudar para pássaro
E bicar tua janela até de manhã

Hás de notar o papel com garranchos
Que ostento para que leias

Não me importa que digam
Queo amor é tão ridiculo
Que parece bobagem o sentimento


1 de setembro de 2019

ÁGUA DO PLANETA

Nei Duclós


Em cada planeta as criaturas escolheram os elementos essenciais da vida.

Em Jupiter foi o gás em Mercúrio o enxofre em Plutão a sombra na Lua a areia em Vênus as nuvens baixas pesadas em Marte o fogo em Saturno os arcos e na Terra foi a água.

Daí vieram os lagos os rios os canais as cisternas as cachoeiras os aquedutos as represas.

E também a Deusa da Água, mãe generosa sem a qual não haveria nada a não ser pedras colocadas por toda parte a expor o remorso do dilúvio.

E tem o mar, espaço não domesticado a combinar com o vento o terror do desamparo e com o sol os gloriosos dias de praia.



26 de agosto de 2019

FALSO RECATO


Nei Duclós


Escrevo para ti sem que ninguém saiba
Nem mesmo tu, namoro sem futuro
Escondida em tua esfinge trêmula
Sei onde mora teu desejo
Olhe para mim, falso recato
Charada em papel de almaço
Canção de realejo em remota praça

NOVO CONTINENTE

Nei Duclós


Éramos amigos antes da política
Éramos irmãos, éramos amores
Tinhas uma flor em cada despedida
E um coração nos sons de uma visita

Disseram que era errado beijar se houver conflito
E dar as mãos se houver necessidade
Exigiram a prestação da identidade
Decorar a lição, provar fidelidade

E eu que te queria fiquei na solidão
E tu que eras minha agora és partidária
Não abrimos a boca sem que nos contestem
Amor só entre iguais, modorra de uma peste

Vamos fugir negando essas bandeiras
Voar em direção do livre pensamento
Cruzar o mar sem contrariar o vento
Voltar a descobrir um novo continente



METEORO

Nei Duclós

Nenhum meteoro atingiu a terra
Foi ela mesmo que ficou mais densa
E seu fogo recolheu-se para o centro
Mudou o ambiente amigável aos gigantes
E os dinossauros foram extintos
junto com outras grandes criaturas
Não havia mais clima
Agora a terra ameaça explodir-se
Porque chegou novamente ao limite
Somos esse meteoro de desavenças
Venha impor a paz, açucena
Com tua doçura sem o sal da profecia


PARTIR

Nei Duclós


Partir, dizem os sinais
E as bagagens se acumulam pelo cais
Todos vestem roupas de sair
Deixando o próprio coração para trás

Medo da guerra, medo da miséria
A falta de confiança é geral
Não há futuro na pátria que já era
Embarcam no adeus, a fuga contra o mal

Mas eu fiquei porque não estás de mudança
Abandonada na rua sem vizinhança
Buscas o pão mal rompe o alvorecer
Criança ao colo tens tempo para as flores

Arrancas no caminho as ervas daninhas
E o viço das miosótis esplende em tom diurno
És jardineira, vestido com cintura
Algodão prudente sobre a pele nua

Te imagino minha nessa solidão que tarda
Sigo pelo olhar teu andar enxuto
Só tenho a poesia, último cartucho
Quando explodir o mundo cubro a retaguarda



LÁ DENTRO

Nei Duclós


Amor jamais é um erro
Não gera arrependimento
Cria um mundo paralelo
Que é o mundo verdadeiro

Fora da sua fronteira
Existe dor e remorso
Lá dentro mora o desejo
A paixao e a inteligência

As almas que se apaixonam
Vivem o sonho mais denso
Não acaba. Só dá um tempo
Amor, volte para sempre



ÚLTIMO BANHO

Nei Duclós


Com os pés sujos de areia
Os joelhos gastos de uso
A pele antes do chuveiro
O cabelo, ombros, tudo

Dizer no meio do agarro
Que gostas do corpo alheio
Liberto de outros dengos
Barro com lã te desenha

Esperar que recomponhas
O gesto no tempo feio
A beldade que se entrega
Sabe o estrago que arrebenta

Sair depois a passeio
Cumprimentar os passantes
Com a cara de tratantes
Amor que dispensa espelho

Olhar o mar visitante
Aonde brota a lua cheia
Tomar o último banho
A convite das sereias

Dormir então de olho aceso
Alerta aos movimentos
Se acordas estou atento
Não perco nenhum momento


A INTELIGÊNCIA

Nei Duclós


Queria teu rosto tomando conta
do meu espaço.
Mas chamaria a atenção
e tiraria pedaço.

Jamais perdoam a admiração
pelo que tens de flor,
da tiara ao sapato. O espanto
da tua inteligência. o amor.



GETÚLIO EM AGOSTO


Nei Duclós

Um tiro no coração
Nas fuças da nação
Um tiro no coração
Logo depois da reunião
Um tiro no coração
Para que saibam a razão
Um tiro no coração
A morte em sua mão
Um tiro no coração
Está exposto o caixão
Um tiro no coração
O povo puxa o cordão
Um tiro no coração
Pai com gesto de irmão
Um tiro no coração
No agosto da traição
Um tiro no coração
A dor de baixo calão
Um tiro no coração
O corpo abraça o torrão
Um tiro no coração
Quem lhe tira a decisão?
Um tiro no coração
Fica eterno esse bordão
Um tiro no coração
O sangue brota do chão

Presidente
Getúlio Vargas
Presente!
 

PERDI MEU TEMPO


Nei Duclós 

Perdi meu tempo, o Tempo levou
Ficou obsoleto o que tanto me tomou
Agora fica limpo o cenário final
O corpo não descansa em piso terminal
Prefiro estar corrente do que fingir espanto
Saio do meu canto e desafio o piano
Não tenho com isso nem o mínimo lance



A REVELAÇÃO


Nei Duclós


Eram muitos deuses porque o trabalho árduo
de vestir a terra de canais e monumentos
Mais os altares e as montanhas imitando templos
Com suas torres e terraços amplos
Precisava de mãos e da vontade dos gigantes

Eles então criaram a obra
Que hoje é só vestígio de ancestral espanto
Deixaram as pedras com formas ignotas
E rostos enormes de olho no horizonte

Tudo o que hoje pisamos é sagrado
Deuses provisórios se esforçaram
Para merecer a grandeza da primeira santa
E anunciar pela voz do arcanjo
a vinda de um Deus, síntese e convênio
Nascido de uma estrela de oriental comboio

A revelação é nossa epifania
Herdamos o eco de um Amor sem fundo
Não dá pé esse mar de corais extremos

Diante da criação somos todos mudos
a oração contrita expressa num mergulho
Deus está vendo e vive no comando
Aguarda o tom humano que resta neste mundo


HABITAR

Nei Duclós


Os espíritos se identificam
Na escassez das chances
O mundo não existe
Para a invasão recíproca
O normal é o isolamento
Somos casas sem número
Teu olhar fica restrito
Às minhas janelas de vidro

Dentro de ti habita
Alguém que me surpreende
Aproxima-se o desconhecido
Tuas peças sem liga

É mais do que estranho
O que sinto
Piso no lenço distraido
Somes na escuridão

Fica para depois
Ocupar a sala onde mora
Teu olhar de prisão, aflita.



20 de agosto de 2019

REENCONTRO

Nei Duclós


Um rosto conhecido
No século novo
Cercado por multidões
E cidades frias

Antigos verões
De nossas famílias
Banhos de sol
Expunhas o espírito

À noite na varanda
O amor de véspera
Não havia mais portões
Para a dose certa

Emerges agora
Na tarde chuvosa
Mal me enxergas
Coração de memórias



CAIO NA ARMADILHA

Nei Duclós


Acerto sem querer, acusas o golpe
Num súbito suspiro sufocado
Tens o peito tenso pelo impacto
do que eu disse, ao atingir o alvo

Agora essa ressaca
Em que aguardas a repetição do ataque
Mas eu não vi como fui certeiro
E me distraio te deixando brava

Mulher navega em outro território
Numa estratégia de diversa caça
Costura o rumo que deixei à solta
E me recebe como quem não sabe

Eu caio na armadilha, preso na graça
Que exalas fingindo não saber que matas



FERIDO

Nei Duclós


Tarde demais, beleza da minha terra
Sempre te quis, bouquê de flor e ervas
Estavas no salão, rodeada pela glória
Agora o amor bate em nossa porta
Soldado ferido depois do fim da guerra

O tempo acolhe o terminal estranho
Ele se arrasta procurando abraço
Tens o rosto colhido pelo drama
Somos os dois mais íntimos remorsos
Separados como o sonho numa jaula

Vou para ti com o poema ainda moço
Te apaixonas pelo esboço da palavra
Sopro do anjo que também se atira
Na piração de não ser correspondido

Por minha mão ele força sua fala
Para alguém que conheceu na infância
Que é mulher com o teu mesmo destino
De ser paixão que busca o compromisso



DOCE ALIMENTO


Nei Duclós 

Um verso é todo o poema
Uma palavra, um telefonema
Ou teu silêncio
Quando Deus desperta no alto da montanha
E os pássaros fogem dele
Para se abrigar em tua janela

Teu corpo que se soma à inteligência
É tudo o que oferece o sonho
Ponho de lado o teclado, a caneta
Enquanto desenhas o verbo no vento

Não precisamos de outra versão
Que não seja o amor, fogo que nos alimenta



18 de agosto de 2019

ALTAS HORAS

Nei Duclós


Grude feminino a altas horas
Quando me dava por perdido
Cheiro de surpresa, beijo maritimo
Tua leitura é uma voz que reverbera
dentro de mim, rainha da memória
Beldade viva que derrama açúcar
E que ao abraçar se põe à mostra

Lembro a cidade que tinhas na mão
Nos bailes sonoros e esplêndida praça
Fui espiar tuas pernas quando na quadra
Ostentavas o monumento de tua glória

De saia muito curta e largo sorriso
Desafias o juízo de quem te adora



TEMPO INSONE

Nei Duclós


Sigo os passos da noite
Acordando a toda hora
Os anjos pedem história
Os sonhos não dão sossego

Quando o claro se anuncia
Meus pássaros estão exaustos
Durmo quando já é dia
Fazendo tudo ao contrário

Perco a rotina das horas
Não atendo as desavenças
Me sacodem com sol posto
Foi a noite, explico tonto

Dormir direito com a lua
Embalado por estrelas
Só se não houver defeitos
Nem remorsos, nem lembranças

Insônia é um treinamento
Para a vigília da guerra
Quem vem lá? pergunto afoito
O último sentinela

Explode o tempo no jeito
De me deixar nesse alerta
Ficarei de sobreaviso
Garanto a paz que não veio



16 de agosto de 2019

O SOPRO RECOMEÇA


Nei Duclós

Só fiz o bem
E o mal foi um conselho
Aprenderei
Conforme vai o tempo
E voltarei
O sopro recomeça

Só fiz o mal
E o bem foi um tropeço
Acertarei
Se houver a nova chance
Lá estarei
Se for a flor que sangra

Só fui amor
No mundo indiferente
Me plantarei
Rebento no deserto
Combinarei
Corcéis do vento leste



15 de agosto de 2019

A DOR E A GRAÇA

Nei Duclós


Tudo o que é sério provoca riso
Toda comédia é fruto de um drama
Todo choro soa falso
Toda gargalhada é mal vista

Chamam de humor quando o certo é a graça
Chamam de dor quando a verdade ataca
Gosto de ver o que faz o palhaço
com sua tragédia. Tropeça para alçar voo

A vida é um circo para exibir o trapézio
um salto bruto que a rede não segura
Fomos devorados pelos leões da jaula
A lona pegou fogo, garantiu a manchete

A morte parece estar sob controle
na arte que mostra os dentes e a lágrima
mas é só um treinamento que a Monstra
dança como bailarina nos cavalos

A memória captura as perdas
mas depois tudo some pelo ralo
Fica o poema, serragem de picadeiro
que a chuva transforma em lama tóxica



14 de agosto de 2019

A CARA E A CORAGEM DO MEDO


Nei Duclós

Medo e inevitável para quem está vivo e passa por radicais transformações do berço ao desfecho. Mas cara e coragem para enfrentá-lo ou aprender a conviver com ele são opções. Você põe a máscara para sobreviver, mas isso tem a ver com o mundo de fora. Dentro a carapuça não cabe, você se vê inteiro, enxergando a morte como uma longa sucessão de perdas desde cedo. A escritora Aline Bei, que ganhou o Prêmio São Paulo 2018 como Livro do Ano na categoria estreante, expõe no seu romance O Peso do Pássaro Morto (Editora Nós, 2017, R$ 36 com a autora, frete incluído) esse tecido que embrulha a infância numa embalagem pesada do mundo adulto, e a vida adulta num celofane transparente de sentimentos dolorosos.

A estrutura do livro, em que cada capítulo corresponde a uma determinada idade (8, 17, 37, 48, 49, 50, 52), com a linguagem apropriada a essa marca do tempo, é um monólogo de solidão, abandono, desespero em busca do amor, que sempre falta nas relações familiares e profissionais. Tem tudo para ser um livro pesado, mas é leve pela maneira encantadora que Aline imprime em cada solução de linguagem, sempre surpreendente, em que as frases são expostas nas páginas em peças interligadas, orientando a percepção que fazemos de tão rica narrativa.



Como o livro é mais inteligente do que a resenha, é preciso não ousar inventar a pólvora e deixar que flua a contundência estudada da autora, um texto fragmentado e ao mesmo tempo inteiro, num ambiente quântico em que as realidades convivem aos saltos, esclarecendo a alma da personagem, dividida entre a frustração profissional, a memória afetiva, o embate com as rotinas, o recolhimento autoimposto e a crueza de dizer o que não pode ser silenciado.

Grande livro. Um assombro de talento e trabalho com a linguagem. Vejam isso: “...uma casa empilhada no meio de tantas outras naquela rua feia que por várias noites a lua esquecia de passar.”

A vida não tem cura. Escrever poderia salvá-la, mas quem evita a carta perdida que some no quintal abandonado? Aline não nos dá esperança, a não ser na literatura brasileira contemporânea.