13 de novembro de 2009

ZÉ CELSO E A PRESIDÊNCIA DE MACUNAÍMA


José Celso Martinez Correa, o Zé Celso do Oficina, no texto publicado no Estadão “Lula faz política culta e com arte”, celebra a esperteza e o talento histriônico deste que é, na sua avaliação, “o primeiro presidente antropófago brasileiro”. O que será que Zé Celso, o guru da carnavalização cultural, quer dizer com suas alegorias?

Seria enfim a vitória do Manifesto Pau-Brasil, da crítica de Oswald de Andrade ao modernismo bem comportado – e este, por sua vez, sendo a crítica ao academicismo, ao país que tentou ser branco, apesar de ter importado a população da África para fazer todo o serviço? Estaria enfim Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (que perdeu a forma), da obra de Mario de Andrade, no poder?

A antropofagia é uma ruptura da Semana de Arte de 1922, evento elaborado pela elite paulista e realizado no Teatro Municipal. O modernismo, que vaiava o burguês mas vivia dele, deu as cartas da cultura brasileira da ditadura até FHC, quando então a Tropicália, a Usyna Uzona, Macunaíma e a deglutição do bispo Sardinha ascenderam ao topo do poder via PT. Foi quando “a contribuição milionária de todos os erros” do analfabetismo alcançou o status de poder de estado. Seria isso o motivo da festa?

As inúmeras asneiras de Zé Celso estão embaladas num tom de vanguardismo vetusto, o mesmo que foi cevado na estufa do autoritarismo. Já estamos cansados de ver essa vanguarda, inventada sob medida, como alternativa ao confronto, à luta contra a ditadura. Vamos elencar as barbaridades do texto:

Zé Celso: “Lula é nascido em Caetés, nas regiões onde foi devorado por índios analfabetos o Bispo Sardinha que, segundo o poeta maior da Tropicália, Oswald de Andrade, é a gênese da história do Brazil. Não é o quadro de Pedro Américo com a 1ª Missa a imagem fundadora de nossa nação, mas a da devoração que ninguém ainda conseguiu pintar.”

Ou seja, não existe a imagem da comilança (índios devorando carne humana, metáfora da adaptação brasileira do corpo estranho estrangeiro), mas ela é a “imagem fundadora da nossa nação”. Entenderam? A imagem que não existe é a imagem fundadora. A que existe, o magnífico quadro de Pedro Américo, sobre a presença católica que combateu o hábito de comer carne humana, não significa nada.

Zé Celso: “Lula começou por surpreender a todos quando, passando por cima das pressões da política cultural da esquerda ressentida, prometeica, nomeou o Antropófago Gilberto Gil para Ministro da Cultura e Celso Amorim, que era macaca de Emilinha Borba, para o Ministério das Relações Exteriores, Marina Silva para o Meio Ambiente e tanta gente que tem conquistado vitórias, avanços para o Brasil, pelo exercício de seu poder-phoder humano, mais que humano.”

O desmatamento continuou a mil na gestão Marina Silva, nunca a cultura brasileira esteve tão por baixo quanto na gestão Gil, e Celso Amorim é o imbecil que todos conhecem. Mas sob a batuta de Zé Celso, tudo fica parecendo algo transcendental. Zé Celso já se esfregou em Silvio Santos atrás de verbas, estaria querendo algo do governo?

Zé Celso: “Lula não pára de carnavalizar, de antropofagiar, pro País não parar de sambar, usando as próprias oligarquias. Lula tem phala e sabedoria carnavalesca nas artérias, tem dado entrevistas maravilhosas, onde inverte, carnavaliza totalmente o senso comum do rebanho.”

As besteiras inomináveis proferidas por Lula aqui ganham uma conceituação fake. O uso do samba e do carnaval para justificar o jogo bruto da demagogia que todos conhecem é de uma desfaçatez sem tamanho.

Zé Celso: “Brilha Maquiavel, quando aceita aliança com Judas, como Dionísios que casa-se com a própria responsável por seu assassinato como Minotauro, Ariadne. É realmente um transformador do Tabu em Totem e de uma eloquência amor-humor tão bela quanto a do próprio Caetano. Essa sabedoria filosófica reflete-se na revolução cultural internacional que Lula criou com Celso Amorim e Gil, para a política
internacional.”

Filosofia, sabedoria e revolução aqui usadas para justificar todas as traições (“aceita aliança com Judas”)

Temos assim um painel completo das raízes da corrupção que nos assola. É, no fundo, a fonte da sacanagem, pois a partir das justificativas conceituais, tudo pode, desde o mensalão (“brilha Maquiavel”) ao aparelhamento completo do estado, tocados ao som da algaravia diária dessa “eloquência amor-humor”, que, está claro, não passa de uma procissão de argumentos inspirados no ressentimento.

O texto chega ao auge com a frase “Eu abro meu voto para a linha que vem de Getúlio, de Brizola, de Lula”. É o que eu costumo dizer aqui: vira e mexe, tudo acaba sendo culpa do Getúlio Vargas. Colocar um traidor na linhagem do grande presidente do Brasil soberano é pior do que um deslize, é má-fé.

Zé Celso revela um vetor importante do perfil institucional da nova ditadura, herdado da indústria cultural e que se abraça com as justificativas vindas da universidade. As duas fontes provem da distorção política que manipulou todo mundo para manter a ditadura sob a capa da democracia. Esse esquema já foi desmascarado pelos dois governos Lula. Então é preciso apelar para o Tabu e o Totem e outras palavras jogadas na vala comum da frescura criminosa.

Zé Celso queria ficar bem com todo mundo para se contrapor a Caetano Veloso, que chamou Lula de analfabeto. Tentou, neste texto, puxar também o saco de Caetano. Mas não cola. Analfabetismo não é antropofagia cultural. Oswald de Andrade certamente não queria que um traidor analfabeto tomasse o poder mentindo para os eleitores. Nem a denúncia de Mario de Andrade com seu Macunaíma tinha por objetivo levar a falta de caráter para o poder. Trata-se de barbárie pura e simples e a brutalidade não pode ser guindada ao trono da glória cultural. Vivemos numa treva tremenda porque sempre tem alguém para justificar a sacanagem dos poderes. Insurgir-se contra a tirania também é desmascarar a jogada das figuras carimbadas do falso vanguardismo.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: o assassinato brutal do bispo Sardinha, devorado depois pelos canibais. Eis um evento celebrado como grande coisa pela falsa vanguarda, que atingiu o poder e não abre mão de querer ser ainda vanguarda. 2. Agradeço ao amigo Max Montiel Severo por ter me enviado o texto de Zé Celso, via e-mail.

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