22 de novembro de 2009

TRANGRESSÃO E MORALIDADE NO CINEMA


Vi Les Hauts Murs (Entre os Muros da Prisão, 2008), de Christian Faure, filme baseado no livro homônimo e autobiográfico de Auguste Le Breton, o órfão de guerra (o pai, palhaço, morreu em 1915, quando ele, Auguste, tinha dois anos) que do reformatório foi jogado nas ruas de Paris, onde aprendeu tudo. O que o salvou foi a Segunda Guerra, quando era uma pedra no sapato da Gestapo da ocupação alemã na França (e por isso em 1945 foi condecorado). É de Le Breton a série de novelas com a marca Rififi, adotada depois do megasucesso "Rififi Chez Les Hommes", que ninguém queria filmar até chegar Jules Dassin, expulso dos Estados Unidos pelo macartismo, e fazer da história um filme memorável.

Por que este filme, o Hauts Murs, muito bem realizado, é um anacronismo? Poderia ter sido feito nos anos 30, quando se passa a história do garoto fujão que enfrenta a repressão e a brutalidade de uma prisão para menores, vendida para a sociedade como uma escola de correção. É, inclusive, de propósito, a adoção do cenário, do clima e até mesmo da interpretação dos atores. Tudo lembra o cinema clássico francês, especialmente os de Jean Vigo em "Zéro de conduite", René Clair em "A nous la liberté", e Marcel Carné em Cais de Sombras. Mas por que o anacronismo hoje? Vamos relevar o fato, importante, de os cineastas homenagearem Vigo, Clair, Carné ou Le Breton, glórias da cultura francesa. O foco deste comentário é a sobrevivência de um tipo de enfoque sobre a transgressão.

A tradição aponta para filmes como o próprio Rififi, em que existe um código de ética entre os bandidos. E vimos isso em Inimigos Públicos, em que Dillinger é apresentado como um herói charmoso. Diferente, claro, das injustiças sofridas pelo personagem menino na prisão de Hauts Murs. Mas ambos os casos nos remetem a um fato: será que já não dobrou o cabo da Boa Esperança a abordagem recorrente e canônica de que os transgressores são inocentes ou vítimas do sistema e que por isso se justifica sua reação, o crime (no caso do garoto, o furto, no de Dillinger, o assassinato e o roubo a mão armada)?. Havia um tempo em que a platéia torcia pela transgressão, pois esta estava calçada num conjunto de valores e princípios.

A vítima tinha sofrido uma injustiça, a orfandade, o abandono dos pais, a prepotência dos adultos, a pobreza, a marginalização, e partia então para a vingança. Era flagrado e ia para uma instituição brutal, injusta, sempre com um algoz lapidar, desses vilões que dirigem os cárceres e se transformaram, na literatura e no cinema, em paradigmas do Mal (em contraposição aos humanos seres dentro das celas). O Bem estão migrava para o encarcerado e sua reação era punida com a morte, o que arrancava lágrimas do público. Todos se emocionavam com a saga que, forçosamente, não poderia dar certo, pois a censura no cinema sempre foi pesada e não se podia simplesmente eleger o vício como virtude, mesmo que todos saibam que esses conceitos muitas vezes se misturam. Mas a armadilha funcionava e enchia as salas de multidões que se identificavam com as vítimas.

Mas aos poucos os transgressores acabaram vencendo em vários filmes. Lembramos como os bandidos acabam indo mesmo para o Rio (deveriam ir para Washington, terra de assassinos, mas eles preferem, claro, o Rio de Janeiro, capital do Brasil soberano, que virou Meca da impunidade no imaginário mundial), ou para o México (que no cinema americano, é a mesma coisa que o Rio ou o Caribe), junto com mocinhas esplendorosas. Há o caso de Um sonho de liberdade, em que Tim Roibbins e Morgan Freeman conseguem fugir da prisão e vão viver juntos, felizes para sempre, numa praia longínqua, em algum lugar do “planeta” (tudo o que é fora das fronteiras americanas é o planeta, terra de ninguém).

No caso de Hautes Murs, não há o que discutir: os órfãos dos soldados da guerra são tratados com violência e merecem mesmo reagir, fugir. No caso de Tim Robbins, quem resiste ao charme do fujão genial que, preso por uma injustiça, bola por vinte anos uma rota para ele e seu grande amor escapar das paredes que impedem o relacionamento proibido? Dillinger, de Inimigos Públicos, já vai mais longe, pois o psicopata é absolvido por seus problemas psicológicos e sociais. A transgressão assim migra para a moralidade e alimenta a indústria de espetáculos.

O sistema prisional continua bruto e injusto e não é reformulado, pelo menos no Brasil, porque não interessa e dá preguiça e também porque faz parte do fosso entre as classes sociais. Bandidos de colarinho branco vivem em iates e jatinhos enquanto a massa despossuída apodrece nos porões da ditadura sem fim. Uma abordagem adulta é a de Carandiru , de Hector Babenco, que faz a denúncia mas não endeusa os prisioneiros. O que já fez água é insistência de apresentar assassino como mocinho e presidiário como alguém com direito à liberdade. Pode não ter esse direito. Isso não significa que mereça ser punido de maneira torpe, com cadeia imunda e corrupta.

Ninguém deseja cadeia para quem quer que seja. Ou pena de morte. O que se discute aqui é o vício de apresentar o criminoso como herói. Hoje, sabemos, com tanto crime à solta, que não se sustenta mais manter o mesmo enfoque. Talvez por isso se lance mão do anacronismo, pois assim funciona o velho esquema de confinar a virtude pra que ela escape e denuncie a opressão. Esse recado já foi dado. Agora é a vez de fundir a cuca para encontrar novas soluções de roteiro. Ou daqui a pouco teremos traficante perigoso sendo apresentado como gente bem. Já existe alguns antecedentes.

O assassino italiano acobertado no Brasil é um deles. O matador venezuelano Chacal, que curte uma prisão perpétua na França, está sendo defendido por Chavez. Sem falar no inglês que roubou milhões e fugiu para o Brasil e só quando estava agonizando decidiu voltar. O ladrão se refugia no Rio, mas na hora da morte se entrega nos braços da sua velha Albion. Como dizia Martin Fierro: “Infierno por infierno, prefiro el de la frontera”.

RETORNO - Imagem desta edição: cena de "Hauts Murs" - os bandidos são os carcereiros.

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