1 de novembro de 2009

DILLINGER, O SURRADO CHARME DO PSICOPATA


Privilégio é crime (“toda propriedade é um roubo”, segundo Proudhon). O objetivo do crime é ter acesso ao privilégio (“meu cartão de crédito é uma navalha”, segundo Cazuza). Essa é a fonte do carisma dos criminosos, herdeiros de Robin Hood, mesmo que roubem para si e não para distribuir, como fazia o lendário bandido. Quando privilégio e seu acesso se tornam mais escassos – numa grande depressão, por exemplo – a criminalidade é uma das poucas possibilidades de se chegar ao topo (ou pelo menos, assim pensam os criminosos e seus admiradores).

Quando o marginal pertence às classes subalternas, não há novidade, faz parte da “natureza” das coisas. Mas se, como John Dillinger, é de classe média e tem o sorriso cool dos galãs de cinema, algo muda. Dillinger foi um dos primeiros ladrões inventados pela mass media. Ele estava no miolo de uma briga de comunicação. O ascendente FBI e seu líder, Edgar Hoover, queriam ganhar a batalha na rádio e nos jornais. Mas os jornais criaram seu avesso, o sujeito que fugia da prisão, não roubava correntistas, apenas banqueiros e se movia rápido como numa seqüência cinematográfica.

Dillinger alimentou o mito do bandido charmoso, uma linhagem que vem de Clark Gable em Manhatan Serenade (anos 30) e passa por Bonnie and Clyde (anos 70), de Arthur Penn. Mas basta ver suas fotos para notar que o sorrisinho maroto contrastava com os olhos do psicopata facinoroso, o olhar sampacu dos indiferentes. Dillinger matou sete pessoas e é celebrado como herói no filme de Michael Man, Inimigos Públicos,que usa mal todos os clichês do gênero e ainda chupa um filme famoso para fazer seu grand finale.

O filme famoso é Isadora, de Karel Reisz, de 1968, com Vanessa Redgrave, em que a grande dançarina, ao se enforcar na sua echarpe nas rodas de um irresistível carro esportivo de luxo da marca Bugatti, morre ao som de Bye bye blackbird (música de 1926 de Ray Henderson, com letra de Mort Dixon). É a mesma canção que encerra Inimigos Públicos, num close demorado no rosto parado da namorada de Dillinger. Como em Isadora, com o rosto em pânico de Vanessa embalado pelas notas de Blackbird (traduzido por graúna). Os cineastas acham que nós não lembramos dessas coisas? Ou sabem disso e nem dão bola?

Dillinger é apresentado por um fraco Johnny Depp como o machão sem igual, líder e durão, que conquista a moça na base da porrada, colocando-a contra a parede e socando quem se atravessa no caminho do seu desejo. O filme justifica a violência dizendo que ele perdeu a mãe aos três anos de idade e não tinha acesso ao que mais queria, dinheiro, poder e mulher. Isso não justifica nada. O cara era bandido e não merece o trato desse cineminha comercial no pior sentido, o de não arriscar nada e assim tentar atrair a simpatia do público.

A verdade é que deu para a bola com esses assassinos frios apresentados como seres humanos que merecem nossa consideração. O truque é sempre mostrar alguma deficiência desse herói fajuto, para humanizá-lo. O pistoleiro que não sabe nadar (Robert Redford em Sundance Kid), que é manco (Warren Beatty em Bonnie and Clyde) ou é simplesmente patético e bronco como o velho James Cagney são maneiras de dizer como são fofos. Merecem cadeia eterna, por mais que tenham sofrido injustiças ou tenham levado surras de policiais e políticos tão bandidos quanto eles. O antídoto do mal (o poder) não é o charme dos robin hoods, os que fazem justiça por conta própria, mas a própria Justiça, quando funciona.

Mas seria pedir demais da indústria de entretenimento, que enterra milhões numa porcaria e precisa da simpatia da crítica oficial. Eu acho um fiasco. Um milhão de vezes Paul Newman em Cool Hand Luke, num personagem que não era assassino, tendo sofrido mais do que dez Dillingers. Tribunais, cadeias, investigações: é preciso que haja ética na sociedade para julgar e manter o perigo à distância. Mas sabemos em que nível estamos. No meio de uma fábrica de facínoras.

RETORNO - Imagem de hoje: o verdadeiro Dillinger e Johnny Depp, que imita bem o sorriso mas dança ao não reproduzir a brutalidade do olhar.

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