16 de novembro de 2009

ALEJO CARPENTIER E A ORIGEM DO ROMANCE


Nei Duclós

O romance, ofício maior da literatura, é a aventura humana num território hostil. É a busca das fontes mais poderosas dessa arte, por meio dos rastros (as palavras) deixados pelos passos perdidos de tempos simultâneos, fases de civilizações superadas que coexistem a pouca distância do que se considera o presente. Por meio de guias, do instinto, das revelações, dos cheiros, da chuva, do granito, das criaturas de todas as formas, o autor parte para o Incriado, onde medram plantas que se recusaram a servir de alimento e deuses que jamais foram nomeados e que desaparecem sem deixar vestígios.

Para penetrar nesse mundo, é preciso achar a abertura que leva à fundação de uma aldeia misturada na mata, rodeada pelo mistério e a majestade de uma paisagem que são ruínas jamais decifradas. Para descobrir a origem da música, é preciso testemunhar o nascimento da palavra, um milagre que continua se manifestando, basta que o autor, como Ulisses, se jogue no desconhecido, impulsionado pela miséria de sua situação, pelo desafio da sua existência datada, pela necessidade de chegar até onde o fogo resgata sua função e todos os movimentos fazem sentido e deixam de ser essa repetição de gestos vazios, de rituais ocos, de vidas jogadas fora.

A busca, em Alejo Carpentier, na sua absoluta obra-prima Os passos Perdidos (um livro que te joga para sempre no exílio, já que depois dele nada mais precisa ser escrito), de 1953, implica em algo maior do que apenas abrir mão da superficialidade ou da alienação. Chegar ao coração do romance é notar que lá também a arapuca funciona e pode matar: “A selva era o mundo da mentira, da cilada e do falso semblante. Ali tudo era disfarce, estratagema, jogo de aparências, metamorfose".

Como detectar, na voragem das mentiras, o que realmente vale a pena? Como descobrir "uma noite que se impôs por seus valores de silêncio, pela solenidade de sua presença carregada de astros"? É preciso enxergar e não apenas ver: “Não mentiam as garças quando inventavam a interrogação com o arco do pescoço, nem quando levantavam seu espanto de plumas brancas. Só as aves estavam em tempo da verdade, dentro da clara identidade de suas plumagens”.

O narrador do livro, um compositor que ao pesquisar a origem da música redescobre o talento, está enredado num casamento de mentira, numa vida intelectual vazia, numa rotina brutal, numa frustração permanente. Algumas frases dessa fase anterior à sua partida dizem tudo sobre onde estava metido: “Voltei à nossa casa, onde a desordem da partida apressada ainda era a presença da ausente. Essa forma peculiar da indolência que consiste em se dar com briosa energia a tarefas que não são as que deveriam nos ocupar. Nesta tarde de chuva cujos trovões, aplacados, pareciam rodar sobre os charcos da rua próxima".

Passado tanto tempo do boom da literatura latino-americana no século vinte, é hora de revisitar o Mestre, o autor das bases do real maravilhoso e vítima do principal equívoco daquilo que virou moda. É o momento de revisitar esse grande autor sem a aura mística do marketing e da explosão de vendas dos seus clones.

Dizem que Gabriel Garcia Márquez rasgou os capítulos que tinha escrito de Cem anos de solidão quando leu este livro de Carpentier. E começou tudo de novo. Essa América Latina de Carpentier e Gabo, seria apenas a infância imaginada dos escritores, resíduo de velhos serões? Há um excesso de umidade e delírio nos textos trabalhados, uma denúncia que fica, na aparência, como obra de ourivesaria, mas no fundo é um pote de luz que quebra no mosaico e nos imobiliza num assombro.

O que era sonho emergente num mundo asséptico hoje é engolido pelo pesadelo do caudilhismo renovado, o que usa o voto no lugar da espada. Mas fica, intacta, a literatura que não apenas deslumbra, mas ensina, especialmente em Carpentier, o erudito que publicou três volumes de ensaios sobre música e é autor de outros livros maravilhosos, como O reino deste mundo, entre tantos.

Em Os Passos Perdidos (que li numa edição da Brasiliense de 1985, com tradução de Josely Vianna Batista) Carpentier se supera. Ele nomeia tanto o tédio quanto o encontro monumental de suas raízes, com a grandeza dos fundões de sua infância e de sua terra. Esse continente verbal emerge no horizonte literário ao lado dos maiores livros de todos os tempos, pois interage com A Divina Comédia, a Ilíada, Dom Quixote. É nesse patamar que Os Passos Perdidos se situa.

A leitura desse livro é mais do que uma experiência, é uma avassaladora viagem para as entranhas de tudo o que é humano e que nos assusta por sermos, sempre, o enigma de nós mesmos.

RETORNO - Imagem de hoje: tirei daqui.

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