13 de outubro de 2004

O VOTO PRISIONEIRO

Se não houve mesmo fraude nas eleições; se os candidatos com voto zero não votaram de verdade em si mesmo, se o voto zero não significa, portanto, roubo, e não serve para desmascarar as eleições; e se os votos dados aos suspeitos, presos, indiciados, acusados foram dados de sã consciência; então precisamos pensar na natureza da nossa tragédia. Quase impossibilitados de anular o voto, de escrever palavrão na cédula, já que não existe cédula, muitos deixaram de votar ou usaram o voto para a transgressão. Votar no Maluf (ainda disputado pelo PT, apesar das acusações), que teria colocado, num só dia, um bilhão numa conta do Exterior; votar no cara suspeito de matar o fiscal do trabalho, ou no outro que estava cadeia e saiu porque foi eleito, significa que a democracia virou, no país insuportável, uma prisão. Vota-se por empatia, por fidelidade pessoal, para protestar. Nosso voto, carreado para quem fez melhor marketing, e não para quem vai fazer melhor governo, faz parte da cela onde nos metemos.

VIETNÃS - A imprensa estrangeira continua publicando asneiras sobre o Brasil. O Independent, de Londres (a cidade de pessoas mortas, que não se olham na cara, como testemunham todos os passam por lá) comparou o Rio ao Sudão e a Angola. Quando não conseguem nos enquadrar na hispanidad (como fez recente artigo na Folha, que falou horrores dos Diários de Motocicleta), nos jogam na África. A América Portuguesa é um enigma para os anglo-saxões, a brancalhada estúpida que domina o mundo, que promoveu o golpe de 1973 no Chile, levou um pau no Vietnã, matou centenas de milhares de civis no Japão com a bomba atômica e invadiu o Iraque dizendo-se que estão a serviço de Deus. Mas a imprensa deles não é o governo deles, dirão, há diferença! Conversa. Os jornalistas também não escapam do sentimento de superioridade de que estão convencidos e quem olha para nós é para despejar preconceitos. Não somos o Sudão ou a Angola, somos muito piores, porque somos maiores, mais complicados. Não nos enquadramos em comparações. Temos um, dois, três, mil Vietnãs aqui dentro do país. Cadáveres são carregados em carrinhos de mão pelos policiais cariocas. Crianças ferozes rapam os turistas. Gastam milhões discutindo a duplicação da BR 101 e a estrada continua matando, com pista única, no trecho que sai aqui de Floripa em direção a Portinho. Um governador é suspeito de mandar matar gente (acusação a Julio Campos, irmão de Roberto Campos, divulgado ontem na Globo). No segundo turno, os candidatos se jogam na jugular uns dos outros. Praias sempre sujas, favelas derramando-se sobre os outros favelões, os de concreto. O dinheiro da Bacia de Campos serve para empregar estrangeiros em Magé e lá construir mansões, como mostrou, orgulhosamente, o Globo Repórter. Crueldade e indiferença são nossos principais governantes. Para onde nos movemos, há criminalidade. Quem disse que somos a África? Somos o Brasil, o país insuportável. De nós, sabemos demais. Nosso álibi é separar tudo em postas para ser servido à consciência, que assim vai deglutindo tudo devagar. Não vejo nada disso, diz uma aposentada fazendo jogging no Leblon.

SABINO - O roubo aqui é de bilhão para cima. Banqueiros fazem greve de bancos, pois é deles esse movimento: como não dar aumento aos grevistas depois de terem lucrado tanto? A imprensa vai até o rio Tietê e faz matéria lá sobre os mosquitos. Por que não perguntam ao governador: o Sr. tem vergonha na cara? Então dá um jeito no Tietê. Ninguém dá, fica tudo assim. Para quem quiser saber do que estou falando, basta visitar o Fotogarrafa, de Marcelo Min (link ao lado), que mata a pau denunciando a concentração de renda em São Paulo. Dinheiro sai, literalmente, pelo ladrão. Os salários minguaram e sumiram. Mas o país cresce, pelo menos até dia 31 deste mês, eleições do segundo turno. Espancamentos na rua, mortes, rebelião nas favelas, assassinato de Apoena Meirelles. Morre Fernando Sabino e Salviano Santiago aproveita para dizer asneiras na Folha, comparando o escritor morto a Érico Veríssimo. Este, segundo o artigo de hoje, teria escrito entretenimento com qualidade, enquanto Sabino, sim, não deu o braço a torcer, tudo pela literatura. Nada contra Sabino, tremendo cronista e romancista. Li Encontro Marcado e me assustei, vi o Homem Nu, com Paulo José e achei demais. Mas Zélia, uma paixão é o quê, senão apelação? Érico Veríssimo, além de magnífica obra (entretenimento um bom cacete) construiu a Editora Globo, que ajudou a civilizar o Brasil soberano, esse país que jogaram fora junto com as crianças. Érico insurgiu-se contra a ditadura que queria colocar publicidade nos livros. Sabino fez uma apologia da ministrona que enterrou o país. Vamos com calma que Cruz Alta fica mais em cima. Voto livremente em Érico, pois continuo no Continente, cercado no Sobrado, mandando bala.

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