16 de outubro de 2004

A FRAGILIDADE DA ÉTICA


Superman, o filme, foi lançado em 1978, na época em que Jimmy Carter, à moda americana, tentava acertar os ponteiros do mundo dominado por ditaduras. No Brasil, a gestão Carter nos concedeu a anistia (de mão dupla, já que perdoou torturados e torturadores). Os Estados Unidos (depois do desastre Nixon) voltavam a acreditar na ética e é desse material que foi feito o herói reencarnado por Christopher Reeve. Nada mais frágil, e perigoso, do que se achar no lado certo, pois o Mal toma contornos nítidos para, por oposição, realçar uma ilusão, o Bem pronto e acabado. O cabelinho engomado, a roupinha azul e vermelha, a capa tremulante fazem de Superman a imagem da autosuperação dos gringos, que o inventaram na época de Roosevelt e o ressuscitaram no governo politicamente correto dos democratas, pré-estréia do que viria a ser o republicanismo messiânico de Reagan (pai da atual ditadura Bush) e da renovada República Velha no Brasil, a atual ditadura civil.

NUVENS - Mas os americanos sabem fazer cinema e não há cena de amor mais encantadora do que o vôo nas nuvens entre o herói e sua namorada. A capacidade de voar, premiada com um Oscar especial, e o carisma do jovem ator Reeve, somaram-se à atuação de grandes nomes, como Marlon Brando e Gene Hackman. Direção impecável de Richard Donner (que dosou humor com cargas maciças de aventura), música de John Williams (que criou um tema inesquecível) e um timaço no roteiro: Mario Puzo, David Newman, Leslie Newman e Robert Benton, que se basearam nos personagens criados por Jerry Siegel e Joe Shuster. O roteiro erra no fundamento: quando Superman faz a terra girar ao contrário (a velha mania americana de driblar a morte), ele refaz apenas as conseqüências da tragédia. A repórter volta a viver e a barragem deixa de explodir. Mas a causa da hecatombe (a bomba atômica viajando para o centro da terra) é simplesmente esquecida. É típico de um cinema que serve para iludir a massa e vender o bom-mocismo da América. Se, como diz Curtis White, o filme de Spielberg do Soldado Ryan serviu para preparar o mundo para a invasão do Iraque, Superman ajudou a embalar a cidadania iludida para o reagnomics que viria, o heroísmo hollywoodiano disfarçado em ética que acabou engolindo o mundo para a futura globalização. Nós, desde lado do universo, pegamos apenas a rebarba. Somos sempre figurantes menores no espetáculo internacional. Aqui, a ética é pelo avesso: se alguém está preso, sendo perseguido, é porque rebelou-se contra as tiranias. Se está sendo processado, é porque fez. Tanto faz roubar. Muita gente pensa assim.

ARROCHO - A ética, por aqui, está confinada ao isolamento da cidadania prisioneira (já em outra cela, feita pelas amarras do arrocho econômico). No fundo, a ética volta-se contra todo mundo, pois é usada pelo poder para continuar manipulando nossas vidas. Nessa armadilha, qualquer insurgência vira um álibi perfeito para alguém nos enquadrar em algum tipo de suspeita. A barbárie toma conta das ruas, mas já é de outra natureza: você está sendo observado, cuidado, não encoste sem querer em ninguém, vigie-se, pois qualquer movimento em falso e estarão lhe acusando de alguma coisa. Todos são éticos, consultores da humanidade. Você, pobre coitado, não passa de um sub-cidadão, esforçando-se para dizer sim a tudo, para escapar das garras da condenação eterna. Há um anjo armado de espada contra você. É a ética poderosa do Medo sem fim, a que te faz bem pequenino. Não siga nada, nem conte piadas. Poderá ser confundido com alguma coisa. E quando visitares tua terra, sorria quando te disserem: ué, não te prenderam ainda?

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