26 de outubro de 2004

EU NÃO SOU DAQUI, MAS AQUI ESTOU


A xenofobia interna chega ao auge na campanha para prefeito em Florianópolis. O candidato da situação Chico de Assis intensificou os ataques a Dario Berger, ex-prefeito (por dois mandatos) do município vizinho de São José e que lidera nas pesquisas. A polarização é entre os que são daqui contra os que não são daqui. Os que são daqui são honestos, os que não são daqui são desonestos. Gente que nem é daqui, diz a atual prefeita Ângela Amin, que tem sobrenome de migrante, mas é nativa. Segundo suas palavras, dedica grande amor à cidade (o que não se duvida, pois sua longa gestão de oito anos foi positiva). O problema é o incentivo a uma exclusão que é absurda, já que nem mesmo os índios que aqui habitavam era originários daqui. Vieram vindo, como todo mundo. Outra contradição é definir o habitante local como manezinho da ilha, quando a cidade também se espalha por vasta porção do continente.

NÃO TEM? Uma expressão típica do habitante dessas paragens é o famoso não tem?, que encerra as frases. Como ventou, choveu e fez frio desde que aqui cheguei pela terceira vez (em maio deste ano) brinco que a ilha diz não tem para quem quer usufruir os seus encantos e guarda-se para outros momentos, especialmente quando pobres criaturas como eu estiverem bem longe daqui. Mas o que realmente me incomoda é o consenso sobre as etnias que existe no imaginário deste estado. Como se Santa Catarina fosse um mosaico de etnias, uma espécie de Kosovo paradisíaco. Nos programas especiais, sobra alemão. Me dizem que no interior há ucranianos e há também a cobertura italiana, já que os vinhos emergem pelo estado como nunca. Mas e os brasileiros, ninguém é brasileiro? Claro que há. O candidato a vereador mais votado na capital é negro. O próprio mané é mestiço. Mas há certezas: cidade que não tem alemão não vai para frente, já me disseram. No caixa do supermercado, o loirinho recebe e retribui um cumprimento: Hitler! É verdade. Pergunto, abismado: Hitler? Por que?, me diz com uma cara já preparada. Ele fez muita maldade? Meu sangue subiu à cabeça. Resolvi provocar. Não, respondi, é porque ele era austríaco. O interlocutor descambou. Austríaco? Mas ele não era alemão? Não, repliquei, vitorioso. Não tinha nada de alemão. Não cabia no compartimento de raça superior que ele mesmo tinha inventado. E saí, apavorado. Falei desse assunto por aqui, ninguém deu bola. Sou metido a paranóias, dizem. Pode ser. Não tem?

GELO - O bom é que a cordialidade por aqui é hegemônica, e as pessoas, de vivência comunitária, te tratam bem. Mas por favor, tira essa placa de São Paulo. Paulista por aqui ainda é novidade. Outra novidade é o conceito de fora do gelo. Tudo é super gelado, nem tente pedir algo que não esteja em ponto de cristalização criogênica. Talvez para não deixar transparecer que esta não é uma terra tropical, o que não seria bom para o turismo. Atrair pessoas para o Pólo Sul com fotos que parecem a Bahia significa silenciar sobre este frio sem fim. Chegaram ao esplendor quando pedi pizza, com guaraná sem gelo. Claro que me entregaram gelado. Mas me avisaram: está sem gelo, eu mesmo peguei. Toquei na pet: estava suada de tanto ficar no freezzer. Me assustei. Então tá, disse, paguei e fechei a porta. Tudo é possível. Até mesmo uma redação inteira levantar-se, em uníssono, no entardecer de uma sexta-feira e todos irem alegremente para...doar sangue no hospital mais próximo. O que tens contra isso? me perguntaram, quando estranhei o programa. Nada, respondi. E saí de costas. Fui para casa, para baixo da cama.

SONETO - As fotos de Anderson Petroceli sempre me levam para poemas sobre a paisagem da minha cidade, Uruguaiana. Eles podem ser vistos e lidos no portaluruguaiana. Fiz mais um recentemente:

ASSOMBRO

Nei Duclós

Todo sangue reuniu-se no crepúsculo
Os barcos descansam sobre os peixes
Os tiros se aquietam como os pássaros
A nuvem fuma o roxo esquecimento

As margens são inúteis sem o vento
O céu faísca o ouro sem proveito
Alguém partiu ao soar do ângelus
Existia água, agora tudo é chumbo

Houvesse esplendor teríamos tudo
Mas há apenas medo diante do mundo
Perdemos o que nos fez humanos

Mas não há horror, apenas sonho
Teu olhar pinta o adeus supremo
A noite veste uma futura sombra

RETORNO - Não sou francês, nem alemão, nem paulista, nem catarinense, nem mesmo gaúcho (não monto a cavalo e no máximo pertenço à civilização das águas riograndenses). Sou um dos poucos brasileiros existentes no planeta. Nasci e moro em território nacional. Portanto, não me digam de onde sou. Disso me encarrego: sou do Brasil, país soberano. E aqui estou porque aqui cheguei.

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