12 de outubro de 2004

O PEREGRINO ENCONTRA O ABISMO



O 12 de outubro, por ser o dia de Nossa Senhora Aparecida e da Criança (a inocência protegida pelo sagrado), é também dia de Romaria, a obra-prima de Renato Teixeira, imortalizada por Elis Regina. O que diz a canção? Numa leitura livre, narra pela voz de um peregrino o encontro com a possibilidade de um milagre, que seria a paz nos desaventos, a tranqüilidade de espírito no país insuportável. Não há treinamento para se chegar a esse objetivo.

O cavaleiro que conta sua desdita justifica seu despreparo traçando o perfil de suas origens, família, negócios, andanças. Ele não se conforma com o Mesmo, a repetição da tragédia que é sua vida e vai em busca do Milagre, que significa interrupção, quando o chão falta e tudo pode acontecer. Para encontrar o Milagre, ele vai embora (dá o pira), sabendo que veio do pó e que o pó (de Pirapora) não é território do sagrado, a não ser que haja fé. Por isso o abismo se abre diante do seu olhar, seu olhar.

SANTA POPULAR - A grandeza do poema nos pega na primeira nota: É de sonho e de pó/ O destino de um só/ Feito eu perdido em pensamento/ Sobre meu cavalo. A solidão é o monólogo, a fala sem interlocução, o som sem eco, a palavra perdida no infinito do deserto, o pó de que somos feitos, o sertão, o interiorzão, onde nada existe, a não ser o cavaleiro e sua montaria. Nessa vida, não há espaço para a imaginação, a transcendência: É de laço e de nó/ De jibeira ou jiló/ Dessa vida/ Cumprida a sol. A saída é a invocação à Santa, para conseguir superar esse laço apertado da pobreza e a dura luta pela sobrevivência.

Uma invocação que não esconde a origem do narrador, caipira, pertencente a uma comunidade (caipira nossa), devota à Senhora de Aparecida. A santa é a prova de que, sob as águas da luta sem igual entre o homem e seu ambiente, entre a miséria e a vontade de continuar vivendo, é possível existir o milagre. Do fundo das águas, surge a representação da Santa, a imagem, o sinal, e desse evento nasce sua intensa carga popular. É uma santa do povo, porque está debaixo dágua, invisível, e foi pescada por pessoas de fé, que por seu intermédio encontram a fartura.

Não é de outra natureza a lenda da Santa: sobreviver com dignidade, usufruindo do Milagre, ou seja, da mesa farta e generosa, contrariando assim os desmandos que geram a fome e a morte prematura. O milagre é possível, ele aparece no meio do trabalho e provê os frutos da água e da terra. Essa possibilidade (a fartura em meio ao deserto social) é que precisa iluminar a mina escura e funda dessa vida pessoal condenada ao fracasso. Ilumina a mina escura e funda/ O trem da minha vida. Essa iluminação, ao mesmo tempo, funda o movimento (trem), que carrega os bens (trem) de uma vida que então se renova. A dupla significação da palavra funda é um dos achados mais preciosos da cultura brasileira e merece sempre ser celebrada como um dos momentos de esplendor da nossa poesia.

FORMAÇÃO - De onde vem o peregrino? Vem da dor ancestral de um país partido: O meu pai foi peão/ Minha mãe solidão/ Meus irmãos perderam-se na vida/ Em busca de aventuras. O narrador cumpre a sina da imobilidade social, pois é peão como o pai. A mãe é o conformismo, a solidão diante do massacre social. Os irmãos tentaram sair da miséria, mas perderam-se em busca das aventuras que o livrariam da sina. O peregrino também tentou sair daquele jogo que o matava: Descasei, e joguei/ Investi, desisti/ Se há sorte, eu não sei, nunca vi.

Por meio da sorte fica impossível encontrar uma saída, pois trata-se de uma armadilha: a ascensão social via loteria é um jogo mortal de cartas marcadas. Não sobra sorte para quem vem do povo. Mas existe uma possibilidade, a romaria até a Santa: Me disseram porém/ Que eu viesse aqui/ Pra pedir em/ Romaria e prece/ Paz nos desaventos. Que paz é essa? A paz social. Eliminar os desaventos, conseguir superar as dificuldades da sobrevivência, conseguir viver em paz, sem ficar permanentemente à mercê das intempéries. Há, porém , um problema: Como eu não sei rezar/ Só queria mostrar/ Meu olhar, meu olhar, meu olhar. Eis uma estrofe que merece ser colocada no alto da casa, para iluminar a noite. Pouca coisa se compara a esses versos finais. Impressiona pela ousadia, e nos revela que música popular é criação do mais alto nível.

ESPERANÇA - Sem saber rezar, sem ter cultivado a herança da oração, por ter se perdido em tantas tentativas, por estar absolutamente descrente de tudo, o peregrino está mudo diante da possibilidade de um milagre. Ele não espera mais nada, tem apenas a oferecer a sua expectativa, a sua integridade de pessoa à margem, de espectador permanente. Ele observou tudo na vida, a luta dos pais, as desventuras dos irmãos, sua falta de sorte.

Agora, convocado pela comunidade que ainda acredita na interrupção do Mesmo, ele vai até Aparecida mas chega lá e não encontra palavras de oração, que não possui mais, ou nunca teve. Fica então diante do Abismo, a possibilidade do Milagre. Ele olha para aquela chance sem poder tocá-la. O narrador se transforma na voz do cantador, no recado do compositor, na devoção dos ouvintes. Só com essa canção, Renato Teixeira atingiu a glória.

Graças a Deus, e a Nossa Senhora Aparecida, naquela época em que a música foi feita, tínhamos um milagre chamado Elis Regina, aquela que nos revelava o Brasil profundo, hoje mais oculto do que nunca. Tantas canções se perdem em função do horror do ruído que nos massacra. Redenção, um milagre, pedimos neste dia. Para que a Inocência do peregrino ainda criança diante da Santa esteja totalmente protegida. Rogai por nós, Nossa Senhora Aparecida, pela música do Brasil, que nos falta, como o chão no precipício.

RETORNO - 1. Ontem tive o privilégio de almoçar e conversar com Moacir Bastiani, nosso peregrino marista, que foi a pé, desde o Colégio Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre até o Colégio Santana, de Uruguaiana, por mais de 600 quilômetros à mercê do sol e da chuva pelo meio do pampa. Moacir foi recebido com festa na nossa cidade e tem tudo documentado num livro que será editado. Veio me dar a honra de escrever o prefácio, missão que aceitei com alegria nesta homenagem aos professores católicos que nos abriram as portas do conhecimento e nos incentivaram a fé nos milagres.2. Imagem desta edição: capa do disco de Elis onde está a gravação de Romaria.

2 comentários:

  1. Tudo o que concerne à Nossa Senhora de Aparecida é envolto em mistério. Esta semana descobri que ela é, na verdade, a Imaculada Conceição.

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  2. NOSSA SENHORA É MARAVILHOSA E NOSSA MÃES DEMAIS

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