31 de janeiro de 2012

A SEPARAÇÃO: O NÚCLEO INDISSOLÚVEL DA JUSTIÇA


Nei Duclós

Todos mentem em A Separação (2011), filme iraniano de Asghar Farhadi, até que a verdade vem à tona. Mas ela não se circunscreve à Justiça e sim ao foro íntimo. É no indivíduo que está a clareza sobre o que é certo e errado, independente de posição econômica ou política, atividade profissional, religião. O indivíduo sabe, mesmo que ele se envolva com todos os erros do processo que coloca duas classes sociais em oposição. O patrão da classe média que contrata a grávida, a empurra e é acusado de matar o bebê, enfrenta o marido endividado da sua empregada que quer colocá-lo na prisão e exige uma indenização pelo filho morto. Ambos enfrentam problemas conjugais e familiares, que explodem nas mulheres.

Do lado do acusado (interpretado por Peyman Moadi), que não quer sair do país alegando que tem pai com Alzheimer – uma representação do estado terminal do país obsoleto e fundamentalista – está a esposa (Leila Hatami ) que quer ir embora e levar a filha adolescente (Sarina Farhadi )para ter uma educação melhor. No colégio, a moça aprende que existe a elite e as pessoais “normais”, para escândalo da mãe progressista. E também lhe ensinam as palavras de um dialeto que são atribuídos a outro pelos professores, para escândalo do pai tradicionalista.

Do lado do acusador, que tinha sido preso pelos credores e vê no processo uma chance de sair do buraco, está a grávida (Sareh Bayat), que decide trabalhar escondida, já que o marido não coloca mais dinheiro em casa. Ao entrar em conflito com seu empregador, ela é obrigada a falar tudo para o marido, que entra em parafuso de violência. Tudo acaba nas mãos de um juiz indiferente e ao mesmo tempo minucioso, numa interpretação didática de como funciona o sistema judiciário no varejão do Irã.

O acusado mente que desconhecia a gravidez da empregada, esta mente dizendo que o empregador provocou o aborto, a professora mente que ele não sabia de nada, a filha é obrigada a mentir para evitar que o pai pegue três anos de prisão. É nessa filha adolescente que se concentra o drama. Ela fica com o pai enquanto a mãe volta para a casa materna. Seu objetivo é manter a família unida, pois sabe que mãe jamais a abandonará. Mas esse vínculo se rompe quando vê a mentira tomar conta do depoimento paterno.

Cabe a ela decidir se fica com o pai ou a mãe. Se ela se decidir pelo pai, optará pela tradição e o país. Se for pela mãe, será mais uma migrante. O filme termina sem dizer com quem ela fica, mas está claro que o pai, abandonado num banco do fórum, fica para trás nesse processo radical de transformação do mundo que o Irã teima em não aceitar. Lá, é proibido mulher dirigir, mas a esposa que se separa e quer ir embora dirige. É proibido mulher grávida trabalhar ou limpar idoso doente, pois a religião proíbe, mas na hora do aperto as regras são transgredidas.

É fora do fórum que se procura uma solução para o caso. Em vão, pois a proposta emperra nos princípios religiosos. Resta então a luz interior de cada um: todos enxergam claramente o que aconteceu e qual a culpa que carregam. Mas as contingências, as ameaças, as dúvidas, as pressões econômicas e políticas acabam colocando tudo a perder. A esperança está em quem sofre o impacto desse sufoco mas mantém a lucidez.

Mulheres de burka desde meninas até as mais idosas. Homens de barba obrigatória. O Deus oficial sendo citado a todo momento. É esse Irã medieval ambientado nas demandas da modernidade que o filme falado de Asghar Farhadi mostra por meio de um duplo processo: de um lado a separação do casal e do outro a acusação de assassinato. Em nenhum deles está a verdade, mas sim no coração devastado da jovem que vê seu país partido numa época de ruptura. Nela reside a fragilidade extrema da situação. Ao escolher a fuga ela rompe com o sufoco a que é submetida a população. Voa para a incerteza, mas só lhe resta a coragem de uma decisão fundada no seu espírito comovente, ético e natural ditado pela consciência.


RETORNO - Imagem desta edição: o casal em conflito interpretado por Peyman Moadi e Leila Hatami.

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