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Nei Duclós
Os anjos de Asas do Desejo (e sua seqüência, Tão longe, tão perto), de Wim Wenders, são uma radicalização da figura do flâneur, encarnado por Baudelaire: o cara que andava pelo avesso da cidade transformada subitamente pelas forças do capital, que entregava-se à contemplação e à reflexão nas largas avenidas que brotaram junto com os edifícios e as multidões. Há um componente nostálgico nesse personagem notório da História da Cultura, que teria resgatado, em plena metrópole, o modo de viver do campo, inconformado com a avassaladora presença das máquinas e a desumanização dos habitantes. Os anjos de Wenders, testemunhas da pequenez e da imensidão das criaturas que contemplam, expressam-se, como Baudelaire, pelo poético (a nostalgia da linguagem antes da demolição mercantil do discurso) e mapeiam as situações que envolvem os seres que estão sob os seus cuidados.
CHANCE – Mas se o flâneur histórico (inaugurador da modernidade) é ruptura diante do capitalismo nascente, e uma tentativa de resgate da harmonia perdida, os anjos da pós-modernidade são o sofrido olhar diante da decadência urbana, desse desmaio abissal que é Berlim reconduzida à unidade depois da guerra que a cortou ao meio. Há necessidade agora de o flaneur interferir na cena que observa, sob pena de tornar-se o árido espírito que gerou o abismo. Os anjos então se humanizam, e vertem sangue para aproveitar a chance: agora que o sistema dá sinais de cansaço, é hora de pousar nele o que há de mais profundo, a materialização do sonho cevado na exclusão secular.
ABANDONO – Outro flâneur de Wim Wenders é o personagem mudo desse filme que foi feito para nos derrubar, o incomparável Paris, Texas. Ele vaga pelo deserto em busca do amor perdido. Voltou enfim ao campo e nele procura encontrar o que não possuía mais na cidade. Guia-se por um paradoxo: um nome feliz de cidade encravada no grotão da América. Vaga sem nenhuma chance de encontrar o que procura e é por isso que há aquele blues tocado pela guitarra feita com os nossos nervos. A guitarra chora a impossibilidade e temos certeza que ali, naqueles momentos antológicos do cinema maior, nunca fomos tão sós. O abismo dessa figura é o horizonte sem fim que se distancia a cada passo.É no fundo o ser que perdeu a capacidade de se expressar (porque há um abismo entre o homem e o esquema que deveria sustentá-lo) e que sai em busca da palavra perdida. Encontra-a corrompida, exposta na vitrina do mercado. Mas ele procura recuperar a fala (a sua vida) e é com a palavra prostituída que precisa recompor-se.
Essa é uma das fábulas desse artista que nos comove pela compaixão (esses ausentes desesperados que despencam na paisagem) , que nos convoca pelo sussurro (esse poema que ninguém escuta), que nos leva até a amurada e lá nos aponta o chão distante, para onde irá nosso corpo sem sentido.Lançamos, então, tudo o que somos, no ar, para ter certeza se ainda contamos com alguma densidade. Vamos ao encontro de nós mesmos. Deixaremos, com Wim Wenders, de sermos o flaneur conformado com o olhar infinito. Se tivermos sorte, haverá sangue quando acordarmos no chão da cidade condenada.
RETORNO - Republico texto já divulgado aqui em 2005
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