4 de setembro de 2011

FREUD, DE HUSTON, O DETETIVE DE UM FILME NOIR


Nei Duclós

O filme Freud (1962), de John Huston, que ganhou no Brasil um adendo no título (“Além da alma”, que não quer dizer absolutamente nada), é um filme noir de detetive. O roteiro infilmável de 800 páginas de Sartre, encomendado por Huston, foi abandonado (sobreviveram algumas cenas e diálogos). A tarefa então foi entregue a pessoas do ramo, como Charles Kaufman, que transformaram o pai da psicanálise num Sherlock Holmes (interpretado por Montgomery Clift) vagando pelas ruas de Viena em tudo parecida com a Londres do fog. Dispõe até de um Watson, também médico, o Dr. Joseph Breuer (interpretado por Larry Parks), encarregado de cuidar dele e que é seu principal confidente e crítico.

Sherlock precisa descobrir o assassino que age nos bastidores da mente e leva as pessoas ao suicídio. Para isso ele tem algumas pistas, deixadas por um especialista francês que descobriu os recursos terapêuticos da hipnose e do seu próprio Watson/Breuer, que trabalha com pacientes que sofrem de histeria. Além disso, descobre em si mesmo os vestígios da neurose, o que o torna um referencial para o caso. A lucidez desaparece sem deixar rastros e no seu lugar é colocado um comportamento físico hediondo, incontrolado e falas desconexas varridos pelo pânico e o terror. O serial killer faz muitas vítimas e a medicina oficial (espécie de uma incompetente Scotland Yard) apega-se a conceitos e métodos obsoletos fundados em preconceitos de classe principalmente (o chefe dos médicos é um aristocrata que despreza a miséria física e mental dos pacientes, acusados de fingimento).

O detetive precisa romper o círculo formado em torno do mistério, pois, apesar de o crime estar à vista de todos e faz vítimas tanto na pobreza quanto nos palácios, há uma cegueira geral porque o cânone é a racionalidade como único recurso da mente humana e a sexualidade é colocada exclusivamente da adolescência para cima. A inocência da infância anexava a assexualidade, como se o sexo se manifestasse tardiamente e não desde o berço. O assassino que Freud precisa encontrar para desmascará-lo e impedir o estrago que fazia é a fonte da histeria. Onde ela se esconde? O método é a pesquisa e a dedução.

As evidências, mascaradas nas lembranças remotas e nos gestos explícitos dos pacientes hipnotizados, apavoram o detetive, um médico tradicional, de família tradicional. Tudo obedece às narrativas policiais clássicas, pois o que é revelado num primeiro esforço se mostra apenas a imagem avessa ou oblíqua de algo mais oculto. Para chegar ao núcleo da questão, ele preciso trabalhar um jogo complexo de representações. Aceita, por exemplo, ser o amor da sua paciente sabendo que ela apenas o uso para projetar um relacionamento traumático mais fundo com o pai. Isso ajuda o problema a aflorar, com todos os riscos possíveis, pois seu casamento, como aconteceu com o do Dr. Breuer, balança com esse assédio.

A mulher em questão é a bela Suzannah York, numa interpretação fortíssima, identificada com o que há de melhor de outra grande atriz, Julie Christie. Não por serem ambas loiras e jovens, mas porque fazem da angústia o aparato principal de um amor impossível, sem a afetação do ofício, apenas a afetação natural, da personagem. Ela imagina um relacionamento amoroso com o pai e transforma a vida da mãe num inferno. O próprio Freud descobre que seu ódio não percebido ao pai (que o impedia de cruzar o umbral do cemitério onde o velho estava enterrado) vinha da fantasia com a mãe.

As revelações bombásticas do médico outsider passam como um vendaval no meio científico e o estigmatizam para sempre. Mas Huston acredita na psicanálise e na sua importância para a humanidade, que compara com a de Darwin e a de Copérnico. A fé na psiquiatria tomou conta de Hollywood dos anos 40 até os anos 60. As pessoas eram problemáticas, se tratavam e se curavam , como vimos em inúmeros filmes. Não é tão simples assim, descobrimos mais tarde. O buraco é mais embaixo e não é um só. O vilão foi preso, mas acabou solto. E mais solto do que nunca, mesmo com toda a indústria da psicanálise em plena atividade.

Mas esses filmes permanecem como modelares porque conseguem ser didáticos sem serem falsos, talvez pela fé que todos devotavam a Freud na época. Clift inclusive queria dar pitacos sobr as falas, pois se considerava um entendido, o que provocu brigas com o diretor. Huston é um homem malvado e conseguiu fazer, como sempre, um grande filme. Freud é um filme pesado, não por ser em preto e branco, mas porque aborda temas pesados de maneira clara e corajosa. Por isso seu filme se mantém firme, como um farol à beira mar.


RETORNO - Imagem desta edição: Susannah York e Montgomery Clift em Freud.

Nenhum comentário:

Postar um comentário