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Nei Duclós
Publico aqui agora o resto da carta de Caio Fernando Abreu para mim escrita em maio de 1976 e que ele denominou de karta kaótica, como está no post anterior sobre o mesmo tema. Vemos Caio se insurgindo contra a mediocridade da vidinha pseudo-literária e descrevendo uma sucessão de personagens reais daquela época. Vamos à carta, que está ilustrada acima por cena do filme citado, Um dia de Cão (Dog Day Afternoon, de Sidney Lumet, 1975, com Al Pacino), e termina com uma debochada chave de ouro.
26/5
Dia cinza, frio, tão úmido que os papéis em cima da mesa amoleceram um pouco. Ontem fui ver “Um dia de cão” e gostei muitíssimo. É uma loucura total, incrível como o diretor consegue extrair humor daquela situação. Ri muito. E amei Al Pacino.
Você conhece Verinha-do-Proletariado? É minha amiga mais recente, estamos fazendo juntos uma matéria sobre psiquiatria para o “Movimento”. Ela trabalhou um tempo na Folhinha, é quase loira, tem um olho claro – e tão gozada, fuma horrores (Continental), usa uns sapatões mui masculinos, roupa amassada, desleixada, fala uns 10 palavrões por minuto – e mesmo assim não convence muito como marginal, você entende?
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Tenho um amigo novo chamado Rafael Baião, não é um nome perfeito? Elementos angelicais – israelitas e magrinhos... ”e que ficou desnorteado – como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado – como é comum no seu tempo/ e que ficou apaixonado e violento – como como você”. Rafael Baião escreve. Quem não escreve?
Junho vem chegando, já começou a gear – as laranjas e bergamotas estão um mel – agora, meu deus, será que conseguirei ultrapassar este agosto? O do ano passado foi fatalíssimo, lá pelo dia 10 eu achava que não ia agüentar mais – e agüentei ainda mais 20 dias. Não recebi nenhuma condecoração. Na Suécia quase 5% da população costuma se suicidar ou no último mês de inverno (por cansaço) ou no primeiro de primavera (por medo do verão).
Você não acha que o Sony do Dia de Cão era um grande cara? Ofereceu uma verdadeira festa pro povo, e tudo por amor, para pagar a operação de mudança de sexo de Leon.
Hoje à noite tem espetáculo. Ontem fui vender entradas na Filosofia. Fui de aula em aula, fiquei lá da uma às sete da noite. Vendi sabe quantas? TRÊS. E assim mesmo,pra gente conhecida, Glenda, Maria Augusta e Mossmann. Em volta a maior agitação, panfletos mis, papos incríveis (“dialética” continua sendo uma das palavras mais usadas...), eu me senti tão velho sentado naquela escrivaninha toda rebentada, usando uma garrafa vazia de pepsi-cola como cinzeiro, e sem conseguir acreditar em nada daquilo.
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O “Desescalado” é bastante bom – surprise! Sabe o que acho? Que tem escritores demais no país, eu ando me sentindo INTOXICADO de literatura – como é que fui entrar nessa? Quem sabe eu vou criar galinhas, qualquer coisa assim? Seria bem mais saudável. E esas plêmicas, esses pequenos escândalos todos me desgostam muito – acho tão VULGAR (soa meio aristocrático?), ando inclusive meio de pé-atrás coma “Escrita” – pode ser paranóia minha, mas me parece que há por trás daquilo uma jogada jornalística (no mau sentido), de fomentar (palavrinha gozada) escandolozinho , fofoquinhas, intrigas, - tudo muito provinciano, muito brasileiro (naquele sentido do brasileiro do Estocolmo), muito BURRO. O que está vindo á tona é uma imensa mediocridade, chacrinhas, grupelhos – duma bichice incrível.
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Acho que Ida e Daniel já devem estar aí. Um beijo para eles. Tô esperando que tudo dê certo para que eu possa ir em julho. Seria muito bom pra mim. Espero que o teu trabalho esteja legal, que você esteja contente. Se alguém perguntar por mim, diga que estou fazendo cursinho para o vestibular da Física, no IPV – é minha chave de ouro. Teu
Caio
RETORNO - Alguns esclarecimentos: 1. IPV é o Instituto Pré-Vestibular de Porto Alegre. Fazer IPV para Física é o máximo do deboche. 2. Há dois Daniel nesta carta, um nada tem a ver com outro. O Daniel do final é o meu filho. 3. Magrinhagem se refere aos magrinhos, como eram chamados os moços gaúchos daquela época e que se dedicavam à literatura, ao teatro, à arte, usavam cabelos compridos e não compactuavam com a hegemonia marxista. Era sinônimo de alienação, vagabundagem. 4. Movimento, Escrita, Ficção: imprensa alternativa a mil. 5. Continental era o forte cigarro sem filtro muito popular. 6. Heckeriano se refere ao escritor Paulo Hecker Filho, poeta e crítico super rigoroso.
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