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Nei Duclós
O homem é a sua obra. John Huston não era um bom sujeito, mas isso não significa que fosse um cara ruim. Era malvado, impiedoso, o que é outra coisa. Era aquilo que Clint Eastwood retratou no filme à clef “Caçador Branco Coração Escuro”: alguém capaz de colocar um projeto caro em risco só para satisfazer um capricho, assassinar um rinoceronte (o que provocou a morte de um africano). Como diretor, roteirista ou ator, ele sempre se dedicou à crueldade, não para assumi-la, como faz a besta do Quentin Tarantino, ou para transformá-la em espetáculo, como fazia o brilhante Sam Peckimpach, ou curti-la como um ritual como o Roman Polanski dos primeiros filmes, mas para denunciá-la.
Isso o coloca não no entretenimento, mas na literatura, ou seja, na narrativa que procura mostrar o que há de verdadeiramente humano num mundo em ruínas, para assim poder enxergar com mais clareza. É um dissecador de cadáveres viciado no ofício. Um olho clínico sobre o foco do tumor. Portanto, não podemos cair na tentação de colocá-lo como um humanista. Seu rosto de pedra, seu coração seco e seus lábios úmidos (que proferiam barbaridades ditas em tom de blague) não deixam. Sua denúncia não parte de um coração puro horrorizado com a malvadeza. Ao contrário, faz parte dela, é sua irmã gêmea. O fato de estar de lado de fora do balcão para fazer cinema o salvou da danação eterna. Não que tenha alcançado o paraíso, mas porque crestou a alma o suficiente para não entregá-la de mão beijada para o fogo eterno.
O horroroso personagem de Chinatown, de Polanski, um empreiteiro que rifa a filha para faturar com a escassa água de Los Angeles; o diretor de O Tesouro de Sierra Maestra sobre o panaca que perde o tesouro não só por ambição, mas por incompetência; Huston era sempre capaz de mostrar a maldade para despertar o seu avesso, a coragem. No caso do cinema, a coragem de ver. Por isso colocava os bibelôs de Hollywood, como Clark Gable e Marilyn Monroe, num rodeio de horrores no deserto em Os Desajustados, para sugerir que na indústria do espetáculo os mitos eram sua principal vítima e não seus deuses. Só isso já faz de Huston um criador radical e transformador, que apostou alto na sua lucidez para driblar uma malvadeza muito maior, o da manipulação de consciências das massas para colocá-las a serviço da podridão do poder.
Ele sabia que sua destinação era o agradecimento de seus pares e dos espectadores. Dos outros cineastas, porque abria caminho para a criação verdadeira, longe dos lugares comuns impostos pela mediocridade. E do público porque deu a ele a sinceridade necessária para enfrentarmos esse mundo hostil. Pois é só colocando a cara na frente do horror é que poderemos sair com algum ganho, sem sucumbir por nossa própria incompetência, fruto do nosso olhar viciado e ilusões perdidas. Ao saber de sua contribuição, Huston exibia aquela ar debochado dos grandes realizadores, os que tem plena noção do espaço que ocupam na História.
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Nesses cacos do mundo, Huston mostra o último reduto do humano: um gesto qualquer de solidariedade, mesmo que seja a retribuição de um favor. Lado a lado num banco de bar, os dois pugilistas, um em decadência e o outro em ascensão, dividem o mesmo espaço do olhar malvado do cineasta que os criou. Por isso ficamos putos o tempo todo vendo esse filme que nos incomoda e acabamos sucumbindo a ele ao fazermos o balanço no final.
É quando nos rendemos a John Huston, o cara que teve a coragem de dizer na nossa cara tudo o que vale a pena saber, com a maestria dos talentos insubstituíveis.
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