5 de setembro de 2011

LONGE DO PARAÍSO: A IMPLOSÃO DO CENÁRIO



Nei Duclós


Não existe reconstituição de época. O que existe é a disposição de elementos do cenário em função da narrativa. Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002), de Todd Haynes, é a composição de um ambiente que implode ao fazer o cruzamento com seu oposto. A dona de casa (Julianne Moore), que serve de modelo para a publicidade e confunde seu vestido com as cores da parede, descobre que está prisioneira de lustres, bibelôs, sofás e cortinas. O arco que a sustenta, o marido (Dennis Quaid), abdicou da sua função, sufocado pela cela construída como um evento social.

Ao refugiar-se no jardim, para expressar sua dor, ela é capaz de seduzir-se por um cenário diferente, que começa nas folhas do outono e deságua na dança enfumaçada de um bar da periferia. Sua busca da salvação está definida na opinião do seu jardineiro (Dennis Haysbert), que enxerga a divindade na arte moderna - vista aqui como transgressão do cenário. Enquanto as pessoas "normais" confessam seu desagrado por Miró e invocam Michelangelo para justificar seu preconceito, ela descobre que Deus pode também estar fora da arte clássica.

O lugar onde ela habita, que era uno graças ao hábito e o olhar contaminado pelo Mesmo, dissolve-se junto com o casamento. Primeiro, os elementos que eram poucos multiplicam-se, como uma revelação do olhar abismado pela surpresa e a descoberta. Depois, impedida de assimilar tudo o que acumulou e de partir para o lugar que descobriu, seu mundo desmorona e o que era diverso torna-se azul, ocre, quase sépia. A felicidade,que era a harmonia da repetição dentro da diversidade das cores e formas, é substituída pelo sofrimento, que é o cenário múltiplo virando uma grande e única massa espessa. A possibilidade do amor é representada pelo lenço lilás, aquele que voou por cima do telhado e foi encontrado pelo Outro.

O marido que procura libertar-se do casamento que entronizou o Mesmo, foge para o Outro que é sua imagem no espelho. O marido perde a luta contra o cenário e dele se retira para continuar com sua maldição. Ela entrega-se à luz que as flores brancas acenam como uma trégua.

O amor inter-étnico e o homossexualismo são apenas as formas de ruptura de cenários hegemônicos. Quando a vida é composta de objetos que ditam os destinos, a transgressão é a única saída para o que é humano. Mesmo que essa ruptura seja involuntária, de seres colocados contra a parede, fica evidente que o drama é render-se ao pincel que determina os papéis e que a emoção verdadeira é a viagem em direção ao oculto e desconhecido - o bairro negro, a estrada de ferro, a música que sugere o desespero e que não faz parte da falsidade representada pelas imagens. A verdade surge num flagrante no escuro, numa dança acanhada, numa visita noturna. O amor que escapou do cotidiano assoma na despedida e dissolve o horror da repressão, exercida pela tocaia de quem faz parte do cenário de badulaques efêmeros.

O cinema existe em função do que lhe escapa. Por mais objetos que componham sua trama, por mais personagens que o povoem, por mais emoção que desperte, ele só se revela inteiramente quando a palavra soa depois que o filme acaba. A palavra sobre o filme é o sonho marginal do cineasta que pinta um afresco como um Mestre insuperável. Mas ela se revela só quando levantamos da cadeira, quando perdemos enfim o filme todo para reencontrá-lo, inteiro, num texto insolúvel.


RETORNO - 1.Imagem desta edição: Julianne Moore em Longe do Paraíso, no momento em que exibia uma representação do cenário da sua vida, que acaba sendo implodido. 2. Este texto é um dos ensaios que introduzem meu livro, ainda inédito, Todo Filme É Sobre Cinema, e já foi postado aqui anteriormente. Estou revisitando essas minhas incursões iniciais sobre a Sétima Arte, como fiz recentemente com o texto sobre Fellini, que foi republicado aqui e no jornal Opção, com excelente repercussão nas mídias sociais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário