6 de novembro de 2003

PAZ AOS VIVOS E AOS MORTOS

Em pleno apagão em Floripa, na véspera do domingo de Finados, fiz um balanço e descobri o quanto devo em oração e agradecimento aos que estiveram comigo e já se foram para o outro lado. Nossos mortos não se conformam com o esquecimento e fazem barulho para lembrar que precisam de nós. Paz para eles e também para os que ainda estão na terra, à mercê da violência, que tem tomado conta do noticiário.

ASCENSÃO DA DIREITA – A coincidência dos ataques aos postos comunitários da polícia em São Paulo com as investigações bem sucedidas sobre esquemas de corrupção no sistema policial e judiciário tem desencadeado novo surto reacionário na mídia. Ontem, estavam todos lá, pregando o fim da política dos Direitos Humanos e a volta do poder infinito de reprimir sem prestar contas a ninguém. Não vou citar nomes pois todos sabem quem são e também não quero contaminar um espaço alto-astral como este com presenças sinistras. Mas não posso deixar de destacar o tom histérico dos apresentadores do jornalismo sensacionalista da TV, que revela a revolta dos que perderam com as ameaças de democracia entre nós. Esta não se consolidou (abrindo espaço para a atual ditadura civil) exatamente porque o poder democrático não conseguiu ou não quis desmontar o esquema repressivo a favor da má distribuição de renda que existe desde a época colonial e que passou incólume (com as devidas diferenças em cada época) por vários regimes. Hoje, o crime organizado que amedronta a população e contamina os negócios e a política é o verdadeiro poder vigente no País. Enquanto o presidente faz festa o tempo todo (já virou deboche), o País escorrega para o vácuo do medo e da insegurança, com a possibilidade de ficar muito pior, pois só agora está se chegando ao verdadeiro núcleo, a corrupção, desse poder. Não consigo imaginar uma cifra de 30 bilhões de dólares sendo remetidos ilegalmente para o Exterior. Isso não é mais corrupção, já é o sistema legal agindo criminosamente, pois um rombo desse tamanho não pode deixar de ser percebido. Volta à tona a atualidade da frase de Stanislaw Ponte Preta: “Ou nos locupletamos todos ou restaure-se a moralidade”. Parece que se locupletaram todos, excluindo a maior parte da população, que não tem mais trabalho, nem renda, nem direitos.

TODOS COMIGO - Vou citar um a um os que se foram e deixaram saudades. Meu pai, Ello Ortiz Duclós, empreendedor da fronteira, pescador de carteirinha, amigo certo; minha mãe, Rosa Molinari Carvalho Duclós, que leu e gostou dos meus primeiros poemas, que fiz ao nove anos de idade e que me deu tudo o que existe de bom no mundo; minha tia Maria, que me batizou quando eu tinha três anos, escondida do meu pai, que era ateu; minha tia Ceci, que assobiava entre dentes o Facceta Nera, hino do Mussolini na guerra contra a Abissínia e deixava todo mundo irritado, mas que era uma flor de pessoa, ingênua e profética (descobriu a interferência da poluição na mudança das estações, e via a presença de discos voadores como pistas de projetos secretos de russos e americanos, como demonstrou recentemente extensa matéria do Discovery); minha irmã Elvira, que me deu força quando eu era um adolescente muito magro, muito alto e muito desengonçado e que foi-se prematuramente com toda a sua elegância e bondade; meu amigo Gilberto Duro Gick, vítima da violência em Porto Alegre, um príncipe que morreu aos 26 anos, no auge do charme e da alegria; meu amigo Dorival Pacheco, que me recebeu com um grande sorriso na redação da Folha da Manhã em Porto Alegre; minha irmã Josefina, que foi encontrada sem vida em seu apartamento, onde morava absolutamente só; meu amigo Francisco de Assis Barbosa, jornalista que me abriu as portas de um emprego que me sustentou por dez anos, e que era uma pessoa ao mesmo tempo irascível e doce, e que foi-se levado pela doença, deixando saudades na sua família e seu vasto círculo de amizades; meu amigo Jorge Escosteguy, que foi-se aos 49 anos brigado comigo, mas com o qual compartilhei momentos inesquecíveis em várias redações; meus queridos Fortuna e Tarso de Castro, sobre os quais já falei bastante mas jamais cansarei de falar; meu inesquecível Edenilton Lampião, que deixou músicas, textos maravilhosos e sua marca em pessoas como seu filho Guilherme Sierra, jornalista de primeira, como o pai. Lembro ainda de colegas do Colégio Santana em Uruguaiana, como Itamar, que morreu num desastre na mesma noite em que sonhei com a queda de um ônibus num barranco, com ele dentro; e como Gindre, que estava sempre sorrindo e era muito fraco, por isso morreu afogado no rio Uruguai, de águas correntes sempre perigosas. A todos minha oração e meu agradecimento: é uma honra ser parte de todos vocês, amigos, parentes, seres humanos que enriquecem a terra nesta época tremenda, de tanta luta e desarmonia. Ainda existem outros, que vou lembrar aos poucos. Como Luis Holderbaum, que foi enterrado em Manaus, num episódio até hoje muito confuso, em plena época das trevas daquele regime que seqüestrou nossa juventude para todo o sempre.

CRÍTICA LITERÁRIA – Nossa Conselheira Editoral Zélia Leal Adghirni estará em Porto Alegre neste final de semana para dar uma oficina rápida sobre Mídia e
Crítica Literária, dentro da programação da magnífica Feira do Livro de Porto Alegre, presidida agora pelo meu primeiro diretor de redação Walter Galvani, hoje escritor de sucesso. Diz Zélia: “Quero pedir licença para usar tua página. Teu blog é uma fonte inesgotável de prazer e conhecimento. Você fala de tudo o que eu queria ler. Acho temas até para as minhas aulas.” Zélia é responsável, na UnB, pela disciplina Análise e Opinião, que trata dos gêneros jornalísticos opinativos ( coluna, artigo, editorial, crítica, etc). Ela pede minha opinião sobre crítica literária e enviei o seguinte: A crítica não fica por cima da obra, ela compartilha da obra, viaja na linguagem alheia, procura encontrar chaves para o que está posto nas portas da linguagem. Critica literária é poder entrar no coração da obra, colocar-se no papel do autor - sem usurpá-lo clonando seu trabalho nem pontificando sobre o que ele publica. A crítica não está nem em cima nem embaixo nem ao lado, está dentro, perto do coração selvagem da literatura. Pois a literatura é a linguagem disciplinada para a liberdade absoluta, portanto um desafio para a crítica literária, que tem como arma não os conhecimentos do crítico, mas apenas as palavras. É com palavras que entramos na arena para abordar a obra, que assim se clarifica pelo trabalho da crítica, ou pelo menos revela sua intensidade, pois a crítica é a leitura privilegiada da literatura.

RETORNO – A brilhante jornalista Mônica Serrano envia e-mail entusiasmado: “Tenho uma excelente novidade, passei no MBA!! Ontem à noite, a BM&F ofereceu um coquetel para os formandos e recebi o certificado com as notas. Tirei 9,0 na monografia! Você nem imagina como estou feliz, por isso, compartilho esse momento especial com todas as pessoas que me deram força e você foi uma delas, obrigada!” Lembro, Mônica, da minha casa, que vivia cheia de estudantes. Minha mãe lecionava todo mundo. Ela era funcionária pública do sistema de saúde do governo Vargas (que foi desmontado pela ditadura civil, que retornou 60 anos depois da revolução de 30), mas na juventude, antes de conhecer meu pai, tinha sido professora. Era uma festa do conhecimento. Herdei essa alegria daquela casa de esquina, maravilhosa, onde passei os mais belos anos da minha vida.

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