26 de novembro de 2003

NA CASA DO POETA MAIOR


Em Porto Alegre, roçando a beira do rio, passei de táxi pelos bairros de Praia de Belas, Tristeza, Ipanema e Espírito Santo. Numa pequena rua que desemboca na avenida vizinha às águas do Guaíba, anuncio-me. Desce então, do alto de sua casa, pela ladeira suave que vai até o portão, aquele homem reservado e digno, que me dá a honra de receber-me em seu refúgio. Foi uma tarde de revelações.

O HOMEM DO CREPÚSCULO - Enquanto sobe de volta para levar-me até sua sala de estar, J.A. Pio de Almeida vai me mostrando as árvores que fazem parte do seu sítio, e que o protegem do movimento da rua, abraçando-o em folhas fartas, sombras tranqüilas, raízes saltando do chão com cheiro bom de terra boa. Aponta seu braço para o alto, para onde vão os troncos espalhando galhos, em gestos que o identificam com a natureza próxima, memória de uma rede telúrica de laços. Nosso Poeta Maior desdobra-se em gentilezas, apoiado pela tranqüila presença de sua esposa Naja, que todo o tempo nos cerca de atenções. Vou então para uma sala de móveis sólidos, arrumados em torno de uma ampla janela, fazendo vizinhança a uma bandeira antiga do Rio Grande do Sul e um quadro de um índio charrua montado e sacudindo a alma mortal da boleadeira. Tudo tem história na casa de Pio de Almeida. Não por ser de outro tempo, mas por ser uma opção consciente de coerência pessoal, que nos transmite segurança e conforto, assim como suas palavras, que saem com a maestria dos grandes narradores. O sol que cruza a folhagem de sua floresta particular lá fora atinge em cheio seu perfil. Só as palavras poderão descrever aquela cena, só o verbo encarnará aquela tarde, nenhuma imagem que seja criada por mim traçará um perfil mais nítido do que este, que recomponho de memória, porque assim tem de ser, assim trabalha o espírito do poema, translúcido cavaleiro a temperar a vida. “Qual o sentido da minha existência?” pergunta o poeta, sem cair no lugar comum: “O que significa esse espaço de tempo entre meu berço e meu túmulo?” E ele mesmo responde: “Sou o crepúsculo do gaúcho pampeiro, sou a testemunha daqueles homens que se foram. Não faço parte deles, pois muito cedo fui retirado do seu convívio para ir à escola. Mas posso te assegurar: tudo o que escrevo está impregnado daquele mundo que vivi na infância, e daquela gente que me criou é feito o sangue da minha palavra”.

O AUTOR OCULTO - O sol foi entregando os pontos, mas a claridade permanecia firme. O poeta me recita, em espanhol, o poema de Neruda que fala de alguém que sabia ler o alfabeto do relâmpago. Neruda é um dos autores que levaria para uma ilha deserta. Outro é Guimarães Rosa. E o terceiro guardo para mim, para não despertar certas curiosidades, mas é um autor que um dia será plenamente reconhecido. Ele tem a grandeza poética que toda antropologia deveria ter, e encerra mistérios que nenhuma outra obra possui. Fala-me então o poeta da sua paixão pelo Uruguai, lugar onde já teve terra, homem que é descendente de proprietários de sesmarias no início do século 19. Teve terra lá, mas vendeu. Agora passa um bom tempo naquelas bandas da fronteira seca, onde visita campos, vertentes, morros e marcos históricos. Diz de sua amizade com Breno Caldas, o mítico proprietário da Caldas Junior e de como entrou naquele que era o reduto maior do jornalismo da nação riograndense. De como teve de romper cercos, transpor cercas e tocar a boiada de suas palavras. “Nunca quis cargo nenhum, sempre quis ser redator do Correio do Povo”, confidencia-me. Olha para fora e conta sobre sua relação reservada e amistosa com vizinhos.

FRIAGEM - Chamo o táxi de volta e o Poeta Maior me acompanha novamente até o portão, depois de eu ter compartilhado a mesa da família, onde a filha única, casada e moradora numa bela casa que fica nos fundos da propriedade, faz par com o marido simpático e jornalista que ainda sente-se um estreante. O motorista, que estava perdido, atende aos nossos gritos e João Araújo Pio de Almeida então se despede de mim, privilegiado visitante daquela casa sagrada, onde vive o maior entre os maiores, o escritor que soube construir uma obra e nada exigiu em troca. Hoje ele vive tranqüilamente, sem nada a dever a ninguém, me recebendo porque sua grandeza extrapola os limites das distâncias e das admirações. Somos homens da mesma geografia e eu sou seu aprendiz. Chamo-o de Mestre, porque ensinou-me, antes de conhecê-lo pessoalmente, só pelo exemplo de sua obra, a importância da postura de um autor, a necessidade de comportar-se como um escritor clássico numa época que apostou na superficialidade e na cultura descartável. O carro parte e Pio de Almeida acena com todo o braço, como fazem os homens do pampa, estejam onde estiverem - nós, que fazemos parte da terra banhada pelo rio Uruguai e seus arroios, Ibicuí, Itapitocai, Rodrigues, Touro Passo...O som dos pássaros noturnos marca o território dos espíritos: Caa-porã, Mãe de Ouro, Homem-de-Preto. Vejo o trem parar no ermo de Guassu Boi. Lá está o menino João, pronto para cruzar a noite numa estalagem sinistra, denominada Friagem. Tem apenas nove anos. O universo o observa, como um gigante respeita um herói.

RETORNO – Recebo convite do jornalista e escritor José Paulo Lanyi para participar no próximo sábado do programa Comunique-se, na allTV (das 18 às 20 horas). Ao mesmo tempo, me faz outro convite: “Neste sábado (29), às 20h30, vamos fazer a leitura do meu texto Quando Dorme o Vilarejo, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog em 2002. Essa atividade, sob a direção do Walter Sthein, vai marcar o lançamento da obra pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Depois da leitura, vou autografar o opúsculo, meu terceiro livro. A Livraria da Época é da nossa colega, a jornalista, escritora e editora Solange Sólon Borges. A livraria fica na Rua Braz Cubas, 429- Aclimação-Tel. 5539-7455. Te espero por lá.” Todos lá, prestigiando esse agitador cultural de primeira grandeza, que não deixa água parada nesta profissão que precisa de um empurrão para pegar no tranco.

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