5 de novembro de 2003

UMA GAMBIARRA DE RESPEITO

Diário da Fonte – Fase II

UMA GAMBIARRA DE RESPEITO

Ninguém me contou, eu vi: a portentosa, a gigantesca, a magnífica gambiarra que viabilizou a energia elétrica para toda a ilha de Santa Catarina. A obra-prima da engenharia nacional, feita na marra, poste a poste, cabo a cabo, com operários e técnicos trabalhando 50 horas seguidas, sem dormir, numa operação de guerra que honra a história brasileira e serve de modelo para a gestão dos recursos públicos: ou nos comportamos como guerreiros ou estaremos todos fritos.

TENTATIVA E ERRO – A solução de uma linha aérea foi tomada momentos depois do apagão, numa verdadeira operação de guerra. A Celesc convocou quadros especializados em cada item da obra, e acionou-se a indústria, na madrugada (a parte da cidade que fica no continente tinha luz) para fabricar peças especiais que faltavam. O terreno teve de se adaptar: a perfuração mudava de lugar quando haviam muitos obstáculos, ou estes eram removidos na raça. Palmo a palmo, a instalação avançou. Fincaram-se os gigantescos postes que hoje pontificam na magnífica paisagem, e a cada problema, a solução era encontrada ali, na hora. Dividiu-se cada grupo em tarefas específicas, desde a alimentação das equipes, até a compra de material necessário. O povo não arredava pé. Reclamavam da aglomeração, diziam que estava atrapalhando, mas o Brasil estava sendo feito ali, na frente de todo mundo e ninguém queria perder um lance sequer. Quando a luz voltou, houve um hurra geral, aplausos, gritos e rojões e lágrimas para todo lado. Esse foi o momento histórico do Brasil dos nossos dias: tantos problemas só poderão ser resolvidos assim, concentrando-se mão-de-obra especializada, alocando-se todos os recursos disponíveis para viabilizar as soluções, resolver os impasses no meio da treva, do vento ou da dor, andar para a frente, encarar o problema, decidir no fogo da luta. Pois se perdeu tempo demais, foram cometidos erros demais. Nesse episódio, os erros foram fatais: havia apenas uma conexão (que está sendo refeita) entre a ilha e o continente e o que é pior, o conserto que provocou o acidente é um exemplo de inoperância tremenda. No Brasil, erramos em todas as frentes: o rio São Francisco está morto, o desmatamento continua arrogante e impune, a violência come solta e os remendos são piores do que o soneto (vejam a reforma tributária, por exemplo). A solução é trabalhar no potencial: pegar o que o Brasil tem de melhor e encontrar a solução na marra.

TÁ CHEIA A BARRIGUINHA? – Vi também, na minha viagem, um programa da GNT (que aqui não assisto pois não assino a Net) com matéria de responsabilidade social e fiquei escandalizado. Numa escola de Brasília foi lido em classe o poema Morte e Vida Severina, do João Cabral, e isso despertou a consciência dos alunos. Criou-se um programa que consiste numa horta nos fundos do colégio. Nada contra a decisão. O que irritou foi a reportagem. A primeira alface colhida (a TV mostrou tudo) passou de mão em mão para cair no colo de uma catadora de lixo reciclável, que tem uma filhinha vivendo no meio do sujeira (ela trabalha no lixão), debaixo de uma velha barraca de pano. A repórter subiu na carroça da mulher e foi para a habitação. Lá perguntou para a menininha, que tinha reconhecido a alface (desculpem, gramáticos, alface para mim é no feminino, sinto muito): “Tá cheia a barriguinha, tá? ” Se a parte do salário da repórter, do cinegrafista, do editor de ilha e do apresentador fosse somada ao valor do minuto de publicidade que patrocina o programa, o problema da catadora de lixo estaria resolvido. De modo geral (não neste caso específico, pois os estudantes e seu professor estão bem intencionados) a responsabilidade social é uma forma de suborno: a classe média tem aí a chance de reiterar seu papel social de ascendência sobre os pobres, seguindo programas que são fontes de renda para inúmeros espertalhões, já que se trata de renúncia fiscal de dinheiro público, pois não? O que mais me irrita é a cara de superioridade que fazem arquitetos, jornalistas, antropólogos, que assim podem se locupletar exibindo-se frente às câmaras com seus bons sentimentos. Isso virou uma indústria. No tempo do regime autoritário civil-militar (1964-1985) a classe média foi subornada com automóveis e especulação financeira. Hoje, em plena ditadura civil, a classe média despossuída tem a oportunidade de mostrar sua superioridade frente a “essa gente” (como é chamado o povo), que ficou sem nenhum direito (sem carteira assinada, sem salário, sem saúde nem programas habitacionais). Basta de esmolas, vamos trazer de volta os direitos.

ESCRITORES - Quero lamentar aqui a morte de Rachel de Queiroz e também a cobertura da TV (a Folha fez excelente trabalho), que ao invés de entrevistar escritores, apresentou Mauro Salles como escritor falando coisas nada-a-ver sobre a autora. Para a mídia viciada, todos são escritores: os publicitários, os músicos, os jogadores de futebol. Menos os verdadeiros escritores, que estão esquecidos. Mais atenção aos vivos, ao nosso Poeta Maior J. A. Pio de Almeida, ao Marco Celso Viola, grande poeta que ainda não teve um lançamento decente, ao Julio César Monteiro Martins, que teve de emigrar para poder realizar-se plenamente como escritor, entre tantos outros.

RETORNO – Nesta nova fase do Diário da Fonte (que não sei ainda se será renovada diariamente, como na primeira fase), quero destacar a visita que fiz ao meu conselheiro Professor Francisco Karam, diretor do curso de Jornalismo da UFSC, que me recebeu com a alegria e a gentileza do gaúcho que decidiu viver na ilha encantada. Fiquei impressionado com as instalações do Curso. Tem de tudo o que você pode imaginar, desde estúdio de TV até jornal impresso regular (o premiadíssimo Zero). Uma beleza, como tudo em Florianópolis. Agradeço os votos de felicidades enviados no dia do apagão, 29 de outubro, por coincidência meu aniversário, enviadas pela minha irmã Védora (que enfim entra no circuito digital), pela minha repórter e amiga Luciana Felix, que me telefonou de Salvador para me cumprimentar, pelo meu editor de arte e amigo do peito Luiz de Moraes e dos meus filhos, que estavam longe de mim no dia de apagar as velas (e como tinha velas! Sem falar nas estrelas e nos vagalumes!). E quero destacar a magnífica entrevista que outro conselheiro do Diário da Fonte, Moacir Japiassu, deu para Rogério Pereira, editor de Rascunho, o mais importante veículo cultural do País. Está no endereço http://tudoparana.globo.com/rascunho/rogerio/n-182-index.html

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