13 de novembro de 2003

A MOCHILA POUSOU NA LUA


Na noite em que os americanos mostravam pela TV que estavam pisando na Lua, cruzávamos ainda a estrada, de mochila nas costas, chegando de carona no Rio de Janeiro. Nem sabíamos do grande evento. Era julho de 1969 e nada havia de verdadeiro nos jornais. A não ser, é claro, no Pasquim que surgia naquela mesma temporada. Debaixo do braço, carregávamos nosso primeiro livro, feito a muque, na base do mimeógrafo, e que tinha o título de “Tombam os primeiros homens nos trigais”.

ENTALHADORES - Até hoje lembro aquela viagem do subúrbio do Rio (onde nossa carona nos deixou) para a Zona Sul, dentro de um ônibus lotado. Já tirávamos do corpo lãs e casacos (vínhamos do frio gaúcho de julho) e um carioca negro improvisava, cantando, sobre a briga espacial entre russos e americanos, tirando um sarro dos comunistas que tinham perdido para os vencedores gringos. Depois de nos instalarmos numa cobertura habitada pela fauna de Ipanema, capitaneada por artistas entalhadores como o recifense Zé Barbosa, na rua Farme de Amoedo, subimos o Morro do Pinto e paramos na primeira birosca para uma cerveja. Um morador daquelas bandas nos explicava ser impossível alguém chegar até a Lua e que tudo não passava de armação. Quando recentemente publicaram provas de que a grande façanha tinha sido armada em estúdio, o que não serve de prova nenhuma, fico imaginando a força do ceticismo popular naquela cidade que me deslumbrou não apenas pela paisagem, mas pelos seus habitantes únicos. Descobri compositores de música popular que viviam como mendigos, aposentados filósofos, entre outros exemplares de uma grandeza humana exposta na rua e que mudou minha vida para sempre. Junto com meu amigo poeta Marco Celso Viola (autor do verso-título Tombam...), que bolou toda a viagem e descobriu o lugar para nosso pouso, fomos até a praça General Osório expor poemas. Comíamos pão de padaria com leite em saquinhos. E dependíamos da caridade alheia, para almoçar, jantar e dormir. Éramos mendigos em plena ditadura e fomos até presos pelo Exército, pois demos bandeira absoluta perto do Forte de Copacabana, usando jaquetas velhas do Exército emprestadas por meu cunhado capitão. Dentro da limousine preta, onde íamos detidos, Marco Celso teve a petulância e o sangue frio de filar um cigarro do tenente. Acontecimentos que hoje parecem ser de pura ficção, mas que aconteceram de verdade.

SÃO PAULO - Antes dessa aventura no Rio, tínhamos chegado em São Paulo, onde fomos dormir no estádio do Pacaembu. Apresentamos nossas carteirinhas de estudantes e ficamos em dormitórios gigantescos e vazios. São Paulo foi um deslumbramento. Nunca tinha visto cidade como aquela. No entardecer de ouro da avenida Paulista, descobri uma paixão súbita pela cidade que mais tarde me adotou e onde moro até hoje. Foi assim: de mochila, tentando descobrir o Brasil e minha real vocação, expondo poemas na Praça da República ( que não despertou, claro, interesse ou atenção de ninguém) vi São Paulo pela primeira vez. Assisti peças impossíveis (não sei se exatamente naquela época ou quando fui visitar a cidade mais tarde) como Cemitério de Automóveis, com Stênio Garcia, e Gracias Señor, o terremoto do Teatro Oficina, uma ousadia e radicalidade que nunca mais vi em lugar nenhum. E antes mesmo do Rio, quando queríamos ir para o Uruguai, atravessamos o pampa, passando por Santa Maria da Boca do Monte, a cidade central do Rio Grande do Sul, lugar maravilhoso onde sempre me sinto muito bem. Do trecho de Santa Maria para Uruguaiana, fui sozinho, atrás de uma licença especial que meu pai deveria conceder para eu atravessar a fronteira. Não deu certo. A turma com quem eu viajava encantou-se com Santa Maria e lá ficaram. Eu fiquei esperando todo mundo numa Livramento chuvosa, depois de ter conseguido o papel assinado pelo meu pai em Uruguaiana. Chegaram a me prender e me levar para o quartel, mas viram que eu era estudante e apenas um menino completamente tomado pela necessidade de correr mundo, mesmo sem dinheiro nenhum, atrás de sonhos que até hoje me povoam.

RETORNO – Dessa viagem pelo Brasil veio a inspiração tanto para meu primeiro livro, Outubro, quanto para o segundo, No Meio da Rua, que diz: “No meio da rua/ o coração do passageiro/ bate o bumbo.” A poesia foi o fruto colhido pela minha caminhada junto à geração a qual pertenço. Quando vejo meninos hoje que se expõem no mundo como eu me expus e que são assassinados porque querem sentir também o gosto da aventura, lamento esta época que mata crianças e não os embala como o meu tempo me embalou e permitiu que eu sobrevivesse, apesar de toda a barra que enfrentamos.

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